Herança

Capítulo 48


Os raios de Sol atravessavam a janela e esbarrava nas cortinas de seda desta. Mas mesmo assim a claridade do novo dia que surgia iluminava o quarto perfeitamente.
A princesa virou-se para o outro lado da cama e puxou os cobertores para logo abaixo do pescoço, em uma atitude preguiçosa. Sua colega de quarto contudo, não estava na mesma situação. Já tinha despertado antes do alvorecer e estava no peitoril da janela, observando a cidade que despertava. Captava os odores desta, da evaporação do sereno depositado no teto das casas, das gotas de orvalho do amplo jardim, da tênue névoa comum durante as manhãs.
Ela estava um pouco incomodada.
Se sentiu atraída pelo malviano. Gostou de lutar contra ele. Não propriamente de brincadeira como com seus pais, mas de uma outra forma. Como se fosse um jogo.
Ela... ela se sentiu excitada fazendo aquilo.
Com um inimigo...
Com quem feriu suas amigas!
Isso nunca mais tornaria a acontecer. Nunca mais iria querer qualquer coisa com aquela criatura, exceto o de arrancar sua cabeça.
Olhou para trás e viu sua amiga dormindo profundamente. Não haveria aula naquele dia. Todas teriam de ir ao templo Hikawa ainda na parte da manhã. Sua mãe não disse exatamente o motivo disto, mas era para todos irem. As jovens sailors, os cavaleiros de Marte e ela própria. Talvez para um treino especial.
Mas porque ela também precisa participar?
Ela nunca precisou ir antes... nunca precisou participar dos treinos deles.
Talvez não fosse um treino.
Talvez fosse um tipo de aula... uma explicação ou até mesmo um comunicado.
Mas seria mesmo necessário todos irem até lá só para isso?
Ela não conseguia imaginar. As asteroid... gravemente feridas. Sailor Vênus também foi ferida mas já se recuperou. Na verdade, sua mãe disse que ela iria ao templo também.
Porque?
Ela saltou da janela e foi até a cama de Serena, subindo nesta e ficando em cima de seu ombro, observando a jovem princesa respirar profundamente em seus sonhos.
Devia estar sonhando com o Yokuto.
Será que rainha já sabia deles? E se soubesse... saberia também da arte que eles aprontaram? Ou melhor, da arte que sua doce e inocente filha praticamente obrigou Yokuto a fazer com ela?
Dezesseis anos... logo iria fazer dezessete. Já não era mais mocinha, sem dúvida. Bom, era hora de acordar. Ela aproximou-se do seu rosto e começou a lambe-la, com sua língua áspera e úmida.
- Hum... – fez ela cobrindo o rosto com a coberta.
Diana não desistiu. Entrou debaixo das cobertas dela e assumiu forma humana ficando de pé na cama e levando o cobertor consigo.
- Mas que coisa! Não vamos para a escola hoje, lembra? – reclamou ela olhando a amiga com irritação
- Lembro... mas daqui a uma hora temos de ir até o templo.
- Já é tão tarde assim? – ela olhou para o relógio na parede – puxa vida... pior que é mesmo!
Ela pulou da cama e foi correndo de pijama até banheiro, para tomar seu banho. Diana por sua vez apenas sorriu divertida e arrumou a cama da amiga. Bom, era sua cama também, apesar de que ela causava menos desarrumação que a princesa. Vantagem de virar uma gata para dormir.
- Filha...
- Mãe? – ela olhou surpresa para a porta. Sua mãe estava lá, e em forma humana! Pelo visto... lá vinha sermão... – eu... fiz algo errado?
Ela sorriu levemente e entrou no quarto, pondo a mão na sua cabeça e a observando com ternura. Ficou assim algum tempo e depois se sentou na cama do seu lado. Intrigada, Diana fez o mesmo.
- Não filha... não fez algo errado. Apenas seguiu seus instintos.
- Eu nunca mais quero sentir aquele odor de novo – ela cruzou os braços e com uma expressão dura ficou olhando para a frente.
