Hearts Of Sapphire

¨t h i r t y - s i x¨


Conall ficou encarando por alguns segundos a queimadura no colo da aliada até que, com um passar de dedos, Corinna fez com que a pele no local voltasse a ser tão imaculada quanto antes.

— Uau. — O Escolhido de Nix assoviou. — Sabe o que isso significa? Talvez Rexta e Trevan fiquem de olho em você.

Corinna fez uma careta. A Senhora do Fogo e o Senhor da Lava. Não sabia qual das duas Ordens era a pior para se ter alguma ligação.

— Não acho que deva ser uma preocupação urgente. Quero dizer, não creio que eu, por mim mesma, tenha queimado Nyota. A marca da queimadura, tanto em mim quanto nela, era no contorno desse pingente.

A garota tocou a minúscula pedra e correu os dedos até o fecho do colar. Aparou a peça com as mãos e estendeu no espaço entre ela e Conall.

— Você acha que o colar queimou você e Nyota? — O garoto pegou o objeto da mão da menina, avaliando-o de todos os ângulos. O pequeno pingente escorregando através da fina tira de tecido.

Corinna já conseguia sentir o leve mal-estar causado pela falta do acessório. Era a confirmação que ela precisava para o que acontecera no dia que ela e Kallien brigaram ainda em Fortuna. Não foi apenas suas emoções abaladas que a deixaram naquele estado perturbado, mas também a ausência do colar.

— Eu nem pensava em queimar ninguém, só queria sair dali ilesa. Só queria respirar. Acho que, se eu tivesse feito aquilo, não teria me machucado igualmente no processo.

Conall levou o pingente até bem próximo de um olho:

— Faz sentido, mas você ainda não tem controle total dos seus poderes. Theodor disse que é muito comum...

A caçadora arregalou os olhos:

— O que você disse? Theodor sabe dos poderes? Sabe de nós três?

— Não! Não sobre nós... — O rapaz se apressou em dizer. — Só sobre mim.

— Por quê? Ele viu você usando-os? Forçou você a contar? — A Escolhida começou a sentir o suor brotar em sua testa.

— Theo não me forçaria a isso. Eu contei. — Conall disse fechando um dos olhos e afastando um pouco o pingente.

— Você parece confiar muito no Senhor Ônix. — Corinna murmurou.

— E você parece desconfiar muito dele. — O menino enfim estendeu o colar de volta para a dona. — Não dá para ver de que tipo é. É pequena demais.

A jovem também não tinha chegado a nenhuma conclusão quando tentara analisar por si a pedra. Respirou fundo aliviada ao prender o fecho ao redor do pescoço mais uma vez.

Sem precisar pedir, o Escolhido de Nix então começou a contar tudo o que o Governante Ônix lhe revelara.

Rexta prometeu que o deixaria ver Corinna.

Contudo, o encontro só aconteceria depois que ele cumprisse sua parte no acordo.

A Governante tinha revelado, após ele aceitar os termos antes mesmo de saber do que se tratava, que ele deveria se submeter ao uso de um tônico "conversivo e fortificante", segundo suas palavras.

Não era como se ele se arrependesse de ter aceitado — faria de tudo para manter Corinna segura —, mas, naquele momento, frente à frente com o pequeno recipiente, e com os rumores do real motivo da morte de Buford rondando seus pensamentos, o Escolhido não podia deixar de sentir um certo receio em cumprir sua parte do acordo.

Sentiu uma das mãos da Senhora Rubi tocar seu ombro de maneira encorajadora.

— Não se preocupe, querido. Isso será um passo em direção à vitória. — sua voz era suave, calmante e persuasiva, tudo ao mesmo tempo.

— Por que eu? — Kallien perguntou e se sentiu uma criança petulante.

Rexta correu o braço por seus ombros e se abaixou até ficar da altura do rapaz sentado na cadeira. Com a mão livre, pegou o queixo do garoto e virou para que ele a encarasse. A mulher se aproximou ainda mais até que os olhos de ambos estivessem conectados, até que os lábios cor de carmim dela quase se encostassem nos dele.

