O Início...

Vinham dos céus num levante avassalador. Só era possível vê-los nos intervalos dos clarões passando pelas massas gasosas sem resistência. Iam em direção a pontos luminosos, ainda distantes, que pareciam formar um mapa gigantesco. A colisão era certa, dada a espantosa velocidade da aproximação. Logo, seus destinos se encontrariam.

A chuva caía sem trégua, a tempestade atípica nesta épocapoderia ser interpretada como mau agouro. A vasta superfície dacúpula da Basílica recebia grande carga d’água, em seu interior porém tudo parecia indiferente ao que ocorria do lado externo.

A basílica dispunha de laterais com colunas de mármore brancas, ligadas entre si por arcos ornados com enfeites rústicos entre cada pilar.Vitrais imensoscom cores e desenhos diferentes encaixavam-se perfeitamente sobre os arcos. Várias fileiras de bancos vazios acompanhavam a disposição das colunas, veredas os separavam permitindo assim chegar da entrada principal ao conjunto de degraus ao centro sem nenhum obstáculo.

O grande altar central se localizava embaixo da cúpula da basílica, feito de pedra calcária branca, estava coberto por uma pequena peça de linho, onde repousavam dois castiçais dourados. A construção já fora palco de grandes celebrações. O livro empoeirado entre os castiçais há tempos intocado, revelava que o local a muito não era visitado por viva alma.

Hoje, porém dois corpos se encontravam em seu interior, atrás da pedra retangular, molhados uniam-se num abraço forte e demorado.

Ela com seus cabelos loiros abaixo dos ombros, seus fios lisos erampresos por uma pequena tiara vermelha. Possuía olhos grandes de coloração castanha cheios de vida, que agora porém,exibiamuma expressão de medo. Os dentes comprimiam seus lábios carnudos, ferindo-os profundamente.Seu vestido branco se estendia até a metade da coxa, a umidade o colava ao corpo e exibia toda sua beldade, uma musa aos olhos alheios.

Ele deixava seus cabelos cacheados caírem sobre osolhos azuis da cor do mar, realçando assim seu rosto. Jovem alto e dono de uma estrutura atlética. De fala pausada, porém firme. Todos lhe rendiam elogios – o que não era para menos, pois seus feitos eram aclamados por todo o reino.

Para ela, foi amor à primeira vista e logo após o primeiro beijo teve certeza,este era o homem que desejaria ter por toda eternidade. Entretanto neste instante estava tão nervosa que não percebia que suas unhas marcavam as costas do jovem enquanto seu abraço o comprimia para si. Ele sempre estivera ao seu lado apoiando-a, fora seu amparo nos momentos difíceis.

-Einar! Estou com medo! Vamos embora enquanto podemos.Sua voz tremula já demonstrava os sinais de fraqueza, estava no limite de suas forças, prestes a perder o controle.

-Michaela não podemos desistir agora, chegamos tão longe...

-Será que você não percebe que estamos sozinhos nisso! A voz saíra mais alto do que ela desejara.

Vendo-a tão frágil, sua expressão meiga o comoveu, sentiu suas forças revigorarem, lutaria por ela até o fim mesmo que isso lhe custasse à própria vida.

-Eu a protegerei! Você e o nosso querido filho.Disse colocando as mãos sobre a barriga saliente dela. – Confie em mim. Jacó virá nos encontrar, o grande sábio do conselho se mostrou muito confiante quando soube de sua gravidez.Einar acariciou-lhe o rosto. -Temos que acreditar! Ele irá nos ajudar...

Um trovão cobriu o som das vozes dos jovens...

Jacó andava a passos rápidos pelos corredores escuros, a fraca iluminação dos archotes presos as paredes não lhe permitia ter uma visão plena do local.Ansiava chegar a basílica. A imagem das expressões assustadas de todos quando suas palavras anunciaram “o começo” não lhe saia da memória.

Tudo esta perdido? Não! Não pode ser assim...”

Tentou afastar os pensamentos ruins que lhe vinham à mente. Não podia perder a fé, não agora.

Ainda há esperança. Ninguém sabe ainda, mas há. Esta criança que esta por vir mudará o rumo da nossa história. Ela será início da mudança. Quem sabe de uma possível união...”

