Eles ainda discutiam quando os braços de Johnny começaram a adormecer. Tinha recuperado a consciência há pouco mais de vinte minutos e mesmo com os olhos abertos, ninguém parecia ter notado o seu despertar. Estava zonza e com o estômago ardendo em zonas que, se não firmasse a atenção num ponto fixo, o vômito lhe subia pela garganta, e Johnny precisava forçá-lo a descer de volta. Já era a segunda vez que acontecia desde que percebera que estava amarrada à uma cadeira. Precisava se movimentar, mas o enjoo limitava as suas ações, não lhe dando outra alternativa senão assisti-los enquanto faziam deduções ridículas sobre ela.

O grandalhão – o Spaceboy, como Johnny se lembrava – insistia que deveriam esperar por Cinco, enquanto Séance – Klaus, o cheque esquecido no bolso de trás de sua calça a lembrava – intrigava-se, junto com a mulher a quem Space chamara por Allison, sobre a figura de guarda-chuva desenhada no pulso da invasora que tentou matá-los.

— Não acho que seja coincidência ela ter uma tão parecida com a nossa — A voz de Allison estava baixa, mas não por cuidado ou intimidação. Deixava as palavras lhe escaparem pelos dentes pois estava perigosamente zangada com a teimosia dos irmãos em darem ouvidos à ela. Depois de um dia duro de trabalho no centro comunitário, a Número Três ainda havia sido atacada por um enxame de abelhas. Ainda assim, Klaus e Vanya pareciam irredutíveis às suas próprias hipóteses.

— Pode ser uma homenagem. Talvez ela seja uma fã — O Número Quatro falou, e a esperança com que a ideia fora carregada fez Allison olhar para Luther, carrancuda e com os braços cruzados em frente ao peito, em busca de ajuda.

— Ela tentou nos matar — Ele disse, se lembrando do momento em que Grace o acordara com a ajuda de Allison. Quando recobrou a consciência, viu Klaus ajudando Reginald a amordaçar sua não-tão-fã com fita adesiva e pensou ainda estar delirando.

— Eu também tentei — Vanya argumentou, e a falta de remorso da irmã sobre tal informação fez Luther imaginar que isso talvez já não a perturbava tanto quanto antes.

Allison balançou a cabeça.

— Não é a mesma coisa, Vanya. Você é uma de nós.

— Assim como ela também pode ser — A Número Sete insistiu.

— Não, não mesmo. Podemos ter a mesma data de aniversário, mas eu não sou uma de vocês — Johnny disse. Com um bufo, assoprou a mecha de cabelo que lhe caía sob o nariz e deixou os ombros caírem, rendidos às amarras, enquanto os quatro Hargreeves a encaravam, paralisados como corujas. Se pareciam com um folheto de circo, uma fotografia estampada por um grupo estranho e desconexo, mas que ainda assim pertencia à mesma... coisa. Agora que tinha suas atenções, Johnny esperava que a libertassem. Não tinha forças para tentar matá-los novamente e estava começando a atribuir tal condição ao aperto brutal da fita ao redor de seu corpo. Há àquela altura, teria sorte se seu sangue ainda estivesse circulando.

Parabéns, cretinos — Klaus disse, e todos pareceram voltar para os seus corpos. — Vocês acordaram ela, agora vamos morrer.

Luther o silenciou com um assovio.

Agora vamos conseguir interrogá-la — Sua voz diminuiu, mas Johnny ainda conseguia escutá-lo.

— Eu não vou falar nada com vocês — Ela falou alto, erguendo o pescoço para bisbilhotar a roda de conversa que acontecia há alguns passos de si, na aglomeração perto do antigo jogo de sofás da mansão. Era o tipo de detalhe que Johnny se esforçava para não prestar atenção – tudo ali a enviava para uma memória de quando era criança, e se tratando de seu passado, ela preferia evitá-lo.