— Porque você, sem dúvidas, é o melhor deles. — ela disse num sussurro convincente.

Bem no seu âmago, Kallien sabia que aquelas palavras eram meros artifícios de persuasão. Aquele era um dos joguetes preferidos dos deorum.

Ainda assim, quanto mais tentava se prender naquele fato, quanto mais ele tentava não se deixar ser encabulado, mais o Escolhido falhava deixando as palavras ecoarem para seu interior.

Eram como um ar contaminado que entrava por seus poros e rapidamente se espalhava, procurando uma articulação, um músculo, um órgão para se alojar. Quanto mais Kallien tentava se manter fiel a si mesmo, mais as palavras retumbavam ao criar garras se encravando em cada célula até que ele fosse um simples espectador de suas próprias ações. Até que estivesse estufando minimamente o peito em orgulho e tendo seu ego acariciado com fervor.

Até que acreditasse que era, de fato, o melhor.

Kallien se virou novamente para o recipiente quando a Governante se levantou dando o espaço que o garoto precisava agora que a mulher já tinha as garras presas bem firmes em seu ser.

O Escolhido de Fortuna respirou fundo antes de estender as mãos para girar a tampa. A cada balançar da pequena garrafa, o líquido adquiria uma cor diferente. Ao virar o vidro nos lábios, o líquido era de um tom de vermelho bem vivo.

A última gota escorregou em sua língua direto para a garganta e o rapaz voltou a pôr a garrafa na mesa.

Não sentiu nada de anormal até levantar-se para anunciar sua ida até Corinna agora que havia cumprido sua parte do acordo.

Estava na metade do caminho da porta e as palavras estavam prontas para deixarem sua boca no momento em que suas pernas falharam.

Então, sua visão.

E, por fim, sua consciência.

O Governante Esmeralda tinha feito planos de checar Corinna assim que o confronto terminasse, mas seu adorável pai tinha outros planos. Marjorie, ao menos, lhe deu um aceno de cabeça com a intenção de tranquilizá-lo.

Athlin estava em pé enquanto tiravam medidas do seu torso. Não podia reclamar do período que passara ali naquela posição; suas medidas não eram tão diferentes da última vez. Já seu pai tinha que passar pelo processo completo sempre. Um fato que não era nem um pouco surpreendente devido à robustez incessante do ex-Governante.

Auremio, ironicamente, discursava sobre a importância da aparência para uma posição de poder.

Há pouco tempo, o filho prestaria atenção em cada palavra do pai.

Se exercitaria até as pernas e os braços fraquejarem de cansaço. Cortaria os cabelos curtos como o do pai e adotaria a expressão de desprezo permanente dele.

Porém, quando notou que, mesmo que devastasse o mundo com um mero gesto das mãos, não teria o devido reconhecimento do progenitor, parou de tentar.

O mais velho ainda tagarelava quando o alfaiate pessoal de Athlin acenou para que o Governante descesse do pequeno elevado, sinalizando que a presença do garoto ali não era mais necessária.

— Alguma preferência de cor, Vossa Excelência? — o homem falou acompanhando-o até a porta.

— Só me deixe apresentável, como sempre faz, Melor. — O Senhor Esmeralda deu um sorriso para o alfaiate que girava a maçaneta. Athlin se lembrou de algo ao passar pela soleira e acrescentou baixinho tocando o ombro do homem. — Pode caprichar dessa vez.

Melor pareceu surpreso e Athlin sentiu suas bochechas esquentaram. O alfaiate conhecia e vestia o rapaz desde praticamente quando este nasceu. O atual Governante Esmeralda nunca precisara se esforçar para ressaltar seus quesitos físicos.

— Algum interesse em vista, senhor? — perguntou com um pequeno sorriso esperto.

— Talvez. — Athlin respondeu quase sem mover os lábios, como uma criança relutante em assumir que foi pego no flagra e, então, olhando por cima do ombro do empregado para se certificar que seu pai estava absorto em seu discurso hipócrita, o rapaz sussurrou: — Por falar nisso, sei que não está acostumado a fazer esse tipo de coisa ultimamente, mas...

