Quando avistei Gabriel, ele estava parado estático nos observando, a fúria com que me olhava ao presenciar aquela cena com Luc, partia meu coração. Ele estava sozinho, mas carregava em seu punho toda a força que eu nem poderia imaginar, sempre o respeitei, sua forma de agir, seu conhecimento sobre as coisas humanas, sua postura diante deles. Sempre quis ser como ele, adorava estar em missões ao seu lado, nunca disse isso a ele, tentava ser discreta quanto aos meus pensamentos sobre isso, sempre quis saber o quão forte ele era contra seus inimigos, e agora saberei.

Luc se colocou entre mim e ele, isso o deixou ainda mais furioso, Luc deveria se achar muito poderoso para se colocar na linha de ataque de um arcanjo enfurecido, ou deveria me amar de verdade, ou ele me salvaria ou morreria comigo. Ele pertencia às trevas, mas aquela foi uma atitude nobre, naquele momento soube, que me apaixonara por um estranho, havia muito a saber sobre o Luc.

- Não estou aqui por você! – Gabriel esbravejou – Estou aqui por ela!

- Não permitirei que faça nada! – Luc retrucou – Terá que passar por mim, antes de qualquer coisa.

- Você sabe das regras assim como eu! – Gabriel disse, e em seguida me encarou – Devemos manter o equilíbrio!

- A escolha será sua! – Luc respondeu – A única forma de atingi-la é quebrando as regras!

- Assim seja! – Gabriel concluiu.

Na terra deveria haver um equilíbrio, anjos não poderiam matar demônios, e demônios não poderiam matar anjos, eles deveriam brigar pelas almas humanas, mas nunca confrontar-se. A arma de um ser divino era sua luz, ela era cheia de sentimentos bons, quando um ser das trevas é tomado pela luz, ele simplesmente deixa de existir, pois onde a luz não há escuridão. Por outro lado, a escuridão é a maior arma do demônio, a escuridão é cheia de medo e sentimentos maléficos que afasta a luz dos seres divinos, um anjo sem luz, não é um anjo, se resume a pó. Se alguém, de qualquer lado quebrar as regras, uma guerra sem precedentes explodiria.

Luc deixou Gabriel dar o primeiro passo, não queria ser o primeiro a quebrar o equilíbrio, Gabriel o segurou pelo o pescoço e o lançou contra a parede do mausoléu, ele se levantou rapidamente, mas Gabriel o tomou em seguida o empurrando contra a parede. Os olhos de Gabriel estavam brancos por completo, a luz radiava por seus olhos, nariz e boca, ele se aproximou ainda mais de Luc, direcionado sua luz para dentro dele, aquilo parecia causar sensações dolorosas, isso me deixou desesperada, não poderia imaginar perdê-lo.

Quando achei que a luta estava perdida, Luc reagiu, a luz que estava tomando conta de seu ser, saiu de dentro dele como um raio, e a escuridão, uma luz negra, que brotou nele repentinamente, empurrou Gabriel para longe. A luta não estava acabada, Gabriel reagiu novamente e Luc retrucou, ambos eram muito fortes e não sabia onde tudo aquilo poderia acabar, pois estava claro que não haveria nenhum ganhador, ambos ficariam ali até matarem um ao outro, e isso não poderia acontecer, eu amava a ambos, de forma diferente, mas amava, aquilo tinha que parar.

- Parem! – gritei desesperada – Parem!

Os dois fizeram uma pausa, incrédulos com minha atitude.

- Ninguém aqui acabará com o equilíbrio entre o céu e o inferno – Tentei parecer corajosa, mas estava amedrontada – Vamos resolver isso de outra forma!

- O que está fazendo? – Luc perguntou aborrecido – Pare com isso!

- Você realmente não sabe em que se meteu, não é? – Gabriel perguntou duvidoso – Você não pode ser tão ingênua assim.