- Vai sim. É parte do que somos. Humanos se atraem pelo olhar, pela maneira de andar, pelo corpo, até mesmo pela simpatia. Nós nos atraímos pelos odores filha. Não foi culpa sua.
- Mas aquele... aquele...
- Calma – ela novamente pos a mão na sua cabeça – tenha calma. Você o rejeitou pois sentiu o que ele era. Fez tudo certo. Eu... não percebi como você já está madura.
- Madura? Eu... eu...
- Já está na idade de procurar um par minha criança. Vai enfrentar mais confusões assim daqui para a frente. Não se preocupe, apenas tenha confiança em si mesma que fará a escolha certa. Mas não é sobre isso que quero conversar.
- Não? Então é sobre o que?
- Filha... você... – ela suspirou – você precisa aprender a fazer o que nosso povo faz.
- Eu já não faço isso? – ela coçou a cabeça – pensei que fazia...
- Você faz sim – ela riu um pouco – mas não tudo, e não da forma certa. Lembra das lutas que tínhamos de manhã?
- Claro! – ela estava toda sorrisos – vamos fazer uma agora?
- Tudo bem... mas fique como humana.
- Dá para lutar assim?
Ela não respondeu. Apenas se levantou e foi até o outro extremo do quarto.
- Me ataque.
- Eu!
- Bom, então eu a ataco.
Sem esperar resposta, sua mãe iniciou uma pirueta apoiando as mãos no chão e levou o seu pé direto para o rosto da filha. Por puro instinto, esta saltou escapando disto, mas não de levar uma joelhada na barriga com o outro pé. E antes de chegar ao chão, levou mais dois golpes. Golpes doloridos.
Imediatamente ficou de joelhos e viu sua mãe voltando depois de se apoiar na parede para tomar novo impulso. Ela se ergueu e tentou acerta-la no rosto, mas diante de seus olhos ela contorceu o corpo escapando de seu punho e lhe acertou uma cotovelada na nuca, fazendo-a ver estrelas e cair ao chão, completamente tonta.
Demorou quase um minuto para ela se erguer, sua mãe não a atacou mais. Quando ficou de pé, viu esta na soleira da porta observando-a com os braços cruzados e uma expressão um pouco triste.
- Nossas lutas de brincadeira – começou ela – são na verdade um preparo para a sua vida adulta – ela a olhou no fundo dos olhos antes de prosseguir – malvianos são lutadores filha. Nossos ancestrais aprenderam a caçar e lutar para sobreviver, e sem usar nenhuma ferramenta ou arma, apenas os próprios corpos. E você tem essa mesma capacidade. Todas as brincadeiras que fizemos até hoje eram um preparo para quando atingisse a idade certa. E você tem esta idade já faz algum tempo. Só que eu nunca pensei que seria preciso que se desse conta disto.
Ela fez uma pausa e fechou os olhos durante esta. Diana estava impressionada. Não sabia que sua mãe podia lutar tão bem assim. Nunca tinha imaginado isso alias.
- É por isso que você também vai ao templo hoje filha. A partir de agora, você não será apenas uma conselheira ou mascote das juniores. Você fará parte da equipe com suas habilidades únicas. O que quero dizer é que você também vai ser treinada. Você também é uma lutadora, uma guerreira. Uma guerreira malviana como seus ancestrais.
- Eu... uma guerreira? Mas.. eu não sou uma sailor.
- Não precisa ser – ela continuava impassível – eu não sou e isto não impede minhas capacidades. Você é habilidosa filha, pode dobrar o corpo como ninguém e é uma acrobata nada, com grande agilidade. Só precisa usar isso de forma correta.
- Mas.. mas eu...
- Não tem escolha.. desculpe. Mas você precisa aprender a se defender como as outras. Como todas as outras. Foi isso que decidimos ontem. Não podemos proteger vocês o tempo todo... vocês precisam ser capazes de fazer isto sozinhas. Todas vocês. Desde a princesa até a pequena Sereninha. Eu devia te-la ensinado a lutar antes... muito antes na verdade. Bom, não adianta se lamentar agora. Sailor Vênus irá lhe explicar tudo. Mas você, filha, você vai aprender a lutar como uma malviana. Vai atuar junto com as suas amigas. Pelo menos, vai poder se defender.