O Senhor Esmeralda enfiou um pedaço de papel, sendo o mais discreto possível, no bolso frontal da camiseta de Melor e, com um aceno de cabeça, se retirou.

O empregado não se demorou em abrir o papel, colocando-o entre as páginas de sua caderneta de medidas, e logo franziu a testa ao notar as medidas femininas seguidas de um "Urgente" e "Quando estiver pronto, apenas coloque juntamente com o meu traje em meu armário."

Melor sorriu consigo mesmo e sacudiu a cabeça em negação enquanto anotava as medidas novas ao lado das do Governante e deslizava a pequena nota na sacola com tecidos e objetos descartados.

— Você controla o vento. — Corinna inclinou a cabeça ao olhar para Conall ao seu lado. — De que Ordem esse poder pertence? Ônix?

Conall, que exibia o controle recém-adquirido de sua magia, girando no ar o lençol de uma das camas e moldando-o apenas com ventos em direções variadas, deu de ombros.

— Theodor disse que meus poderes são muito recentes para terem uma só forma. Claro que há menos chance de eu ser da Ordem dele, pois Ônix controla e conjura o ar, eu consigo criar ventos apenas se já tiver um "ar" existente. A outra opção mais provável seria a Ordem Secundária Ametista, eles controlam o clima e, com muito poder, podem até controlar as estações.

— Uau. Isso seria quase como ter uma variedade de poderes. — Corinna pensou em neves ultra congelantes e chuvas torrenciais. Em florestas florescentes e em um calor escaldante. — Se você pudesse escolher para qual iria?

Conall riu um pouco deixando o lençol cair perfeitamente de volta na cama em frente a eles.

— Não é estranho? Há poucas semanas, nós seríamos chamados de idiotas por questionar algo assim entre os humanos. E, agora, olhe para nós, estamos divagando sobre algo que tem grandes chances de ser real. — Apesar de Corinna nunca ter sido ingênua o bastante para querer algo daquele poder,que sempre pareceu sujo, dos deorum, ela gostava de como seu amigo via aquilo não como uma maldição nem um alvo desenhado bem nos centros de seus corpos, mas como uma benção, uma melhoria.

E talvez fosse mesmo.

Talvez dali viesse aquele sentimento de ser a mudança no mundo que a incomodava desde que conseguia se lembrar.

Um poder não para escravizar e subjugar, mas para libertar.

— Mas, não sei. — Conall continuou. — A Ordem de Theodor é como uma família imensa. É bem acolhedora.

A Escolhida não via como o mesmo Theodor aparentemente sarcástico e egocêntrico poderia governar algum lugar próximo de algo acolhedor, porém manteve o pensamento para si.

— Não sei muita coisa sobre a Ametista além de que, hoje em dia, eles são bem poucos e bastante reservados. Embora tenham grande potencial, parece que tem eras desde que um líder realmente poderoso ascendeu. As duas Ordens são bem ligadas e parece que têm estilos alinhados, então... — Conall mordeu o lábios e estreitou os olhos tentando pensar em uma resposta. — Não sei.

Os dois riram.

— Acho que ainda estou absorvendo o simples fato de ser um humano e ter poderes. — finalizou o Escolhido de Nix.

A menina assentiu com a cabeça entendendo o que o rapaz queria dizer enquanto materializava um lençol sobre os dois pares de pés.

Quando o sangue esfriava depois de um confronto o Galpão podia se tornar fatalmente congelante.

— Eu queria fazer isso, sabe? Materialização. Acho o maior barato. — Corinna gargalhou lembrando de poucos minutos mais cedo quando ela mostrou aquele mesmo poder para o amigo. — Materializaria um monte de comida gostosa. — continuou entre risos.

— Não é assim que funciona. — a jovem explicou. — Caso contrário, eu não estaria desaparecendo dentro dessas roupas.

Conall parecia decepcionado:

— Você simplesmente não consegue materializar comida? — perguntou em choque.

A Escolhida de Fortuna ergueu uma mão e fechou os olhos para se concentrar.

Imaginou uma maçã bem madura, suculenta e vermelha. Imaginou a fruta desde a carcaça e as sementes até a casca atrativa. Toda textura e peso. Sentia-os na ponta dos dedos.

