Herança

Capítulo 11


Aquele era um dos lugares mais seguros do planeta, senão o mais seguro. O depósito de armas e \"elementos perigosos\" do exército de Cristal Tókio era invejado pelas outras potências. Quase seiscentos metros abaixo do solo, seu único acesso era por meio de um elevador gigantesco – capaz de transportar dois cruzadores espaciais ao mesmo tempo – sendo que o seu poço era coalhado por sistemas defensivos para eliminar qualquer ameaça. Mesmo assim, se algo realmente ameaçasse ultrapassar a metade deste trajeto sem autorização, cargas explosivas colocadas por todo o poço seriam detonadas, lacrando o acesso ao subterrâneo.
Sua localização, contudo, não era muito secreta – como manter em segredo um elevador deste tamanho? – sendo que sua entrada ficava em um dos hangares da base militar distante cerca de vinte quilômetros da cidade. Logicamente, devido a isto, nenhum dispositivo de destruição em massa poderia ser armazenado em seu interior, por mais seguro que fosse. Sua construção foi difícil. Não por detalhes ou dificuldades técnicas, mas para convencer os soberanos de que ele seria necessário. Vivendo uma paz duradoura de séculos, quase todos os países do mundo tinham praticamente extinguido seus exércitos, mantendo apenas a força policial para incidentes diversos.
Isso mudou quando foram atacados pelo clã BlackMoon.
A vitória foi custosa, muitos pereceram naquela guerra. Os exércitos foram recriados em todo o planeta, e armas de destruição em massa foram ressuscitadas dos pesadelos que todos imaginaram que tinham ficado para trás. O planeta ainda não estava com garantias de que poderia enfrentar o futuro sem precisar se defender com a força. Tinha sido um bom sonho, o de um futuro livre de guerras, mas, no fim, como tudo o mais, foi apenas um sonho. Um belo sonho, é verdade, e que talvez ainda fosse possível. Mas os outros países resolveram se precaver, para o caso de algo que pudesse desafiar os defensores do planeta surgisse novamente.
Mesmo a rainha teve de reconhecer que, pedir para confiar a defesa as sailors, era um tanto difícil, já que elas ficavam normalmente no Japão, e, mesmo que ficassem zanzando pelo mundo, não poderiam estar em todos os lugares passíveis de ataque. O exército foi recriado, generais escolhidos com base em sua experiência e conhecimento adquiridos durante a guerra BlackMoon. Todo o planeta sabia que as sailors sempre iriam ajudar no que fosse possível, mas ninguém era contra – muito pelo contrário – em ter algo para \"segurar as pontas\" enquanto elas não chegassem.
Apesar disto, pelas últimas décadas, nenhum dispositivo militar tinha sido usado, salvo em simulações ou treinamentos. O depósito do exército – onde Orion estava \"enterrado\" já fazia alguns dias – guardava poderosas naves espaciais de defesa. Também eram lá que as naves diplomáticas – normalmente usadas pelas sailors Urano e Netuno – eram guardadas. Ocasionalmente, alguma \"coisa\" obtida ou \"caída\" do céu era guardada lá. Como alguns meteoritos com materiais muito raros, reatores atômicos perigosos – antigas cicatrizes de uma época menos preocupada com o futuro longínquo - desenterrados em algumas partes do país e até do mundo eram deixados até haverem vagas em \"foguetes-lixeiros\", para serem lançados no Sol. E, mais recentemente, até mesmo um caça alienígena que tinha se acidentado na periferia da cidade, alguns dias atrás.
No lado do gigantesco poço do elevador – na verdade, estava encrostado neste – havia um grupo de elevadores menores para materiais mais leves e manipuláveis, bem como para transportar pessoas. Isso era necessário, pois gastar doze mil megawats para levar o grande elevador até o fundo e trazer de volta apenas para levar materiais desta monta estava fora de questão, apesar do base ter geradores próprios.
A vigilância com quem acessava estes elevadores era rigorosa. Mesmo os soberanos tinham que estar devidamente identificados para usa-los. Apesar disto, havia uma piada que corria entre os soldados responsáveis por monitorar quem entrava ou saia do depósito. Só dois seres tinham passe livre para entrar ali: Deus e um gato preto. Isso porque, ocasionalmente, um gato preto – alguns diziam que era uma fêmea – costumava aparecer, e entrar de carona no elevador que ia até o subsolo. Ela era quase que uma mascote deles. Como havia o perigo real de que ratos pudessem danificar os fios e cabos do complexo, a manutenção acabou votando por deixar o tal \"gato todo poderoso\" entrar quando bem entendesse.
Mito ou não, nunca tiveram problemas com ratos.