Olhares foram trocados, e Luther recebeu a maior parte deles. Estava claro que os irmãos esperavam que fizesse algo, destrinchasse-a com habilidades detetives que ele, há muito tempo, já não possuía. Ao seu ver, porém, o esforço não era necessário. Não havia mistério algum para ser resolvido. Os fatos estavam ali, amarrados à mobília velha com cordas e silver tape. Tinham sido atacados pela garota, e nos movimentos dela, Luther percebera não existir refino ou cautela, apenas desespero e uma tremenda força causada pela adrenalina. Ele também não poderia se esquecer do repentino delírio que o levara para uma viagem à Lua. Luther passara alguns instantes se convencendo da falsa possibilidade de ter sido drogado, mas a sensação ultrapassava os efeitos causados pelo álcool e era muito real para ser comparada com algum alucinógeno. E também havia atingido Alisson. Ela reclamara de abelhas, dezenas delas, mas nem ele, nem ninguém, havia as visto – ou sequer as escutado – quando a confusão acabou. Era um acontecimento estranho – bizarro, para dizer a verdade. E por coisas estranhas geralmente estarem relacionadas aos Hargreeves, Luther pensou que seria melhor se adiantar antes que mais delas acontecessem.

— Se responder nossas perguntas, desamarramos você — Ele começou, e a proposta fez uma bruma de indignação silenciosa recair sobre a sala. Deu um passo lento para frente, ciente do alvejamento às suas costas. — Pode ser?

A reposta de Johnny foi um jato de cuspe que atingiu Luther no peito e o fez torcer o nariz numa careta de nojo. Atrás dele, Klaus encenou ruidosamente regurgitar, enquanto Vanya revirava os olhos pro irmão.

O Número Um olhou para o rastro viscoso deixado pela saliva de Johnny em seu moletom e, inspirando o ar, se lamentou. Nada aquilo estaria acontecendo se tivesse cedido à preguiça e ignorado a campainha. Seu chocolate quente provavelmente estava frio e ele sequer tinha certeza em qual página havia parado em sua leitura.

— Certo, eu tentei — O cuspe ainda escorria, e Luther fez uma pausa para olhar para o lado, para Allison. — É a vez de vocês — E apontou com o queixo para a prisioneira.

Em seu lugar, Johnny fungou com o nariz, se preparando para um novo disparo. Sua garganta emitiu um barulho ruidoso que a deixou satisfeita pelos semblantes enojados que recebeu.

— Sugiro que guarde isso com você, mocinha.

O pedido entrou na sala como uma rajada de vento, e rostos se viraram mecanicamente na direção dele. Atrás de suas costas, Johnny ouvia os sapatos batendo contra o chão – passos aborrecidos, impacientes. Conseguia perceber, vagamente pela visão periférica, um vulto de forma familiar caminhando rumo ao grupo de irmãos. No susto, a saliva que acumulava como mecanismo de defesa foi engolida, e Johnny sentiu sua garganta secar.

Reginald.

O velho se colocou na frente de Johnny já armado. Nas mãos, segurava um arpão de pesca firmemente posicionado na altura dos olhos, com cotovelos e braços bem flexionados. O objeto fez click, e Reginald o apontou para ela.

O que é você?

[...]

Atrás de Diego, Lila tentava imaginar no que faria quando tudo ali acabasse. Sem a Comissão ou a Gestora, estava consideravelmente perdida, mesmo depois do Número Dois tê-la convencido de que ele - eles, alguém, um milagre— dariam um jeito. Mas no que? Sua garantia se parecia muito mais com um estepe para ser utilizado a favor da própria família do que uma genuína oferta de acolhimento. Lila sabia que Diego estava tão aborrecido com ela tanto quanto ela com ele, mas nenhum dos dois daria o braço a torcer. Preferiam arrancá-lo, se fosse o caso. Ainda assim, ele e o irmão tinham lhe convencido a acompanhá-los, caminhando silenciosamente enquanto se enganavam de que aquilo era uma boa ideia. Lila olhou para a nuca de Diego, e a região se arrepiou assim que os três cruzaram a porta principal. Cinco ia na frente, ansioso demais para seguir o ritmo cansado dos passos dela e do Número Dois. Quando alcançou a sala de estar, o garoto parou subitamente, fazendo Lila e Diego se acumularem como peças de dominó atrás dele.

Puta merda — O garoto falou, quase sem expressão, como se o pensamento lhe escapasse rápido demais pela boca para dá-lo alguma emoção.