Abriu um dos olhos verificando o fruto "real" que jazia na palma de sua mão.

Conall observava tudo quieta e atentamente até que a menina se virou e disse:

— Prove.

O rapaz lançou um olhar desconfiado para a aliada, mas pegou o fruto.

Apesar de saber a verdadeira natureza do alimento, Corinna não conseguia evitar a salivação. Seu estômago já estava cansado de reclamar de maneira audível, agora apenas uma dor constante acompanhava a menina.

O Escolhido de Nix analisou todos os ângulos antes de dar uma mordida generosa.

Corinna prendeu o riso.

Prestes a rebater com a amiga enquanto o suco escorria pelo seu queixo, Conall parou no meio da ação quando sua língua ficou pesada, sua garganta se contraiu e ele engasgou. Num instante, o menino cuspiu tudo no chão.

— Que droga! — ele disse com uma voz esganiçada. — Parece que estou comendo algo como poeira, só que pior. Algo como...

— Cinzas? — A caçadora levantou uma sobrancelha e o jovem assentiu veementemente.

— É horrível! — o garoto de Nix passou as costas da mão na língua tentando se livrar do gosto amargo. — Nem se você tentar imaginar vividamente o gosto?

Corinna negou com a cabeça.

Já tinha tentado de tudo no desespero da fome.

— Poderia jurar que vi Theodor materializar comida e, de fato, comê-la. Não é possível que ele se digne a comer uma tortura dessas.

A menina deu um sorriso de canto:

— Provavelmente, ele apenas transportou a comida de um lugar para outro. Deve ser uma outra forma de materialização mais poderosa.

O menino cruzou os braços:

— Continua sendo legal, menos para comida.

A primeira etapa do Sacrifício se aproximava do fim.

Os preparativos para a celebração do início da segunda corriam a todo vapor.

Mais alguns poucos confrontos e com um equilíbrio entre o azar e sorte, onze ascenderiam para os próximos desafios e os outros onze se dividiriam entre o saldo de quebrados e o de mortos.

Onze vidas esquecidas e marcadas antes mesmo do golpe decisivo.

Para os deorum, era para ser apenas mais um dia comum. Um em que eles levantariam de seu luxo, de sua superioridade e assistiriam aos condenados pelos deuses acima caírem em sua própria desgraça e miséria.

Por um momento, eles tiveram algo próximo do medo. Por um momento, o destino selado há eras atrás sussurrava sobre o seu retorno.

Um tremor que não apenas cortara o Setor Superior ao meio, mas também toda a fachada de falsa soberania.

Mas então tudo voltara ao normal.

Talvez fosse somente a própria natureza se alongando por ficar tanto tempo dentro da coleira que a magia impunha ao seu livre-arbítrio.

Era engraçado pensar que uma possível revolta da natureza ameaçasse menos do que aquela Profecia.

Bendita para alguns, maldita para muitos.

A ampulheta invisível e fatal escorregava os últimos grãos da parte superior para a inferior.

O prazo se aproximava como um rufar de tambores que anunciariam por fim ou a condenação ou a redenção.

A noite estava estática. Sem vento, sem som. As estrelas pareciam ter abandonado suas piscadelas.

Um sentimento de espera pairava sobre o mundo.

Um pai olhava para o céu hesitante em se permitir ter esperança. Uma mãe rezava preces antigas de proteção. Um garoto parecia ter redescoberto o sentido de viver. Já perderam tudo uma vez, mas não tinham se acostumado com aquele estado de perda eterna.

A esperança era a única coisa que rondava como um guarda atento cumprindo seu turno.

Num palácio, um rapaz evitava qualquer socialização que não fosse dele com o céu preto como sua Ordem. A visão era ressaltada pelos brilhos das estrelas.

Coisinhas altruístas. Tinham poder para brilhar e encantar sozinhas, mas ainda assim decidiam se juntar com o breu da noite.

Quem se preocuparia em apreciar a escuridão na ausência da luz?

