Herança

Capítulo 19


Não sentiu a mínima vontade de tirar o roupão. Apesar da época de calor já estar dando sinais de que estava de partida, e de ter esfriado muito a tarde – tinha até chovido, na verdade - as noite continuava amena, insuficiente para que fosse obrigada a vestir alguma roupa. Como não podia ir para lugar nenhum por aquela semana, estava meio despreocupada com isso.
Ela se sentou na cama e pensou no que iria fazer. Incrível como só tinha se dado conta de sua vida noturna agora, que estava proibida de sair de casa. Não fosse por isso, estaria talvez na casa da mamãe Amy, batendo papo com ela ou com sua maninha Suzette, ou, talvez, passeando pelo parque, dançando um pouco com alguns grupos de jovens que se reuniam por lá, já que não podiam freqüentar discotecas ou outros locais mais \"adultos\".
Meio tentando achar algo para ocupar o tempo – ela não era muito fã de holovisão – pegou os dois visores de seu bracelete e os encaixou um de cada lado do nariz, e ficou passeando por seus dados pingentes. Aqueles onde ela indicava coisas que pretendia estudar mais tarde, em situações como aquela. A lista era enorme. Logicamente, a maioria dos itens se referia a dados obtidos naquelas caixas que trouxeram da Lua. Mas ela não estava muito a fim de descer até o porão para pegar uma delas. A mamãe Michiru iria obriga-la a vestir algo, e ela não estava disposta a isso. Na verdade, estava com um sentimento – ou ressentimento - meio rebelde.
Um item constante nesta lista eram os seus trajes de sailor. Queria descobrir de onde eles vinham e como podia fazer para alterar a costura deles – ela já estava ficando meio que enjoada sempre da mesma roupa – para dar um ar diferenciado a ela, bem como realçar algumas partes de sua anatomia feminina. Mas este item ela sabia que não tinha a menor idéia de como faze-lo. Precisaria de alguns equipamentos de análise, que, sem dúvida Orion deveria possuir, para descobrir alguma coisa.
Ela já estava chegando ao fim de sua lista – coisa rara, pois ela sempre encontrava um item para explorar antes disto – quando notou uma coisa interessante. Um dos últimos itens era montar um esboço da cidade do primeiro Milênio de Prata. Ela sorriu. Tinha as fotos que tinha tirado na Lua daquele lugar. Milhares de fotos, na verdade. Isso podia ser usado como base para se ter uma idéia do que havia por lá.
Ela começou a acessar o banco de dados de castelo de cristal, onde estas imagens estavam arquivadas, e, as transferiu para a memória de seu visor. Depois de cinco minutos. Ela começou a sua montagem. Era como um quebra cabeças virtual, mas este era gigantesco. A começar pelo fato de que ela não tinha fotos feitas \"de cima\" mas sim na altura do solo. Ela tinha que observar bem cada foto e desenhar um esboço com a forma que a construção se parecia. A maioria eram retângulos, com ruas estreitas entre as construções. Mas não era difícil reconhecer antigas fontes ou estátuas, das quais apenas as bases sobreviveram para indicar o que tinham sido. Algumas destas eram cercadas por quatro pilares, o que podia indicar um mini templo ou algum tipo de cobertura para a mesma – para que cobertura em um local onde nunca chovia?
Mas o trabalho era gigantesco. E, tudo o que podia fazer, no momento, era apenas um desenho do tipo mapa de ruas, pois não tinha muitos outros dados. Não havia muita coisa que ajudasse a descobrir como eram aquelas construções, exceto umas paredes aqui ou ali, e, umas poucas e raras construções razoavelmente intactas que mereciam o status de ruínas. Todo o resto podia ser classificado como destroços ou monte de pedras mesmo.
Ela parou subitamente de fazer aquilo e se lembrou de que, em dois dias, iriam até àquelas ruínas que ela tanto desejava, e cuja oportunidade ficou receosa de perder, quando ficou presa no passado. Finalmente, teria a chance de conversar com arqueólogos de verdade, e saber como proceder para montar aqueles tipos de mapas. Eles fizeram isso com a Roma antiga, cidades Incas, cidades egípcias que já tinham até desaparecido sob o mar... lógico que tinham muito mais recursos, mas, acima de tudo, sabiam o que teria de ser feito. Seria ótimo! Mal podia esperar.