Diego foi o segundo. Surpreso, se juntou ao irmão sem saber como reagir, absorvendo os detalhes da cena completamente amortecido. Lila precisou empurrá-los levemente para ver o que estava acontecendo. Até o momento, só escutara gritos e ameaças vazando do ambiente como numa briga de bar e a curiosidade estava lhe matando. Parou ao lado de Diego, desajeitada, mas igualmente atônita.

— Johnny? — Ela chamou, os olhos arregalados.

A atenção da loira recaia sobre o velho Hargreeves. Praguejava a plenos pulmões. Rastros de fita adesiva espalhados pelo chão e em suas roupas. Johnny esperneava nos braços de Luther, chutando para frente fervorosamente, enquanto Vanya e Allison tentavam conter as investidas de Reginald para evitar que outro pedaço de cadeira voasse pelos ares. Numa das paredes, Klaus colocava seu peso sob o arpão de pesca numa inútil tentativa de fazê-lo se desprender do gesso. Nenhum deles estavam usando os poderes - e isso, de alguma forma, fazia com que a situação parecesse ainda pior. Era como olhar para o teto de uma Capela Sistina do caos.

A histeria de Johnny fez Lila apertar a alça da maleta com força, sentindo-se furiosa - não, ela não largara o objeto até ali, e não o faria agora. Precisava de algo em que se agarrar e, neste caso, havia escolhido o passado. O antes. Os dias em que seguia ordens de alguém que fingia amá-la e, mesmo na farsa, se deliciara com a possibilidade. Tudo parecia estar dentro da maleta - e dentro dela também. Sem pensar, sentiu seus pés avançarem rumo a confusão, mas Diego a interrompeu com um braço, resmungando uma onomatopeia de censura que indicava a má ideia. Eram loucos demais para uma única sala, não precisavam de mais um. Mas isso não a impediria de protestar.

— Soltem ela, vão machucá-la!

Olhares recaíram sobre ela. Imediatamente, Johnny sorriu para Lila, seu sorriso enorme e lunático, que a envolveu num segundo reconfortante antes que a situação voltasse a alarmá-la.

— Tá vendo? — Klaus ainda fazia força. Sua testa brilhava e o suor escorregava para dentro da camisa branca abandonada pelo paletó, que agora se arrastava em algum lugar aos pés dos irmãos — A namorada do Diego conhece ela.

— Que maravilha — Allison grunhiu, inclinando o pescoço para longe do hálito quente e raivoso de Reginald, que gritava, para Johnny, sobre nunca ter visto aquela aberração em toda a sua vida. — A amiga da sua namorada está tentando nos matar, Diego — Ela olhou para o Número Dois, que estalou a língua em indignação.

O rosto de Lila se contorceu diante da acusação. Não achava tal afirmação absurda apenas por conhecer o nível controverso de honestidade da família Hargreeves – ou de qualquer um que conhecera até então -, mas apesar dos gritos e pontapés, aos braços de Luther, Johnny não parecia ter o necessário para colocar alguém em perigo.

— Johnny, isso é verdade?

— Vai ser quanto eu terminar de esganar esse velho maldito!

E a declaração fez com que o conflito explodisse novamente; uma granada de promessas violentas, praticamente impossíveis de serem realizadas, mas que respigava sua intensidade e estresse em todos os envolvidos. Lila balançou a cabeça e respirou fundo. Sem pensar duas vezes, enfiou a maleta nas mãos de Diego e direcionou até Johnny, que foi solta por Luther assim que Lila a puxara pelo braço, como uma mãe irritada com a filha.

— Johnny, chega! Ele não é o Reginald que você pensa.

Johnny olhou para ela, a testa franzida. Um sorriso nervoso apareceu e reapareceu junto com o ar incrédulo de suas sobrancelhas.

— Ficou louca? É claro que é — Então, aproximou o rosto de Lila — Vamos, estamos na vantagem agora. Somos duas. Pegue um abajur e me ajude a acabar com ele.

Johnny esticou um braço para o objeto, mas Lila a impediu antes que o agarrasse.