E, hoje era uma destas ocasiões. O gato pegou carona com um tenente que ia verificar alguns engradados que deveriam ser retirados no dia seguinte. Recebeu um carinho deste em sua nuca, enquanto esperava passar os doze minutos necessários até que chegasse ao fundo. Assim que a porta se abriu, o felino – ou felina – seguiu pelo extenso corredor circular, passando totalmente despercebido – ou ignorado – pelos guardas e funcionários. Parou em frente a uma porta automática e ficou observando os botões que tinham de ser digitados para fornecer os códigos de acesso para que a porta se abrisse. Uma câmara de segurança estava focada nele, como se o operador invisível por trás desta estivesse muito curioso. O gato encarou fixamente a câmara e, por incrível que parecesse, fez um sinal com a pata direita, logo seguido por um piscar de olhos. Cerca de cinco segundos depois, a porta se abriu, permitindo a sua passagem, fechando-se logo em seguida.
A sala era enorme. Em um canto, haviam vários engradados de aço e de uma liga especial de molibdênio, reconhecida pela cor alaranjada – um claro indicativo que seu conteúdo era ou perigoso, ou exigia muita segurança – mais para o centro, haviam vários tipos de aparelhos. Alguns eram veículos terrestres de ataque – um tipo de tanque flutuante – outros eram anfíbios, havia até um mini submarino. Em um dos pontos ao lado oposto, perto de uma grande porta – que era a que devia dar acesso ao poço do elevador – estava um caça semi destruído, com várias peças desmontadas espalhadas pelo chão. Havia uma bancada ao lado da nave, com muitas outras peças largadas nesta de uma forma um tanto displicente.
O felino se aproximou da nave, com segurança de quem sabe exatamente aonde deseja ir, mas não era atrás de uma presa que ele estava. Ou melhor, estava atrás de uma presa sim, mas não era para ser o seu café da manhã. Ele sentiu o cheiro de comida conforme se aproximava da nave. Olhou para o lado, para umas caixas biodegradáveis ao pé da bancada e viu os rótulos inconfundíveis de fast foods. Aparentemente alguém andara fazendo serão naquele lugar.
Ignorando isso, ele seguiu em linha reta para a nave, e, tomando um pouco de impulso, pulou na carlinga já semi desmontada desta, e ficou observando os circuitos expostos, como se tivesse um interesse especial naquilo. Não havia dúvidas que a nave tinha sido projetada para ocupantes humanóides. Ele pulou para o assento do piloto e ficou observando com um interesse maior a abertura deixada pelo painel retirado. Seja quem for que tinha projetado aquilo, era um gênio do design. Podia-se ver muitas dezenas de pequenas caixinhas de tamanhos diferentes, encaixadas cuidadosamente em seu lugar, não atrapalhando em nada o acesso a nenhuma delas. Pareciam pequenos módulos intercambiáveis com outros dispositivos.
O felino franziu o cenho ao ver aquilo, como se... ponderasse a respeito. Um som de marteladas vindas da parte de baixo da nave o assustou, e este pulou fora da carlinga imediatamente, para checar a origem destas. Viu um homem deitado lá embaixo, com as duas mãos enfiadas em uma das muitas aberturas causadas pela aterrissagem forçada.
- Orion – disse o felino com uma voz feminina.
- Só um minuto – respondeu ele – deixa eu tirar esta peça aqui antes.
O felino, ou melhor, a felina esperou sentada que ele tivesse o seu round contra a peça que desejava retirar. Mas era evidente que a peça estava em vantagem. Ele xingava, bufava, mas não conseguia um nocaute. Na verdade, ele é quem estava prestes a sofrer um nocaute técnico, quando achou melhor descansar um pouco antes de fazer uma nova investida.
- Orion – chamou ela novamente quando percebeu que ele tinha parado.
- Sim? AI!
A peça que ele tentava puxar acabou se soltando, acertando a sua cabeça. Se houvesse um juiz ali, iria punir a mesma por golpe desleal. Mas, felizmente, não havia. Ele pegou a peça, e, praticamente esquecendo que alguém o estava chamando, arrastou-se por baixo da nave até poder se levantar, e foi até a bancada cheia de peças desconhecidas e estranhas. Ele se sentou logo em seguida e colocou um visor – cheio de fios soltos e claramente feito de remendos – e passou ao observar a peça irregular em forma de estrela.
- Orion...
- Só um minuto... – respondeu ele de forma displicente - que interessante... isto deve ser uma fonte de energia auxiliar... para regular o fluxo de controle dos sistema de manobras em ambientes sem atmosfera... isso explica porque estava conectado diretamente nos centros de controle...
- ORION!
- O que? – ele se levantou surpreso e olhou ao redor - Quem? – afastou-se da cadeira com o olhar assustado, como se estivesse sendo chamado por um fantasma – quem está ai?
- Aqui em baixo, seu distraído...
- O que? Luna! Como entrou aqui?
- Ora... – ela pulou em cima da bancada, perdendo um pouco o equilíbrio ao pousar naquelas peças pequenas espalhadas – eu entro aqui sempre que quero, não me subestime. Há muitas vantagens em ter a inocente aparência de uma gata.
- Sabia que sua filha costuma fazer a mesma coisa no meu laboratório?
- Realmente?
- Sim. Ela entra furtivamente, esquivando-se dos sistemas de segurança que tenho, e fica brincando com o meu caçador de baratas.
- \"Caçador de baratas\"? O que é isso?