Mas, por enquanto, ela tinha seu próprio quebra cabeças. Voltou a se concentrar nele e tentou visualizar o quanto faltava. Ainda nem dava para ver a forma da cidade ainda. Tudo o que tinha, por enquanto, era o trajeto que tinha feito primeiro quando estava lá, e que terminou naquele subsolo, onde encontrou as quatro estátuas dos guerreiros estelares e o seu pingente que a transformou em uma sailor. Tinha que seguir a mesma seqüência das fotos que tirou – do contrário, se perderia no meio do caminho - para montar um mapa próximo do que teria sido a realidade. As fotos mais coordenadas – em que ela foi em movimento de zig-zag para tira-las – estavam depois disto, bem como as poucas fotos aéreas que tinha – ela tinha pedido a Joynah para tira-las, enquanto ainda estavam lá.
Ela se lembrava vagamente de que, enquanto estavam na nave que suas mães usaram para traze-las a Terra, de ter visto uma imagem inteira das ruínas, e que esta parecia ter ruas ou avenidas que saíam de seu centro até as suas bordas, o que daria uma forma radial ou até circular a cidade. A única coisa bem conhecida que se tinha a respeito era apenas uma imagem do castelo da rainha Serenity, e, mais nada, exceto, talvez, as memórias de Setsuna e Sohar, que, nunca contaram nada sobre isso. Bom... talvez ninguém tenha perguntado a eles. O que significava que, talvez, fosse hora de faze-lo.
Para o momento, contudo, ela já tinha muita coisa. Curioso... ela não tinha quase nada ainda, mas já podia ver que o mapa que estava montando parecia ser bem ordenado, como se a cidade tivesse sido previamente planejada. Naquela parte que tinha feito, podia também notar que as ruas eram, na verdade, vielas, nada que permitisse a passagem de carroças ou outro tipo de veículo. Eram para se andar a pé mesmo.
Como será que era a vida lá? será que aquela cidade era apenas um tipo de cidade estado? Uma capital que concentrasse o poder político na época, como o Vaticano ou Jerusalém, que concentram os poderes religiosos das maiores religiões de mundo atual? Podia ser também como o atual Milênio de Prata, onde ela morava, que, apesar de ser uma grande cidade, era apenas uma cidade de um país chamado Japão – apesar de estar politicamente separado deste – cuja função principal era servir de moradia para aquela que cuidava da saúde e benevolência de todo um planeta, com seu Cristal de Prata. O Milênio de Prata na Lua talvez tivesse a mesma função. Apenas uma base, como os castelos das sailors, dos quais, atualmente, apenas os de Urano, Netuno e Plutão ainda existem. Todos os outros foram destruídos, e, no caso de castelo da princesa de Vênus, \"perdidos\". Que maneira interessante de dizer que \"alguém\" podia tê-lo roubado.
Hoje, estes três castelos sobreviventes são usados como postos avançados e bases de entrepostos para transportes de materiais extraídos dos outros planetas. Já não são de uso exclusivo das sailors, apesar de seu acesso ainda ser restrito a pessoas do mais alto grau de confiança. Ainda há muita coisa perigosa nestes. Hum... talvez os seus computadores tenham resposta para a charada sobre quem foi a primeira Sailor Terra. Tudo o que tinha descoberto sobre ela foi que seu nome real era Gammy, e que ela era, na verdade, uma guerreira estelar, que adotou o título de sailor por uma questão de gosto pessoal mesmo.