— Me escuta — Pediu com a voz moderada, fazendo Johnny encará-la com aqueles olhos quase nada azuis, escuros como bolas de gude manchadas. — Não foi só Diego que estava em 1963 junto comigo. Eles e os irmãos ficaram um tempo por lá e acabaram fazendo coisas... — Lila se lembrou do Diego psicótico que conhecera naquela clínica, a obsessão dele por J. F. Kennedy e nas manhãs em que o flagrara falando sozinho, a caminho do refeitório, sobre salvar o presidente. A lembrança a fez desejar encará-lo, mas ela se obrigou a mantê-la apenas em Johnny. — Coisas no passado que alteraram a linha do tempo, o presente deles e o—

— Meu presente — A voz de Johnny saiu num fio, tão fraca e fina, que parecia estar prestes a arrebentar.

Nunca desejara ir para casa. Anos atrás, quando acordou em Roswell, presa numa concepção artificial de tempo e espaço, e percebeu que, para ela, o amanhã nunca chegaria, Johnny preferiu não esperar. Não havia escapatória, ninguém a libertaria. E a esperança, de alguma forma, tornava sua cela ainda menor. Então, se abraçou àquela realidade como se não se importasse com o dia de seu aniversário – já teria passado?— ou com a véspera de natal – como ela sentia saudades do inverno. E, quando sentia que estava a ponto de enlouquecer, fazia da presença daqueles humanos reiniciáveis o seu próprio bote salva-vidas. No fundo, Johnny sabia que a razão de não desejar ir embora era porque sabia que ninguém a esperava do outro lado. Lá, no empoeirado e repetitivo labirinto em que vivia, podia ao menos dizer que pertencia a algum lugar no mundo – ainda que o seu mundo fosse uma única cidade, num único mês, numa única terça-feira.

Agora, porém, Johnny sentia pela perda do que poderia ter tido caso não estivesse em Roswell. Sua linha do tempo, a qual pertencera quando nasceu, já não existia mais, e as possibilidades que imaginara para ela não passavam de sonhos, irreais e inalcançáveis.

Johnny estava sentindo falta do que nunca tivera. E nunca mais teria.

Escutou quando Lila contou aos Hargreeves sobre a sua origem. Existiam 43 bebês azarados, alguns deles, encontrados por Reginald e testados até que o velho reconhecesse a formação perfeita de uma academia de heróis mais impecável ainda. A capacidade do homem em viajar voltar no tempo, com uma única maleta, para que suas escolhas pudessem ser desfeitas e novas crianças fossem escolhidas. Crianças tiradas do dia em que nasceram, alimentadas com a possibilidade de pertencerem a algo até serem insuficientes e descartadas para darem lugar a uma nova experimentação da Umbrella Academy. A morena também lhes contou sobre o paradeiro egoísta de cada uma delas. A dimensão paralela, presa numa cidadezinha no ano de 1968, destinada a ser reiniciada no mesmo dia todos os dias desde que Johnny fora colocada lá pelo Reginald que eles conheciam. O Reginald que, diferente daquele, havia escolhido sete filhos adotivos para salvarem o mundo.

— Espera um minuto — Allison estava encostada na parede ao lado de uma das janelas do cômodo. Até aquele momento, estava olhando para fora em silêncio, assistindo às árvores secas do pátio malcuidado da mansão balançarem enquanto mastigava mentalmente tudo o que era dito por Lila. Então, a Número Três se afastou da cortina e olhou para Johnny — É por isso que você queria nos matar? Pelo nosso pai ter nos adotado?

Cinco bufou, irônico.

— Chegou tarde — Ele falou. — Como já foi dito, meus irmãos fizeram coisas demais em 1963. Eu tentei impedi-los, mas olhe só para esses rostinhos... são incontroláveis.

— Ah, claro — Diego, que girava sem parar um pequeno punhal entre os dedos, curvou-se para frente na poltrona que agora estava sentado e, dali, semicerrou os olhos para o menino. — Porque você, garotinho de ouro, não teve culpa nenhuma.

