Herança

Capítulo 32


- Vocês vão ficar sozinhas aqui até sábado. Tem certeza de que não querem ficar na casa de Amy?
Hotaru as olhou de forma indignada. A diferença de idade entre elas era muito pequena. E daí que parecia ter de dezessete a vinte anos? Achavam mesmo que não podia se cuidar sozinha e nem da \"irmãzinha\" também?
- Estou me sentindo ofendida – comentou ela com os braços cruzados e com o rosto levemente irritado – não sou nenhuma criança. E estou livre de meus problemas de saúde há séculos! Tudo bem que agora não tenho mais o dom de curar pessoas... mas sobrevivi comendo lactores e larvas de crinstons por oitenta anos. Posso muito bem cuidar da casa por dois dias.
- Ainda não teve que cuidar dessa ai com a idade que tem agora – disse Haruka apontando com o polegar para Anne.
- Ei! – reclamou ela – eu sempre me comportei direito. Nunca fiz nada na cama de vocês enquanto estava fora.
As duas arregalaram os olhos por alguns instantes. Hotaru olhou para Anne e percebeu que havia um sorriso um tanto cínico em seus lábios. Do que será que ela estava falando para aquelas duas ficaram tão sem jeito?
- Umino Namida Anne – disse Michiru de forma muito séria – não venha com alfinetadas para cima de mim não!
- Desculpe... mamãe.
Era tão raro ela a chamar pelo nome completo... só o fazia em ocasiões em que estava prestes a lhe dar uma senhora puxada de orelhas, como agora. Se bem que isso a lembrou de um detalhe importante...
- Calma Nami-chan, não precisa ficar assim tão encabulada.
- Vai voltar a me chamar assim agora é?
- Eu te chamava assim antes, lembra? Na verdade eu tinha até esquecido disto. Obrigada por lembrar Michiru-mama!
- Disponha – ela sorriu – bom, temos que ir. Comporte-se Anne. E Hotaru... ela ainda está de castigo certo?
- Sim senhora! – ela prestou continência para ela – A prisioneira ira cumprir com a sua pena conforme a condenação!
- Vamos embora – disse Haruka balançando negativamente a cabeça – antes que eu me arrependa de deixa-las sozinhas. Hotaru, você ainda é mais adolescente do que adulta!
- Obrigada.
- Não foi um elogio...
As duas acompanharam elas saírem no girociclo de Haruka em direção ao aeroporto. Assim que sumiram de vista, olharam uma para a cara da outra e com um pulo espalmaram as mãos. Estavam livres por dois dias! Não que fosse algo assim tão especial, mas o simples fato delas não ficarem ali já dava um ar um pouco maior de liberdade para elas.
- O que é um lactor? – perguntou Anne confusa.
- Um tipo de mariposa muito comum e nutritiva lá naquele mundo em que fiquei presa. O problema eram as asas com espinhos...
Ela entrou na casa e Anne ficou na soleira da porta, aparentemente com enjôos...
- Não vai entrar?
- Não quero sujar o carpete – seu rosto já estava ficando amarelo – acho que não vou chegar no banheiro a tempo... – e virou a cara para o jardim e colocou o jantar para fora.
- Que resistência fraca você tem... – comentou sorrindo – ou é o jantar que eu fiz que estava uma droga?
- Maninha... – ela a olhou com uma fúria incrível – vai a merda antes que eu me esqueça... - e atravessou a porta com rapidez indo direto para o banheiro, provavelmente para tirar o gosto ruim da boca.
- Você é quem foi curiosa para saber o que era um lactor. E olha que nem falei das larvas de crinstons. Sabia que você tem que come-las vivas pois mortas elas segregam uma toxina perigosa? Ficam se remexendo de um jeito esquisito na boca...
O som inconfundível de que agora a sobremesa do jantar tinha sido posta para fora foi ouvido. Hotaru se sentia muito malvada – e satisfeita pelas brincadeiras maldosas. Nada mal para se vingar das vezes em que ela acabou cuidando da Anne na época em que ela era ainda praticamente um bebê, e precisava ter suas fraudas trocadas. Não era uma tarefa muito agradável não.
- Para com isso maninha! – gritou ela do banheiro – não tenho um estômago tão forte assim.
- Desculpe – ela riu – vou para a sala ouvir música. Melhor aproveitar e tomar um banho logo. E obrigada por ter feito um roupão para mim. Adorei a cor escura dele.
- Eu achei que tinha sido injusta contigo e fiz um presente – respondeu ainda no banheiro - Que bom que gostou.