E, mais nada. Nada sobre seus poderes, suas aventuras, nada mesmo. Era como se isso tivesse sido deliberadamente não registrado. Só conseguiu algo na caixa de dados que falava um pouco das coisas que ocorreram antes da fundação de primeiro Milênio de Prata na Lua. Foi a primeira caixa que ela e sua mãe, Michiru, tinham visto naqueles arquivos. Viram inclusive a roupa que ela usava – muito bonita – o que a motivou a confeccionar uma similar para Joynah, só que seguindo o layout da sua própria roupa de sailor. Uma pena que agora, esta roupa já esteja no museu. Hum... nem tanto... não é qualquer um que tem um trabalho pessoal exposto em um museu – ela sorriu orgulhosa – sendo que este estava vestindo a estátua da Sailor Terra atual, na ala das sailors.
Ela - e todas as outras – só não gostaram do nome que deram para aquela exposição: As Sailors Juniores. ARGH! De consolo, tinha o fato de que, depois que provassem que podiam atuar independentemente como sailors, a rainha pessoalmente iria solicitar que alteração o nome desta, para aquele para o qual todas já tinham adotado para valer. Lunar Senshi. Pena seus pais ainda não fazerem o mesmo.
- Filha?
Ela praticamente pulou na cama, assustada com aquelas batidas na porta aberta – bem como o chamado que sua mãe fez. Ela estava sentada na cabeceira de sua cama – no seu fofo travesseiro, na verdade - com os pés estendidos ao longo desta. Quando levou aquele susto, ela também bateu a cabeça na parede, o que fez um som oco nesta. Ela não se machucou, mas foi o bastante para simplesmente esquecer tudo o que estava fazendo. Olhou para a sua mãe e percebeu que os seus visores estavam mostrando dados diante de seus olhos. Ela os retirou e olhou para ela, um pouco chateada. Em parte porque ela já estava chateada desde que tinha voltado da escola, por saber que estava de castigo pela semana toda, e, em parte por ter sido justamente a mãe que tinha lhe dado este castigo que agora estava na porta. Sua mamãe Haruka.
Ela também percebeu o quanto tinha ficado distraída. Sua habilidade já tinha voltado ao normal, podia sentir a mamãe Michiru no quarto dela, e sua maninha Hotaru bem distante dali, junto com Serena, possivelmente batendo papo no shopping, se ela não tinha confundido a direção de onde vinha a presença delas.
- Estou aqui mãe... não fugi não.
- Está chateada, não é?
- Mãe... o que você acha? Além de eu ter passado a maior vergonha por ter ficado bêbada por acidente na discoteca, vou ter que passar a semana inteira em casa por não ter evitado este acidente... para mim é uma punição dupla.
Ela se aproximou e sentou-se na beirada de sua cama, com um sorriso fraco. Suas mãos estavam em cima dos joelhos, e ela brincava com os dedos de ambas, em um jogo de tamborila-los entre uma mão e outra. Os quatro dedos de cada uma estava entrelaçados, e ela batia os polegares ritmicamente, em um claro sinal que de queria dizer algo e não sabia exatamente como.
- Não foi por isso que decidi lhe dar uma punição – começou ela, ainda sem encara-la.
- Não?
- Não... acho que... uma das primeiras coisas que Sohar martelou na cabeça de vocês foi para enfrentarem as conseqüências das ações que tomarem como sailors, não foi?
Não pôde evitar de sorrir de forma irônica do que ela disse. Sim, tinha sido esta uma das primeiras coisas que ele tinha lhes ensinado. A enfrentar, e não se lamentar dos erros que acabariam cometendo, mas cedo ou mais tarde. Ela fechou os olhos e balançou afirmativamente a cabeça, respondendo a Haruka.
- Pois é justamente por isso que estou lhe castigando. Você é menor de idade... só tem quatorze anos ainda! Nunca poderia ter entrado em uma discoteca, que, na verdade, é nada mais do que um novo nome para as boates do passado. Você sabe o que era uma boate, não sabe?
- Sabe que adoro pesquisar o passado... claro que eu sei. As vezes, eram casas de prostituição disfarçadas.
- Exatamente – confirmou ela – não creio que alguma das discotecas desta cidade sejam isto, mas, há uma lei clara que proíbe a sua entrada nelas.
- Eu estava acompanhada – olhou firmemente para ela.