— De qualquer forma — A atenção de Cinco manteve-se em Johnny. — Conhecemos Reginald enquanto estávamos no passado. O jovem e mesquinho Reginald — Ele controlou um sorriso provocativo, consciente de que o velho lhe estrangulava mentalmente àquele momento. — Ele nos convidou para um jantar amigável, coisas foram ditas e alguns drinks voaram. E, bem, depois disso, quando chegou a hora, ele decidiu não nos adotar e a função acabou indo para John Perseus.

Johnny franziu o cenho, e, diante sua visível dificuldade em compreender os fatos, Luther se aproximou, timidamente, com uma revistinha em mãos.

— Aqui, ele está no verso — Com cuidado, o grande homem manuseou o livro, dobrando a contracapa para que a fotografia promocional de – conforme o enunciado – O FABULOSO DR. PERSEUS se tornasse visível. Durante o discurso de Lila, o Número Um havia retornado para cozinha para apanhar seu objeto de estudo – e entretenimento – e aproveitara a deixa para terminar o seu frio chocolate quente. Luther estava certo de que, no fim das contas, talvez a revistinha pudesse ter alguma utilidade. Johnny hesitou antes de apanhar o objeto, e o Número Um insistiu, encolhendo os ombros. — Pode ajudar.

No papel, Perseus sorria para ela. Se parecia com um político. Ou um dentista. E Johnny não conseguia decidir qual das opções era a mais assustadora.

— Cientista e criador da Sparrow Academy? — Ela leu o subtítulo serifado na extremidade da imagem. Quando ergueu a cabeça dali, esfriou ao notar que Reginald lhe encarava.

— John precisava proteger a terra de alguma forma. Ele encontrou sete.

— E diferente de nós, a Sparrow Academy é um sucesso — Luther disse ao lado dela, pensativo.

Cinco abandonou o braço do sofá – um uivo de alívio para Reginald, que havia pedido severamente para que o garoto não colocasse os pés no estofado indiano – e esfregou os lábios com a ponta dos dedos, a cabeça apontada para baixo. Seu cérebro estava trabalhando. As engrenagens pareciam ter voltado ao trabalho, e ele estava surpreso por não ter notado quando elas pararam.

— Se a ordem dos fatos está correta, nessa nova linha do tempo Perseus provavelmente possui as informações que Reginald possuía na nossa. Ele deve saber sobre os outros como nós e onde eles foram escondidos, afinal, ele também conseguiu reunir sete esquisitões na mesma equipe. Algo me diz que essa era isso que estava faltando para consertarmos as coisas. Viajar entre dimensões. Linhas paralelas. Se Perseus tem alguma ideia sobre isso, talvez ele possa nos ajudar.

Luther estava descrente.

— O cara é discreto, Cinco. E importante — Disse, e o pequeno ergueu uma sobrancelha, afundando as mãos nos bolsos da bermuda. — Ele não vai nos dar ouvidos.

Um grunhido contrariado soou perto deles, no tapete. Klaus estava ali, sentado com as pernas cruzadas sobre o colo como se fosse meditar, apesar de não parecer favorável à ideia da busca pela paz interior. Com a cabeça jogada para trás, apoiada no assento do sofá, mirava o teto com os olhos bem abertos. Em silêncio até então, passara aquela última hora se perguntando sobre quando seria o momento de usar os três comprimidos que havia conseguido num beco pela manhã, e a demora para tal oportunidade o deixava irritado. Escutara, não fazia muito tempo, uma gargalhada ao seu lado, mas estava ciente de que ela não pertencia a nenhum ser visível naquela sala. O barulho pesou em seu peito. Em algum lugar de seu cérebro, a lembrança de Ben piscou para ele, petulante como sempre, e a imagem resgatada o fez querer rasgar a revista que Johnny folheava em pedacinhos.

— Qual é, pessoal! Vocês já olharam pra eles? Ninguém ali me parece disposto a papear comendo rosquinhas — Suas mãos estavam espalmadas no chão. —Primeiro foram os suecos, depois essa daí — Um dedo foi levantado e apontado para a direção de Lila, e ela juntou as sobrancelhas. — Não sei vocês, mas eu não tô muito a fim de levar uma surra de um super-bunda-mole de novo.

— Precisamos tentar — Cinco falou.

Bufos irritados foram soprados pelo ambiente.