— Poético e dramático. Um pouco...piegas, até para você. — Theodor apenas se limitou a respirar fundo e dar mais um pequeno gole na bebida dentro da taça, sem se importar em reconhecer a presença do irmão do meio. — É falta de educação ignorar as pessoas.

— Na verdade, ignorar você é um dever. E um especialmente prazeroso de ser cumprido. — O Governante Ônix encostou a cabeça no pilar às suas costas.

Thalles bufou, mas repetiu o gesto do irmão, apoiando o corpo da outra face da pilastra.

— Devo começar a planejar outra mentira? — Theo franziu a testa e o irmão explicou com um sorriso na voz. — Faz um tempo que não te encontro nesse estado de reflexão. E sempre o passo seguinte era você desaparecer por horas, ou até mesmo dias, sem deixar nenhum bilhete deixando mamãe louca.

O mais velho curvou os lábios em lembrança. Não por deixar sua mãe louca, óbvio, mas pelo sentimento de liberdade.

Poder escolher fugir para qualquer lugar do mundo.

Ainda que, na maioria das vezes, acabasse escolhendo apenas um.

Theo negou com a cabeça.

— Não. Não precisa planejar. Pretendo não ir longe dessa vez.

Thalles torceu a boca.

— Você nunca pretende.

— Tem razão, só vou aonde a magia quer.

Theodor gesticulou preguiçosamente com uma mão e um túnel com espirais negros de vento apareceu diante dos olhos dos dois irmãos.

— Você é a única pessoa que fica mais confortável sendo levado para um lugar aleatório do que na sua casa.

Desencostando-se do mármore, Theo inclinou a cabeça como se avaliasse a afirmação do outro.

— A dúvida é...excitante.

— As garotas lá embaixo também. — Thalles retrucou e o Senhor Ônix gargalhou.

— Considere um ato de bondade meu para você e aproveite. — ele deu um passo para dentro do portal.

Thalles se virou com um sorriso esperto enquanto metade do corpo do irmão já sumia no interior da sua própria magia.

— Você sabe que eu vou.

O acesso de tosse apenas deixava mais evidente a fome. A barriga da Escolhida doía enquanto ela observava as estrelas no pequeno visor. Seu dedo tremia um pouco ao desenhar o formato dos pontos brilhantes.

Já passava da meia-noite e o ar abafado a deixava inquieta.

Era como se o Galpão fosse mesmo feito para testar seus limites.

Uma noite, era frio como geleiras. Na outra, era quente como diziam ser o inferno.

Naqueles momentos, era difícil não se arrepender de ter escolhido aceitar a oferta de Athlin somente na segunda etapa do Sacrifício. Era difícil não se considerar tola.

Uma gota de suor era o recurso mais refrescante que tinha ao seu alcance.

O que não faria para entrar na noite aparentemente fresca que era mostrada naquele visor...O ar batendo em seu rosto.

Crec.

Corinna paralisou.

Não tinha ouvido ninguém abrir nenhuma das portas do Galpão, mas sabia que os deorum não precisavam de uma porta para entrar em qualquer lugar.

A luz artificial da paisagem não era o suficiente para iluminar além da cama onde a garota estava sentada. Ainda assim, ela abriu bem os olhos tentando enxergar alguma forma na escuridão.

Crec.

Instintivamente, sua mão direita segurou uma das canecas onde levavam água para ela. A esquerda fez um esforço para materializar a caneta com a ponta mais afiada do que o normal. Pela dificuldade que teve para fazer aparecer um objeto com que já estava acostumada, seria ainda mais trabalhosos fazer com que ela desaparecesse, além disso, era mais fácil explicar uma caneta do que uma arma.

A magia deveria estar ligada com resistência. Se estivesse, tremendo e com fome do jeito que estava, seria impossível a jovem fazer algo útil com ela.

A Escolhida de Fortuna respirou fundo, lembrando das caças noturnas que já fizera.

Não foram muitas.

Seu pai preferia voltar para casa cedo. Dizia que as florestas poderiam ser ainda mais mortais à noite.

Aguçou seus sentidos, tentando tatear sensorialmente um outro corpo no mesmo ambiente, uma outra respiração.

Estava próxima, poderia sentir uma energia suave e pulsante em contraste com a sua ansiosa e nervosa.