Ela silenciou-se e aguardou que Diana dissesse algo. Esta apenas ficou confusa, com tantas informações na cabeça. Ancestrais? Guerreiros? Será que foi isso que àquela criatura quis dizer com um malviano nunca está indefeso? Ela era uma lutadora? Ela podia ser uma lutadora? Hum... parecia divertido.
Olhou para a mãe e deu um pulo no seu colo, abraçando-a com força. Muita força mesmo, e esta compartilhava o abraço e a pressão deste.
- Filha...
- Sim?
- Continue viva, tá? Não comece nenhuma guerra porque você é novata nisto.
- Pode deixar.

-x-

É... realmente ele era lindo. O Taj-Mahal... uma magnífica construção, e também um mausoléu.
Pouca gente sabe, mas esta construção indiana é na verdade um túmulo da esposa do Mughal. Um cemitério para apenas uma pessoa. Uma linda construção feita apenas para manter um cadáver. Ele devia ama-la muito.
Haruka ficou pasma quando soube disto. Nunca tinha imaginado o motivo daquela construção. Pensou que fosse talvez um tipo de castelo, ou até mesmo uma \"casa de veraneio\" dos reis indianos antigos. Mas... um mausoléu? Aquilo realmente a deixou sem jeito.
Michiru contudo, adorou! Um gesto simbólico de amor por uma mulher que tinha partido.. era romântico! Uma construção milenar destas que fazia os visitantes reconhecerem – como no caso de Haruka – ou relembrarem do seu gesto de amor e de quanta falta ele sentiu desta. Foi a promessa que fez a esposa que faleceu ao lhe dar a luz um de seus muitos filhos. Levou vinte e dois anos para ser construído e usando aproximadamente vinte mil trabalhadores para tanto.
Trouxe pedras vermelhas de Bagdá, mármore branco de Makrana, jade verde e cristais da China, ametistas da Pérsia, diamantes da Golconda, e muitos outros detalhes de outras partes do mundo.
Realmente, ele mostrou ao mundo o quanto a amava. Dedicou-se mais a construção do edifício do que em governar o país. Hoje o mausoléu abriga não apenas a esposa que motivou sua construção, mas também o homem que quis mostrar ao mundo o amor de ambos.
- Você sabia, não é? – questionou Haruka olhando feio para ela – sabia que isto aqui é um cemitério.
- Claro – ela sorriu levemente – sabia sim.
- Bom, está satisfeita?
- Completamente. E ainda temos tempo de ver as construções gigantescas da... droga!
Ela pegou o visor a bolsa e o colocou no rosto. Quem estaria as incomodando agora?
- Hotaru? Que surpresa. Anne está se comportando direitinho?
Haruka achou melhor se afastar dela. Não estava muito interessada na conversa da mãe preocupada com a filha travessa. Parou em frente a mesquita – pelo menos, apostava que era a mesquita, já que a chamada casa de hóspedes era idêntica a esta do lado de fora e observou a fonte retangular em frente ao monumento cercada de um belo jardim. Era bonito, sem dúvida. E os desenhos de flores dentro da construção também eram lindos. Só achava curioso ter de passear por ali descalça, mas... era a regra dali, da mesma forma que algumas casas japonesas ainda tem a tradição de tirar os calçados na entrada.
Ela se encostou na parede da construção – que ela ainda achava ser a mesquita – e observou o céu. Azul, com algumas nuvens brancas. Anne devia estar na escola a esta hora, considerando a diferença de horário. Na verdade, devia estar saindo da aula. Amanhã iria a festa de Joynah e com certeza se empanturraria de doce.
Tomara que guarde um pouco para ela.
Cinco minutos depois, Michiru se aproximava, com o olhar distante e frio.
Problemas.