— Diga por você — Diego começava a se irritar. O Número Dois se levantou, em silêncio, como se buscasse maneiras de continuar o raciocínio. Foi para trás da poltrona que estava sentado e ali respirou fundo enquanto caminhava de um lado para o outro. — Uma guerra nuclear, o presidente, a lua — Ele apontou a faca para o teto e então parou, encarando os irmãos. — É maluquice minha se eu disse que o Klaus tá certo? Não sei se vocês perceberam, mas tudo o que fazemos acaba em algo explodindo. Não quero que a nossa situação piore e eu já tô cansado de lutar pra acabar no mesmo lugar.

— Ah, por favor, nem todos aqui são preguiçosos como você, Diego — Cinco disse, tornando o rosto do irmão vermelho.

— É? E você vai contar com quem? O sr. Moletom ali? — Apontou para Luther, e o Número Um lhe mostrou o dedo do meio.

— Vai se danar, Cinco.

Um novo bate-boca se instaurou novamente entre os Hargreeves. Allison voltou para a janela e encostou sua testa no vidro, desejando que os irmãos desaparecessem. Vanya tomou o lugar de Diego na poltrona e, na frente dele, deixara o corpo descansar pesadamente, como se tivesse perdido uma guerra na qual sequer entrara. No centro do caos, Johnny permanecia de cabeça baixa, olhando para a imagem de Perseus. Àquele ponto, sentia suas forças se esvaindo. Um filete de suor frio lhe umedecia os cantos da testa e não sabia se seu rosto ainda tinha cor. Sentia ela desaparecendo, deslizando para os pés, como um novelo de lã, e quando virou a página para observar a fotografia da Sparrow Academy, foi como se o último fio de linha dela fosse puxado. As narinas de Johnny se expandiram. Ela se lembrou dos dançarinos da boate Sparkles, do clima seco e arenoso, da solidão de viver anos num dia só. Precisava de seus pinguins, de suas carteiras, das canetas e do seu trailer. Já havia escutado histórias em que prisioneiros desejavam voltar para o cárcere depois finalmente libertos. Após tanto tempo presos, a liberdade, de certa forma, se tornava aterrorizante, e a prisão, um refúgio. E Johnny precisava do dela.

— Preciso voltar.

A declaração fez com que, no meio da discussão, Cinco parasse de falar. De repente, uma lâmpada parecia ter sido acesa acima da cabeça de Johnny, e isso lhe causara uma estranha sensação de constrangimento. Quando Lila se aproximou rapidamente, pronta para ampará-la, Johnny envergonhou-se ainda mais. Sentia-se como um filhote abandonado no meio da estrada e, naquele caso, os Hargreeves eram os carros.

— Sinto muito, Lila, mas isso é demais pra mim. Eu preciso ir pra casa — Ela olhou no fundo dos olhos de Lila e sua voz tremeu.

— Viagens interdimensionais se tornaram passeios na rodoviária agora? O que tá pensando? — Cinco lambeu os lábios com força, parecendo estar prestes de ter um colapso nervoso. De todas suas teorias, Johnny e Lila haviam lhe dado a única que se aproximava do sucesso absoluto. Não precisava da confiança dos irmãos para saber que, daquela vez, ele conseguiria. As evidências imploravam para serem ligadas umas às outras, solucionadas por ele, e, agora que estava tão perto, não deixaria que seu principal tiro saísse pela culatra. Ele se aproximou, a expressão endurecida feito mármore, marcada pelo vinco raivoso que era apertado entre suas sobrancelhas. Uma chama autoritária nos olhos, quase irrefutável. De repente, enxergou-se no corpo do pai, há muitos anos dali, irritado numa mesa de jantar pelos desejos imprudentes do Número Cinco de treze anos. Um eco assoprado pela caverna do tempo.

— Você não pode ir e simplesmente fingir que não faz parte disso agora.

Johnny inclinou a cabeça para o lado.

— Então, observe.

A revista foi empurrada com força contra o peito do garoto. Johnny caminhou rapidamente até a porta e, como o Número Cinco que um dia se levantara no meio do jantar para viajar no tempo sem autorização, saiu.