Ainda não conseguia distinguir nada da escuridão, mas sabia que estava perto o suficiente. Pegou impulso para lançar a mão direita e tirar consciência — ou pelo menos ferir— de quem ousara ir até ali.

Contudo, sua mão parou no meio do caminho com um baque e o barulho de seu pulso estalando, como se tivesse acertado uma parede, mas não poderia ser...

Um rosto dono de um sorriso irritante ficou visível.

O quão sortuda ela poderia ser para receber a visita do Governante Ônix uma hora daquelas?

Tentou puxar sua mão de volta, mas então percebeu os espirais negros que flutuavam como algemas móveis em volta do seu membro.

— Você quase fraturou meu pulso, será que poderia soltá-lo? — pediu impaciente.

— Você ia me dar uma pancada na cabeça com uma... caneca? — Theodor franziu a testa e olhou da mão da garota para o seu rosto. — Você iria me atacar com uma caneca? — Quando a menina tentou esconder a mão esquerda com a caneta, que agora parecia o mais patética possível, atrás do corpo, o Senhor Ônix direcionou o olhar justamente para ali e num movimento rápido segurou com os próprios dedos o pulso da menina. — E uma caneta? Onde pretendia enfiá-la?

Não sabia como ele poderia fazer aquilo, mas Corinna teve certeza que o deorum fazia o possível para que ela visse, mesmo quase num escuro completo, sua expressão de escárnio.

De repente, a proximidade que outrora poderia ter lhe dado vantagem, caso a pessoa na sua frente não fosse o maldito Governante mais poderoso de Excelsior, naquele momento, a deixava envergonhada e agoniada.

— Desculpe-me por desapontá-lo. Minha espada invisível não estava polida o suficiente.

O Senhor Ônix achou graça.

— Interessante ver que ainda consegue ter bom humor aqui embaixo. — ele soltou o pulso de Corinna, não antes de tirar a caneta de seus dedos, e liberou a magia que aprisionava a outra mão.

A menina massageou o pulso.

— Graças a vocês, nossa espécie está acostumada a viver com pouco.— ela murmurou e se pôs a olhar para os brilhantes olhos do Governante Ônix, os pontos dourados tinham se multiplicado desde a última vez que o encarara e naquele momento agiam quase como faróis contrastando com toda aquela penumbra que Theodor parecia confortável em se manter. — Por que veio aqui?

— Fugi de uma celebração. — ele deu de ombros andando em direção a cama vazia bem ao lado da que a Escolhida dormia.

Corinna não pôde ver a careta que o deorum fez ao sentir a dureza do colchão enquanto se sentava desleixadamente no móvel.

— E esse foi o melhor lugar que você pode pensar para vir? — ela arqueou a sobrancelha embora o rapaz não tivesse os olhos nela.

— Acho que o fator silêncio foi essencial, — e num tom sarcástico, Theo acrescentou — mas a companhia, com certeza foi o fator decisivo.

A menina rolou os olhos, mas ainda tentava processar o que o levava, de fato, a estar ali. Não fez mais perguntas, apenas voltou para sua cama e sentou-se.

Seu corpo estava cansado e ela voltou a focar no mormaço do lugar. Manteve as costas tensas porque sabia que não ousaria dormir enquanto Theodor estivesse ali a espreita como uma serpente se preparando para o bote.

Do nada, um barulho cortou o espaço entre sua cama e a que o Governante Ônix se recostava.

Um carinho prateado repleto de comida tinha se materializado entre os dois.

Só o aroma que chegava até suas narinas era o suficiente para o seu estômago reclamar audivelmente.

O Governante só poderia estar de brincadeira.

— Pode pegar se quiser. — ele ofereceu enquanto pegava um pedaço de algo que Corinna não conseguia ver, já que estava decidida a não olhar para aquela direção. Não deixaria que sua barriga a traísse e depois se visse presa em um acordo indesejado e inconveniente com o Senhor dos Ares.

— Obrigada. — disse seca. De alguma forma a energia que emanava de Theodor lhe dizia que o rapaz estava dando de ombros como quem falava "Você que sabe." — Isso é alguma tentativa de me fazer aceitar sua oferta?