Uma luz branca surgiu entre as arvores, sabia que boa coisa não viria dela, Luc pensou a mesma coisa e antes que tudo ficasse ruim, ele se aproximou de mim e segurou forte minha mão. Minhas pernas começaram a tremer, em seguida meu quadril, meu tórax e por ultimo minha cabeça, as imagens a minha frente ficaram borradas, senti um empurrão me impulsionando para cima, de repente tudo ficou preto e não consegui sentir mais meu corpo.

Quando dei por mim, estava num imenso telhado, já era dia, o sol havia acabado de nascer, Luc estava ao meu lado, me olhando, tentando decifrar meus pensamentos.

- O que foi aquilo? – Perguntei perplexa – Onde estamos?

- Você viajou na luz! – Ele respondeu sorrindo – Este é o telhado da catedral de Saint Penn!

- Estamos em Lakeville? – Não pude acreditar – Estamos a uns 400 quilômetros de Maycefalls! Como isso é possível?

- Muitas coisas são possíveis agora! – Ele riu novamente, seus lábios se misturaram aos raios de sol que atingia o telhado, uma cena maravilhosa e inesquecível – Você tem muito que aprender!

A catedral de Saint Penn era um ponto turístico da cidade, sua arquitetura era antiga em estilo europeu. Ela se localizava fora da cidade de Lakeville, era rodeada por imponentes arvores.

- Como vamos descer? – Perguntei curiosa – Não me diga que será da mesma forma que chegamos, ainda estou enjoada!

- Use suas asas! – Ele sorriu – Elas existem para isso!

Ele armou suas asas, incrível asas negras, e em um segundo ele estava lá embaixo, me esperando descer. Poucas vezes precisei usá-las, e passei muito tempo sem elas, seria como aprender novamente a voar. Quando as armei fiquei espantada, elas deixaram de ser delicadas e se tornaram fortes e agressivas, o deslocamento de ar que elas provocavam ao ruflarem fazia os galhos de arvores dançar no ar.

Fechei os olhos e me joguei, podia sentir o vento em meu rosto, eu me senti acima de tudo e de todos, estava feliz, quando finquei meus pés no chão e abri os olhos pude vê-lo, ele estava parado em minha frente, sorrindo. Naquele momento meu coração pulou de dentro do peito, ele se aproximou e me beijou, um beijo tão carinhoso e repleto de sentimento que me fizeram desconfiar, como um demônio poderia beijar assim? Como um demônio seria capaz de amar?

Seguimos para a cidade, lá encontramos um apequena e modesta pensão, parecia que os donos já nos esperavam. Subimos para o quarto, tínhamos muito a conversar.

- Parecia ser mais fácil esconde-las antes! – Disse olhando para o espelho para me certificar que as asas estavam bem escondidas.

- Elas estão um pouco diferentes agora! – Luc brincou, ele me olhava sentado na cama.

- Você precisa me esclarecer as coisas! – Disse me juntando a ele na cama – Preciso entender algumas coisas.

- Eu sei, mas há algo mais urgente! – Ele me abraçou – Que precisamos resolver agora!

Ele me puxou para perto, umas das mãos deslizou por minhas costas, ele me beijou, mas dessa vez não era um beijo carinhoso, era uma beijo cheio de desejo e provocante. Seu corpo estava quente e tremulo, e ficou inda mais caloroso, ao sentir sua pele nua contra a minha, seu toque me incendiava, o suor que saia pelos poros nos unia, aquilo não era sexo, definitivamente estávamos fazendo amor. Lembrei-me das palavras que ouvi no paraíso, o amor tem duas faces e eu não sabia qual face era aquela.

Quando terminamos ficamos deitados na cama, Luc tratou de explicar e esclarecer todas as minhas duvidas.

- Se não sou anjo e nem demônio, o que sou? – Perguntei confusa – E o mais importante! Por que juntos somos invencíveis?

- Quem te disse isso? – Ele sorriu – Calma, vou te explicar tudo!

- Estou ouvindo – disse ao me sentar na cama – Pode começar!