- Ela fez alguma arte?
- Não – respondeu de forma um tanto rude – quase ocorreu uma arte com ela. Precisamos voltar. A escola foi atacada ontem.
- A... escola?
- Sim... e não foram pelos fantasmas, pelo menos dois generais apareceram por lá, e as crianças os enfrentaram sozinhas.
- Elas estão bem? – disse sem ocultar a sua preocupação
- Sim. Foram praticamente ignoradas, mas sailor Vênus quase foi morta... tiveram uma reunião de emergência ontem e...
- Deixe-me adivinhar... – ela apertou os lábios – nos elegeram as guarda costas das crianças.
- Não – ela a olhou surpresa – decidiram que é hora das crianças aprenderem a lutar de verdade. Sohar as ensinou a usar seus poderes e um pouco de trabalho em equipe, agora é hora de ensina-las a serem guerreiras.
- A rainha aprovou isto?
- Parece que... ela foi voto vencido – Michiru não pôde deixar de sorrir com a ironia – todas as sailors e guardiões votaram por treinar os filhos no contexto de suas ascendências, e uma vez por semana vão receber um treinamento em conjunto. Por uma sailor de cada vez.
- Estou impressionada.
- Eu também. Vamos.
Seguiram para o hotel e duas horas depois estavam no espaçoporto indiano aguardando o seu vôo. Sua missão diplomática já estava encerrada, e só queriam mesmo se divertir até o dia seguinte. Uma pena ter ocorrido tal incidente na escola. Mas todas estavam bem – pelo menos, até serem massacradas pela sailor Vênus que ia avalia-las no templo – e não foram atrás de problemas.
Haruka contudo, estava inquieta. A sua sensação de que Anne iria sofrer alguma coisa estava aumentando. Vez por outra sua mente era subitamente invadida por imagens que ela não queria ver. De Anne, da sua criancinha ferida, agonizante, morta.
Cada imagem repelida era substituída por outra. Dela sendo enterrada vida em um desabamento a ela sendo atingida por um inimigo, ou até derretendo com a nuvem ácida dos fantasmas negros.
Não é o tipo de coisa que alguém quer pensar, mas quando começa, fica difícil retomar o controle. A imaginação é fértil quando se tem medos e receios. Muito fértil.
E traiçoeira.
Ela não queria que Anne fosse sacrificada. Lembrava-se de sua decisão de por sua missão acima de tudo, de sua vida, da vida de sua companheira, da vida de seus amigos, da vida da própria rainha se necessário.
Da vida de Anne.
Não. Não queria nunca descobrir se seria capaz de fazer isso. O destino não iria ser tão cruel com ela a este ponto.
Não iria!
- Algum problema? – perguntou Michiru a olhando assustada.
- Não... apenas pensamentos ruins.
Anuindo com a cabeça, ela pegou na sua mão com firmeza e a manteve assim, junto da sua. As duas juntas já tinham enfrentado de tudo e sobreviveram. E com certeza o fruto da união dos genes de ambas também seria capaz disto. Tinha tudo para faze-lo, determinação, inteligência, sagacidade e, acima de tudo, ela era uma senshi.
A senshi de Titã, a única lunar que podia realmente se equiparar a uma outer.
Sua senshi.
Sua filha.
Mas ela cortaria a própria língua antes de admitir isso para alguém.
Mais uma hora e as duas pegaram o seu vôo. Chegariam em casa a noite, bem na hora em que Anne devia estar voltando.
Ela devia estar um trapo se tivesse sido realmente avaliada pela sailor Vênus, e com certeza ficaria muito pior antes de dormir.
Anne viveu como humana a sua vida toda. A partir de hoje, ela iria saber como era crescer como uma uraniana ou netuniana. E provavelmente uma certa senshi de Saturno iria querer dar a sua contribuição para o treinamento severo da futura guerreira de cabelos brancos.
Esta noite, a humana Umino Namida Anne iria começar a morrer.
Esta noite, a urano-netuniana sailor Titã iria começar a ser treinada.
De verdade!