O sábio parou por um momento, um odor fétido invadiu o local, seus pés ficaram gelados. Pegou um archote apontando-o para o chão,uma névoa impregnava todo o local.

-Mas o que é isto?Prendeu a respiração. Sua expressão mudou-se rapidamente. –Não pode ser...

Quando compreendeu do que se tratava já era tarde. Tossiu perdendo o fôlego, não conseguiu tomá-lo novamente a névoa o havia engolido.

-Michaela, não se preocupe,estou aquicom você. Apertou-a com mais força contra seu peito, fazendo-a sair de seu “transe”.

-Estão contra nós, todos! Um pequeno soluço a fez parar por um breve momento.

- Há algo nesta basílica... Posso sentir... Suas pernas fraquejaram.

-Não há nada aqui.

-E os Livros Sagrados? Michaela mudara de assunto como se estivesse falando consigo mesma. Relembrava acontecimentos sinistros ocorridos recentemente

-O que acontecerá se eles caírem em... Não temos saída! Você não percebe! Houve uma época em que a esperança me acompanhava, mas acho que ela me abandonou há muito tempo. Lágrimas escorreram por sua face, enquanto se protegia nos braços de seu amado. -Meu pai tentou me avisar, mas não lhe dei ouvidos.Em sua aflição, parecia poder ouvir assábias palavras dele.

“Fique minha filha, você não imagina que forças estão envolvidas nesse conflito, não podemos fazer nada. Você não entende. Por favor, não vá. Implorou ele.”

“O senhor é um covarde meu pai, se alguém não lutar, jamais sairemos desta condição.”

“Somos uma minoria, não seja precipitada... Se for agora só ira encontrar dor e desespero.Coisas terríveis poderão lhe acontecer. Ainda não é o momento. Fique eu lhe imploro...”

“Se eu não for talvez este momento nunca chegue. Einar me protegerá!

A porta bateu com violência quando a jovem saiu, deixando para trás a expressão triste na face do homem de idade avançada. Hoje via que o pai tinha razão, fora muito precipitada em sua escolha e pagava um preço muito alto por isso, mais do que podia suportar.

Fez-se o clarão de um raioacompanhadodobarulho de um trovão. Isso a trouxe para a realidade novamente.

-Tudo vai ficar bem Michaela. Olhou-a bem fundo nos olhos, com seu sorriso confiante, passou as mãos pelo seu rosto enxugando-lhe as lágrimas. – Só peço que acredite em mim,após esta noite tudo estará terminado, não haverá mais dor ou medo, ficaremos juntos para sempre. Aproximou seus lábios aos dela,cedendo-lhe um beijo carinhoso

Outro raio rompeu-se perto da Basílica. Um rumor súbito ao fundofoi ouvindo por ambos. O jovem guerreiro adiantou-se, entretantouma mão delicada o deteve.

-Não vá!

-Você esta tremendo! Acalma-se... Estou aqui para protegê-la.

-Fique comigo, sinto algo que jamais senti antes. O medo esta me dominando. É melhor irmos embora.

-Não podemos! Deve ser Jacó.

Desvencilhando-se dela, contornou o altar, seus passos ecoavam mais baixos à medida que se distanciava da mesa de mármore. Ainda soluçando ela implorava pela sua desistência. Encostou suas delicadas costas na perna do altar deixandoseu corpo escorregar até o chão onde ficou rezando.

O jovem caminhava com cuidado em direção a porta dos fundos, a peça de madeira presa por dobradiças não era larga, porém alta. E mesmo com a chuva constante que caía unida aos barulhos regulares dos trovões, os batimentos em seu peito pareciam poder ser ouvidos a distância. Um raio iluminou uma pequena estátua ao lado, o susto que Einar provou foi intenso.

O jovem esticou os braços devagar, quando seus dedos se aproximaram do trinco, este virou-se sozinho emitindo um som agudo. Recompôs-se logo da indecisão que o invadira momentaneamente, abriu a porta com determinação. Estava vigilante, o que encontraria no corredor? Entretanto para sua surpresa e alívio o corredor externo estava vazio.