Hotaru foi até a sala na parte inferior da casa e deitou-se no sofá. Não conseguiria ficar assim com Michiru ou Haruka por lá. Pos ambas as pernas no encosto deste e cruzou os braços atrás da nuca, ficando a observar o teto branco do primeiro andar.
- Computador – solicitou - toque uma música.
\"Qual a música desejada?\"
- Você conhece meu gosto. Faça uma escolha que me agrade.
Alguns momentos depois uma música um tanto gótica preencheu o ambiente. Hotaru sorriu levemente. O computador tinha acertado em cheio. Aquela época em que a Mistress9 a dominou a tinha deixado com alguns gostos permanentes. Alguns ela apreciava – como a música – outros ela precisou de muito esforço para se livrar, como o de ficar um tanto indiferente aos sentimentos das outras pessoas.
Foi incrível como a presença da pequena Anne, ou melhor, da chibi-Amy foi o tiro de misericórdia naquela indiferença. Haruka tinha razão: \"Esta peste foi a melhor coisa que nos aconteceu\". Ela havia modificado a todas elas, de uma forma ou de outra. Michiru ficou satisfeita por finalmente ter o desejo de ser mãe atendido, ela teve alguém além de Serena para dividir suas atenções, e Haruka... bom, Haruka descobriu uma forma toda nova de extravasar sua necessidade de responsabilidade.
Mas a chibi-Amy era demais para todas elas. Chibi-Amy não... Nami-chan. Quando tinha cinco anos começou a chama-la assim. Ela não gostava muito pois já tinha se acostumado a ser chamada apenas de Anne. Mas isso não foi motivo para dissuadi-la. A ficou chamando de Nami-chan até a rainha a escalar para investigar aqueles incidentes no planeta das Starlights. Foi quando ficou exilada do mundo que conhecia por tanto tempo.
- Que música mais chata! – disse sua irmã de criação assim que chegou na sala logo depois de seu banho, vestindo apenas o seu roupão – computador! Ponha uma dos cantores rosados!
\"Atendendo solicitação\"
- Ah não – Hotaru se levantou e encarou ela de frente – computador, volte a música antiga.
\"Solicitações musicais canceladas conforme ordens.\"
- O que? – perguntaram ambas ao mesmo tempo.
\"Fui instruído a cortar totalmente a solicitação musical no caso de ocorrer discussões entre vocês\"
- Mamãe – murmurou Anne – ela nos conhece muito bem.
- Qual delas?
- A Michiru-mama – disse ela imitando a sua voz.
- É verdade, Nami-chan.
- Ah... para com isso.
Ela se sentou no sofá ao seu lado, e Hotaru fez o mesmo.
- Bom, não tem mais música hoje. A não ser que você saiba como burlar os circuitos lógicos do computador...
- Eu até sei – ela sorriu – mas não vale a pena. Ainda podemos ouvir nossos gostos nos nossos quartos. Mas não estou a fim de dormir ainda pois é muito cedo. E não quero ver holovisão não.
- E o que fazemos? Jogamos xadrez?
- Até que é uma boa... mas podemos deixar isso para depois. Me diz uma coisa... já comprou o presente?
- Presente? De quem?
- Da Joynah! – ela estava surpresa – o aniversário dela foi ontem, e vai ser comemorado neste sábado. Com certeza vai ser uma festa muito, mas muito gostosa.
- Pior que não comprei nada – ficou receosa por ter esquecido aquilo – vou ver se acho algo no shopping amanhã.
- Que tal procurar hoje?
- Não senhora! Você está de castigo e não vai sair. E não pense que vou deixar você aqui sozinha, Nami-chan.
- Não confia em mim? – sorriu de forma sapeca – e pare com isso de Nami-chan!
- Claro que não! Já vi muito de você e das outras nestas duas semanas para saber como vocês ficaram. E estou pasma de ver que conseguiram ficar pior que suas mães. E vou te chamar de Nami-chan sim. É o seu nome e devia ter orgulho dele, querida lágrima do oceano.
- Pelo menos não sou um vaga-lume...
- Touchê... mas tenho orgulho de meu nome. É original, tanto quanto o seu.
- Tudo bem... Haru-chan...
Ela sorriu. Fazia tempo que não era chamada assim. O costume de usar sufixos nos nomes foi diminuindo com o tempo. Atualmente só em situações especiais ou de muito respeito eram usados. Neste ponto eles ficaram mesmo americanizados.
- Obrigada... tenho saudades da época em que chamávamos as pessoas de chan, san, sama... kun! Indicava como as considerávamos.
- Eu percebi isso quando voltei ao passado. Não foi fácil se adaptar não...
- Você voltou ao passado? Quando?