- Por outra pessoa menor de idade – respondeu sem se incomodar com o seu olhar – que poderia ter sido presa por personificar um adulto, e, aquela discoteca também seria fechada por permitir a entrada de dois menores, sendo que, um deles se embriagou. Não importa qual foi a causa da embriagues. Se você não tivesse entrado, nada teria ocorrido. Eu podia ter denunciado seu amigo e a discoteca. Na verdade, é meu dever como cidadã, e obrigação como membro da equipe de defesa da cidade.
Ela parou de \"bater palmas\" com os polegares e inclinou-se um pouco em sua direção, colocando a mão esquerda no colchão para dar apoio.
- Mas eu não fiz nada disso. Preferi utilizar isto a meu favor. E, gostaria de saber se você pode imaginar como.
- Aproveitou para me castigar, e, assim me fazer lembrar pelo resto da vida a pensar com muita antecedência antes de agir por impulso?
- Não existe isso de pensar com antecedência em coisas do dia a dia, especialmente diversão. Você nunca iria imaginar que tal coisa poderia acontecer. Eu nunca iria imaginar isso... mas, já que aconteceu, decidi usar isso para fixar o mesmo em sua memória, e isto, será feito com o seu castigo. Vai se lembrar disto por muito tempo, não é mesmo?
- É... – ela teve de concordar – vou mesmo.
- E o Tony também – ela sorriu, um pouco mais divertida – eu lhe disse que, se algum dia eu descobrir que você voltou a entrar em locais em que não poderia ir, ele nunca mais poderia convida-la para fazer mais nada. Bom, era só isso que eu queria lhe dizer. Pode ficar chateada e até com raiva, mas, apesar de não ser algo muito coerente com as minhas habilidades, eu sei uma coisinha ou outra sobre como cuidar das filhas...
Ela se levantou, colocando boa parte do peso do corpo sobre sua mão esquerda, que estava espalmada no colchão, fazendo-o ser comprimido e, por alguns instantes, o corpo de Anne ser puxado na depressão que ela estava causando, mas, logo ela tirou a mão, deixando tudo voltar ao normal.
- Mãe! - chamou ela intrigada, pouco antes dela passar pela porta
- Sim filha?
- Você... você não proibiu Tony de me ver? Nem deu nele um sermão homérico por ele ter feito o que fez? Me levar para uma discoteca?
- Não – ela sorriu de novo – Hotaru tinha razão. Eu gostei dele. Parece ser alguém que, pelo menos, encara o que faz. Ele sofreu um bocado para trazer você para casa, e não foi embora quando a deixou aqui. Pelo contrário, ele explicou tudo para Hotaru e assumiu toda a responsabilidade.
- Sabe, as vezes, você se parece muito com a Michiru.
- Não fale isso muito alto – ela quase riu – tenho uma reputação para zelar.
- Por acaso – Haruka já tinha saído, mas ainda estava diante da porta – ele seria o genro que vocês gostariam de ter? – perguntou em um tom meio de chacota.
Ela se virou e a encarou com uma certa seriedade.
- Vou te dizer isso só uma vez Anne. No que concerne a sua vida amorosa, você tem todo o direito de mandar eu, Michiru ou Amy ao inferno e decidir o que bem entender. Mas lembre-se que cada uma de nós terá sua própria opinião a respeito. Além disso, só os tolos tentam contentar a todo mundo. Eu aprendi isso da pior forma possível, não quero que passe pela mesma coisa. Mas, respondendo a sua pergunta... meu gosto pessoal não é bem esse não. E você sabe disto.
Ela se virou e foi embora, subindo pelas escadas até o seu quarto – ela podia sentir onde ela estava. Aquela foi a primeira vez que a sua mãe sargento teve uma conversa na qual a tratou como filha adolescente, e não uma criança ainda aprendendo a ser madura ou um soldado futuro. Tomara que tal coisa seja rara, seria terrível ter de rever a imagem que tinha de Haruka em sua mente. Mas foi bom saber que ela não iria se meter na suas escolhas – tá bom! Até parece... – e a deixaria livre para viver sua vida como bem entendesse.