- Uma coisa que fiz para manter as baratas longe dos tubos que levam as fibras óticas pela cidade. Sabe os custos de manutenção que temos para repor as fibras cujo revestimento foi raspado por elas?
- Acho que sim. Tentei falar sobre isso com a rainha uns meses atrás... para convence-la a reservar uma verba para pesquisas neste sentido. Ela disse que iria ver se podia achar uma solução mais prática... ela falou com você?
- Falou. Perguntou se eu podia inventar algo para resolver este problema, e eu construí o caça baratas. Mas ela acabou não gostando muito, disse que a aparência dele a assustava. Mas foi o melhor design que pude fazer para que pudesse entrar pelos tubos.
- E como é a aparência esse aparelho?
- Bom, ele se parece e se movimenta como um pequeno ratinho...
- Vou falar com minha filha sobre isso – ela mal conseguiu evitar de dar uma risada – mas, deixa eu falar do que me trouxe aqui. Você já está aqui há dias, ninguém tem te visto no palácio – ela olhou novamente para as caixas vazias de fast food – acho que nem está se alimentando direito... Até a Setsuna acha que você deu o fora nela. O que descobriu sobre esta nave?
- Bem, a nave... como é?
- O que?
- Isso da Setsuna... ela falou mesmo isso?
- Bem... – ela ficou sem jeito - não exatamente... mas você acerta isso depois. Agora, o que você descobriu sobre esta nave?
- Ela é incrível! É impressionante mesmo. Os sistemas internos são incrivelmente avançados e auto suficientes. Tem até dispositivos avulsos para auto reparos. Alguns ainda estavam funcionando, e tentavam reparar os danos internos. A tecnologia, no entanto é... bem... parece que já vi este tipo de coisa antes. É totalmente modular, com micro módulos independentes que, encaixados e conectados entre si, trabalham em conjunto, sem muita necessidade de programação extra. Parece com os sistemas que vi lá no castelo de Plutão, há alguns anos. Só que... bem, parecem ser mais avançados ainda. O que exatamente Setsuna disse?
- Como? Ah... ela disse que... olha, melhor você falar pessoalmente com ela. Não quero virar garota de recados não. O que quer dizer com parecem ser mais avançados?
- A tecnologia que eu tinha visto no palácio de Plutão – prosseguiu ele procurando alguma coisa no meio da bagunça em que estava naquela mesa – também seguia os mesmos princípios. Totalmente modular, mas tinha alguns componentes um tanto diferentes, e até inferiores em relação a outros dispositivos. Nesta aqui, parece que todos possuem o mesmo nível de miniaturização e desenvolvimento. Eu diria que é uma evolução daquela, mas... os testes que fiz indicam que os componentes são muito mais antigos. Seu sistema de energia causa um dilatamento quase microscópico em seus geradores de força. Analisando o tamanho do dilatamento atual, pude calcular há quanto tempo ela pode estar em uso. Esta nave parece que está em operação há cerca de cinco a seis mil anos. Com manutenção automática. A Setsuna está sentindo saudades?
- Orion... por favor. Já estou me arrependendo de ter comentado sobre isso. Voltando ao nosso assunto, pelo menos espero que seja o assunto aqui – olhou firmemente para ele – você tem certeza desta idade?
- Não. Não há como ter certeza. Eu não a vi funcionando, apenas estou avaliando os dados pelo que posso coletar. Tudo o que posso afirmar é que, se a dilatação em sua fonte de força for constante, ela foi ativada há mais ou menos neste período de tempo. Claro que tem outra coisa que me incomoda...
- O que? – perguntou ela um pouco perturbada.
- A fonte de força... parece quase que uma cópia daquela que eu vi no castelo de Plutão. Logicamente, muito menor. Mas os princípios, e, até mesmo os sistemas, são quase que feitos pelo mesmo engenheiro. Ainda preciso estudar melhor a liga do metal da nave para avaliar melhor a sua época de construção. O QUE FOI QUE ELA DISSE, PELO AMOR DE DEUS?
- Ela... – ela ficou assustada – ...ela apenas comentou meio brincando que você tinha se esquecido dela... só isso.
- Foi meio brincando mesmo?
- Orion... se quer mesmo saber, saia daqui para pegar um pouco de Sol e descubra. Eu, pessoalmente, acho que ela ainda gosta muito de você. EI! ESPERE UM POUCO! – ele já estava indo em direção a saída.
- Hã?
- Puxa vida! Você ficou três dias sem falar com ela. Pode ficar mais alguns minutos. Só quero saber mais uma coisa... na sua opinião, pode-se dizer que é a mesma tecnologia do antigo Milênio de Prata?
- Sim – respondeu ele sem pensar muito a respeito – só que mais avançada. Eu estou indo, tchau! Feche a porta quando sair.
Que asilo de loucos em que ela foi parar... ela o deixou sair da grande sala, e voltou a observar o caça destruído. Foi a mesma impressão que ela teve, quando viu aqueles circuitos expostos na carlinga. Eram muito parecidos com os sistemas que eles tinham no fliperama.
Por que? E, principalmente, como era possível?