- Você é um anjo caído! – Ele começou – Por isso você tem uma casca, ela é definitiva, cuide bem dela!

- Eu não era um anjo caído antes? – perguntei – O que eu era?

- Você era uma humana, mas com poderes! – Ele sorriu – Você era especial!

- Por que não perdi meus poderes? – perguntei novamente – Por quê?

- Você era um serafim, diferente dos anjos, seus poderes não podem ser simplesmente tirados de você! – Ele explicou-me – Seu poder te pertence, não a eles! Por isso que serafins são tão importantes.

- Então quando eu caí ainda tinha meus poderes? – Perguntei-me – Por que não o usei?

- Tudo agora é diferente! Você tem um poder incrível nas mãos – Ele disse ao segurá-las – Você tem que descobrir seus novos poderes e aprender a usá-los!

- Tenho mais poderes que antes? – Disse ansiosa – Por quê?

- Você é uma criatura que pertenceu ao céu e ao inferno! – Ele disse sorrindo – Seu ser carrega os dois lados do poder, o bem e o mau! Por isso é tão poderosa.

Aquilo me explicou muitas coisas, é impossível a luz e a escuridão caminharem juntas, uma era oposta a outra, mas em meu coração isso era possível, talvez a fonte de meu poder estava nisso, meu coração era metade luz, e a outra metade era escuridão, elas estavam ali, dividindo o mesmo espaço, na mesma intensidade. O que unia as duas forças era o amor que meu coração nutria por Luc, no fundo eu sentia que meu lugar era na luz, do lado do bem, mas a aquele amor trazia a escuridão e eu não podia arrancá-la do meu peito, e eu também não queria fazer isto.

- O que você é? – Perguntei brandamente – Você não é um demônio comum!

- Não sou mesmo! – ele respondeu, brincando com meu cabelo – Sou um anjo caído como você!

- Somos iguais? – perguntei novamente – Como?

- Eu era um querubim! Sabia? – Ele respondeu pensativo – Quando caí fui direto para o inferno! Nessa época o céu não sabia o quão poderoso eu me tornaria por causa disso.

- Somos os únicos? – O questionei – A ter pertencido aos dois mundos?

- Sim! – Ele respondeu e depois se levantou e me deu um breve beijo – Aquele que tem o conhecimento dos dois mundos carrega consigo o poder dos dois!

- Por isso você esta sempre com a mesma casca? – Indaguei curiosa – Por isso é sempre assim?

- Nossa casca tomou a forma de nossa alma! – Ele explicou – Somos exatamente como deveríamos ser!

- Achei que não tivéssemos alma! – investiguei – Como isso é possível?

- A alma dos anjos pertence ao céu, a alma dos demônios pertence ao inferno – Esclareceu ele – A nossa pertence a nós mesmo, por isso não seguimos regras!

- O que acontecerá se eles me destruírem? – Indaguei – Para onde eu vou?

- Isso eu não sei te responder! – ele respondeu sorrindo – Você e eu somos os únicos, e eu ainda não morri!

Fiquei pensativa por um tempo, Se havia luz e escuridão em meu coração, e ele é igual a mim, provavelmente existiam as duas forças nele também, por isso ele era capaz de amar e ser tão cruel ao mesmo tempo. Se ele teve uma escolha, como eu terei, por que ele escolheu a escuridão? Queria fazer esta pergunta, mas fui calada por mais uns de seus beijos, que eu adorava muito.

Peguei no sono e dormi a tarde inteira, quando acordei já era noite e Luc não estava lá. Saí do quarto e fui procurá-lo nas outra dependência da pensão, mas não o encontrei. Resolvi dar uma volta e conhecer mais Lakeville, não me afastei muito da pensão, sabia que não era muito seguro andar por aí sem Luc. Passei em frente a uma lanchonete, uma força me puxou para dentro dela. Havia uma senhora sentada no fundo, ela estava triste e seu coração amargurado, eu sabia que ela tinha haver com a força que me atraiu para lá.