- Um pouco antes de você aparecer. Tivemos um acidente e fomos arrastados por uma fenda espaço dimensional gerada pelo cristal de prata do passado e do presente, que estava no passado nas mãos da jovem Serena. Quer dizer da nossa Serena quando era mais jovem. Deve ter sido quando combinaram os poderes de forma assíncrona e...
- Pode parar... minha física quântica não é tão avançada assim...
Ela riu um pouco.
- Até você agora vai me mandar calar a boca... já estou acostumada. Pelo menos não me mandam ficar quieta por falar besteira, ao contrário do que acontecia com a nossa soberana no passado...
- Então você a conheceu – deve ter sido hilário.
- E como! Conheci sim a \"cabecinha de vento\". Como é que vocês aceitavam que ela era a princesa?
- Você tem muita coisa da Haruka mesmo... Apesar de bobinha e chorona, ela tinha uma coragem que nos inspirava a todas. Mas claro que tinha os períodos de covardia e falta de jeito para lutar. Mas o que esperar de alguém que nasceu para ser uma princesa e não uma guerreira?
- Não aceito isso de que nascemos para determinada coisa. Nós fazemos o nosso destino – afirmou com determinação para ela.
- Podemos fazer os nossos destinos – retrucou de cabeça baixa, sem encara-la nos olhos – mas não o escolhemos. Veja você por exemplo. Seu destino era ser um soldado extremamente obediente e mortal, e o que aconteceu? Todo o destino escolhido para você foi alterado pelo simples fato de ter crescido com calor humano ao redor.
- Como eu disse – sorriu – fazemos o nosso destino. E eu ainda não consigo acreditar que poderia ter sido isso. Uma máquina de lutar obediente. Até parece que obedeço minhas mães mais do que qualquer outra adolescente...
- Na verdade eu reparei que você obedece menos que a maioria.
- MENOS!?
- Claro! Me diga qual de suas amigas fica saindo a hora que bem entende raramente avisando aonde vai. E me diga qual destas mães fica preocupada...
- Sua chata... elas confiam em mim, tá bom?
- Claro que confiam... sempre podem pedir para Sohar dizer onde você está.
- Vamos mudar de assunto? – ela estava ficando envergonhada.
- Tudo bem. O Tony deu notícias?
- Na verdade... falei com ele hoje na escola – a mudança no rosto dela era incrível! Parecia que tinha ficado mesmo interessada nele.
- E...?
- E nada. Não sei bem o que ele quer comigo não. Acho que só quer uma paquera passageira, nada sério.
- Parece que você ficou decepcionada com isso...
- Ah, maninha... eu não quero uma aventura. Quero algo consistente e permanente, para sempre! – seus olhos pareciam que estavam brilhando – um príncipe encantado completo. O Tony ainda é um sapo, e eu não sei se vale a pena beijar este sapo... mas no dia em que eu descobrir isso... – ela fechou os olhos e seu rosto virou apenas felicidade – beijarei este sapo e terei meu querido príncipe encantado para sempre! Como o rei e a rainha, como Lita e Sohar, como Ray e Nicholas...
- Acho que estes últimos não são um bom exemplo não... – ela riu – a Ray está sempre gritando com ele.
- Ela grita com todo mundo – ela suspirou - Hotaru... o que vocês conversaram hoje no palácio? Foi sobre a gente?
- A gente quem?
- Nós, as lunar senshi.
- Falamos um pouco das juniores sim...
- LUNAR SENSHI! E lembre-se de que te demos uma surra!
- Eu subestimei vocês, tenho que reconhecer. Mas não fique muito confiante não. Um inimigo de verdade não vai se segurar se as enfrentar.
- Duvido que eu enfrente um inimigo de verdade antes de estar emancipada, ou seja, antes dos vinte e um anos. Vocês não vão deixar... – ela olhou um pouco para cima – acho que vou para o meu quarto. Quero rever o que vou querer perguntar amanhã para os arqueólogos. Boa noite maninha... e pare de me chamar de Nami-chan!
- Tudo bem, Umino-sama.
- Que saco!
Anne saiu da sala e foi para o seu quarto deixando Hotaru sozinha. Ela achou estranho não ter insistido em saber sobre o que conversaram no palácio. Era bem curiosa... mas também era paciente. Iria esperar a hora certa para tentar descobrir, isso se não se juntasse a Serena e ficasse atormentando a rainha com perguntas diretas ou indiretas.