— De maneira alguma. — afirmou enquanto terminava de mastigar. — Por que eu perderia meu tempo quando você já aceitou a do Senhor Esmeralda?

Corinna virou o rosto rapidamente para encará-lo.

— Como...?

Theo levantou a mão.

— Não adianta implorar, — ironizou. — Não revelarei minhas fontes.

— As notícias correm rápido aqui. — refletiu mais para si mesma do que para o convidado indesejado.

A jovem voltou a apoiar as costas na parede e olhar para frente. Queria que ela estivesse gelada contra seu corpo mas como tudo daquele Galpão, a parede não cederia aos seus desejos.

— Eu posso sabe... — O Governante Ônix começou fazendo um gesto indefinido com as mãos e um de sopro com os lábios.

Aquela falta de propósito do deorum ao seu lado junto com as gotas de suor e o ar abafado estavam deixando a humana irritada.

— Por que faria isso? Por que me oferecer comida ou qualquer coisa? Por que está aqui? O que realmente quer? — Corinna virou o corpo todo para encarar o Governante.

Ele, dessa vez, apenas levantou o dedo indicador e levou a outra mão até uma massa no formato de um quadrado, e então, de volta para a sua boca.

A caçadora estava a um passo de dar um soco no rosto do deorum quando ele disse depois de engolir:

— Educação. Perguntei por pura educação.— Corinna apenas estreitou os olhos. — Parece que não é um conceito muito conhecido para vocês humanos. É indelicado comer na frente de outra pessoa e não oferecer. Além disso, como aqui está quente como um forno, eu certamente vou criar uma corrente de ar para mim. Criar uma corrente estreita é mais difícil do que uma mais abrangente, por isso ofereci. Não quero em troca sua alma, seu sangue ou seu primogênito , não precisa ficar tão tensa. Só dizer sim ou não.

A Escolhida de Fortuna não disse nada. Um vento seria bem-vindo, assim como a comida... porém bem menos arriscado.

— Está bem. Quem cala, consente. — Theodor deu de ombros e o ar fresco bateu contra o rosto da menina como uma onda de alívio.

Ela se impediu de suspirar de maneira patética.

O Governante Ônix não se pronunciou por um longo tempo.

Corinna sempre achou silêncio a dois desconfortável, mas ao contrário do que pensou, não chegou a ficar incomodada com rapaz claramente estranho sentado na cama ao lado.

— Você pode dormir se quiser. — ele disse tirando-a de sua reflexão. Sua voz tinha uma nota de humor — Não vou te matar ainda.

De alguma forma, a menina sabia que aquilo era verdade, porém a ideia de sucumbir a um vulnerável sono com alguém ali era assustadora.

— Você não vai embora? — não queria soar muito rude, entretanto a ideia de Governante passar a noite no Galpão era ainda pior do que dormir.

— Não agora. — ele respondeu simplesmente e a garota não conseguiu decifrar nada da sua voz.

A Escolhida respirou fundo, mas escorregou o corpo no colchão. Era melhor dormir enquanto ainda tinha a brisa fresca da magia.

Ao fechar os olhos, imagens do confronto com Nyota apareceram em sua mente. Cada pulsação do seu coração a lembrava das últimas do coração da oponente. Tinha conseguido se distrair na maior parte do dia com Conall ao seu lado. Naquele momento, sozinha...quer dizer, exceto por Theodor, uma lágrima escapou do seu olho, seguida de um rápido soluço.

— Sinto muito. — a voz do Governante Ônix foi quase um sussurro.

Mas a menina sabia que ele não sentia. Não, de verdade. Nem ele, nem nenhum dos deorum. Nem nenhuma outra pessoa. Não como ela.

Limpando a umidade dos olhos, Corinna se ajeitou para olhar nos olhos de Theodor, uma faísca de raiva em seu peito.

Quando olhou para a cama ao lado, o Senhor Ônix já não estava mais lá, embora o ar fresco tivesse continuado ventilando o Galpão mesmo um bom tempo depois da garota ter desistido das lágrimas e cedido ao sono.

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