- Ola! – Disse me sentando a cadeira a sua frente – Em que posso ajudar?

- Não te conheço! – ela respondeu grosseiramente – Vá embora senão chamo a policia.

- Só quero ajudar! – Repliquei – Não quero lhe fazer mal.

- Você é medica? – Ela perguntou ironicamente – Se não for vá embora!

- Se eu disser que posso curá-la com minhas mãos... – ela olhou incrédula – Eu poderia ficar?

- isso é alguma brincadeira de mau gosto? – Ela perguntou rispidamente – Dr. Fox te contou?

- Não conheço Dr. Fox – Retruquei – Mas sei que você tem um câncer em seu estomago que vai matá-la em poucos meses!

- O que você é? – Ela contrapôs – Um anjo do céu? Que veio me salvar?

- Quase isso, não exatamente! – Brinquei tentando quebrar o gelo da situação – Mas já fui!

Não dei a ela a chance de retrucar, coloquei minhas mãos sobre as dela, fechei meus olhos e fiz exatamente o que fazia antes, deixei a luz entrar por sua pele e percorrer pelo seu corpo, até chegar ao estomago, levou poucos segundos para tudo acabar.

- Como se sente? – perguntei sorrindo – Algo diferente?

- Sim... Estou me sentindo melhor! – Ela disse se examinando – O que fez?

- De nada Sra. Burke! – Disse me levantando da mesa e ignorando os chamados da curada senhora.

Fiquei triste e feliz ao mesmo tempo, me senti bem por fazer o bem, mas me senti mal por saber que não faria mais parte disso, eu não era como antes, agora era um inimigo para eles. Perambulei por um lindo jardim comunitário que ficava próximo a lanchonete, olhei para as pessoas, umas passavam por mim e sorriam, mas outras passavam e me olhavam repugnantes, não sabia o que pensar e não sabia o que aqueles olhares significavam.

Meu coração começou a ficar inquieto, já havia sentido algo parecido, mas não queria pensar naquela possibilidade, na tentativa de acalmá-lo andei ainda mais depressa, sem me importar com o sentido, cheguei a um beco escuro e avistei um homem. Ele estava segurando uma arma e a apontava para cabeça, ao olhar nos olhos dele pude ver todos os seus pecados, um estupro, centenas de assaltos e muito sangue em suas mãos. Parte de mim queria evitar aquilo, mas não podia imaginar aquele ser andando entre as pessoas, ele pecou e deveria pagar por isso.

Eu senti que meus pensamentos e sentimentos estavam fora de controle, minhas ações eram espontânea e fazia o que deveria ser feito, então me aproximei daquele homem, apoiei uma das mãos no ombro dele e sussurrei em seu ouvido, num segundo seu sangue estava espalhado pelo chão e parede, e uma parte dele estava sobre mim. Fiquei ainda mais apreensiva, e antes que algo mais pudesse acontecer, voltei para o quarto da pensão.

- O que faz aqui? – perguntei espantada – Luc voltará a qualquer momento!

- Tem certeza? – ele sorriu – Eu não teria!

Ele era maravilhoso, estava em pé ao lado da janela, me olhava de um modo estranho, como se me deseja-se, mas me odiasse ao mesmo tempo. Aquele sorriso era marcante, logo pude ver que não era humano, mas não conseguia discernir a qual lado ele pertencera. Sua beleza era tão avassaladora que poderia pertencer aos dois mundos, mas ao sorrir novamente pensei: “esse sorriso definitivamente não pertence ao céu!”

Num gesto rápido ele me empurrou contra a parede, sua força era esplêndida, e ele sabia como usá-la. Ao encarar tão de perto aqueles olhos, uma imagem se formou em minha mente.

-Espere! – Fiquei pensativa – Conheço você!

Ele sorriu novamente, um sorriso sombrio que já estava acostumada a ver. Então respondeu sinicamente:

- Claro que sim... Você estava certa, eu sou um belo demônio!

Xavier!