Aproveitando que estava sozinha novamente ela voltou a deitar no sofá e a por os pés para cima em seu encosto. Fechou os olhos e ficou pensando no que iria fazer. A pergunta de Serena feita no shopping ainda a incomodava... o que iria fazer da sua vida? Tinha poucos amigos – basicamente as sailors e agora seus filhos – não tinha emprego e nem mesmo uma profissão registrada. Como ficara como adolescente por muitos séculos acabou nunca conseguindo um emprego real, apenas alguns serviços temporários simples. Talvez fosse hora de voltar a investir em seu grande sonho... ser uma médica. Chegou a ter umas aulas com Amy e tinha até mesmo completado um curso de enfermagem básico... hum... será que Amy teria uma vaga para uma aprendiz em seu consultório?
Depois que a situação atual estivesse resolvida, quem sabe ela não enveredasse por este caminho? Todas as outras realizaram seus sonhos ou ao menos estão satisfeitas com o que fazem agora. Até Setsuna ficou livre da \"maldição\" de guardar o portal do tempo e agora podia se dedicar a sua paixão de desenhar roupas. Se bem que esta libertação foi de uma forma um tanto reacionária, apesar de bem eficiente.
Sohar simplesmente destruiu a porta do tempo para evitar que as criaturas de Narthale pudessem usa-lo. E de quebra acabou com todas elas exilando-as no limbo temporal dentro das dimensões selada pelo portal destruído. Com isso a guardiã da porta do tempo acabou ficando sem emprego. E sem nenhuma desculpa para ter uma vida um pouco mais normal. O Orion tinha muito o que agradecer sobre isso.
E por falar em Orion... ela realmente parecia gamada nele hoje. Que incrível! O que foi que ele fez para conquistar o seu coração assim praticamente da noite para o dia? Adoraria perguntar a ela qualquer dia destes. Só não o fez hoje pois decidiu respeitar a alegria dela – e também para proteger os seus próprios dentes, um bom conselho de Haruka – que quase podia ser palpável.
Estranho... pensar nisto a fez se lembrar do rapaz que conhecera no shopping... qual era mesmo o seu nome? Shion! Era esse mesmo. Devia ter dado o seu código de comunicação para ele. Que boba que foi na hora. Ficou tão assustada de repentinamente ter um relacionamento que acabou fugindo dele. Tudo bem que preferia que ele que a ficasse caçando, mas como ele iria fazer isso se ela não voltasse até o shopping?
Ainda era cedo... podia simplesmente dar um pulo no shopping. Pelo menos poderia ficar observando aquelas fontes e se distrair um pouco. Especialmente agora que as músicas da sala de estar foram \"canceladas por ordem superior\". Cinco minutos sozinhas e já brigaram por besteiras. Realmente elas podiam mesmo ser consideradas como irmãs de criação.
Shion... hum... ele era muito novinho. Precisava de alguém mais maduro como ela. Alguém como Herochi ou Yokuto... – mas eles realmente ficaram lindos agora que estavam crescidos, muito lindos mesmo. Ai, ai... pena que já foram laçados. Claro que ainda tinha Torguer...
Torguer... ela ficou subitamente apática ao pensar nele. Fazia apenas duas semanas que tinham se separado e já estava com fortes saudades. Era realmente um amigo incrível! Mais do que isso... ela o considerava quase que um irmão. Aquele que compôs sua nova família enquanto estava exilada naquele mundo. Se ele não fosse de uma raça tão diferente da sua...
Será mesmo que isso faria alguma diferença? Sohar não era humano, e se casou com Lita. Não se incomodou com o detalhe de pertencer a outra raça – certo, era uma subespécie da raça humana, mas ainda assim as diferenças genéticas entre ele e um humano normal era maior do que a de um chimpanzé e um gorila.
Hum... porque será que apenas Joynah nasceu com habilidades especiais?
De qualquer forma, isso não fez diferença para eles. Também não fez diferença para Haruka e Michiru o fato de ambas serem do mesmo sexo. Talvez seja hora dela mandar as convenções as favas e pensar mais em si mesma.
Torguer... um humanóide com grandes características felinas, mas com um charme todo especial... porque não?
Ela se levantou do sofá de repente e foi direto ate o banheiro tomar uma boa ducha. Não queria pensar naquilo no momento. Só iria ficar deprimida. Torguer não estava ali e havia uma chance de que talvez nunca estivesse. Era bem possível estarem separados eternamente agora. No dia seguinte faria uma visita a \"mamãe\" de criação de sua \"irmã\" de criação – nossa! Que complicação era essa família maluca da Anne – para saber o que poderia fazer com os seus conhecimentos daquele curso que tinha feito uma vez. Já estava ficando um tanto irritada de ficar o dia inteiro sem muita coisa para fazer além de passear e ver a grama crescer.
Quem sabe isso ajudasse a suportar a dor da saudade mais facilmente...