Olhou para o altar, não conseguiaver Michaela. Virou-se novamente para o corredor, uma névoa branca e densaformava uma parede à sua frente, o odor fétido que lhe chegava as narinas causava-lhe náuseas.

-Que coisa é essa...

Introduziu o braço dentro da barreira, sua constituição era gélida e úmida...Não conseguiu tocar em nada, aproximou mais o rosto na esperança de enxergar melhor.

Da névoa, dois grandes olhos vermelhos, frios e repugnantes se abriram. Duas possantes garras desceram sobre os seus ombros, o corpo do jovem foi arrastado para o interior do vapor aquoso. A porta se fechou em seguida produzindo um estrondo iminente.

Michaela levantou-se assustada, seusolhos não encontraram Einar. A porta estava fechada. A basílica vazia. Não conseguiu se conter, deixou-se cair novamente rente a perna do altar, mas agora em vez de rezar, chorava.

Passou-se um breve instante, antes das dobradiças começarem a ranger. A peça de madeira estava sendo aberta, no peito da jovem a pulsação disparou, podia ouvir os passos vindos em sua direção. Eles avançavam lentamente pelo local, entretantose aproximavam cada vez mais.

Já os ouvia subindo os degraus doaltar

Michaela tentou ser forte, queria se levantar para ver quem era, mas seu corpo não obedecia. Fechou os olhos. Cruzou os braços junto as pernas e continuou soluçando baixinho.

-Michaela!

O sussurro ao seu lado não deixou dúvidas, era Einar, sua tensão diminuiu. A mão de seu amado pousou em seu ombro, enquanto ela enxugava as lágrimas para poder olhá-lo. Sentiu algo quente escorrer por seu braço.

Um raio iluminou o local, seu vestido estava todo manchado de uma coloração avermelhada, era essência, não entendeu bem o que estava acontecendo até virar-se para Einar. Seu corpo estava todo ferido. O rosto pálido quase sem vida tentando desesperadamente lhe falar. Fez um esforço enorme para pronunciar suas últimas palavras antes de cair sem vida.

-FFFuuujjjaaaa!!!!

Michaela ajoelhou-se, colocou o rosto em seu peito, chorava desesperadamente, não podia acreditar no que via, em questão de minutos sua vida tinha se transformado.Subira dos altos céus para cair nas profundezas do inferno. Tudo estava perdido, tudo pelo que haviam lutado.

Sentiu que suas pernas estavam ficando geladas, um odor fétidoinvadiu o local. Ao abrir os olhos viu uma névoa que impregnava todo o chão. Levantou-se assustada, uma garraapertou-lhe o pescoço com uma intensidade enérgica, seu corpo foi suspenso ao ar, agitado inúmeras vezes antes deser atirado contra o vitral da parede que se estilhaçou em milhares de pedaços menores.

A chuva molhava todo seu corpo. Seus membros estavam doloridos, cheios de cacos de vidro, mesmo assim ainda tentava se levantar, sem sucesso. A dor parecia aumentar cada vez mais. Sentia suas energias exaurirem.

Olhou para trás, viu a névoa ultrapassando o vitral quebrado. Com o pouco de forças que restava conseguiu se erguer a muito custo, caminhou poucos passos, antes detropeçar, e cair novamente. A sua frente divisava uma luz branda, rastejava-se em sua direção. Quanto mais se aproximava mais intensa a luz se tornava

Um pequeno túnel a livrara da chuva, um rastro avermelhado desprendia-se de seus ferimentos. Chegou ao final do corredor ondeuma estátua postando uma tocha as mãos iluminava o local. O vento fazia as chamas dançarem de um lado para outro, entretanto o brilho da mesma não se apagava.

A jovem sabia onde estava, o desespero aumentou, a única saída daquele local era por onde haviaentrado. Continuou a se aproximar da estátua. Virou-se ofegante, não tinha mais controle sobre seu corpo cansado, ficou parada olhando para até onde as chamas faziam frente à escuridão. Rezava para que nada entrasse pela abertura do túnel.

Uma eternidade se passara naqueles breves momentos de espera. Será que estava a salvo? Isso já não importava mais,Einar estava morto, porém ainda lhe restava o filho, tinha que salvá-lo. Sentiu raiva de si mesma por ser tão fraca, sentiu raiva de tudo e todos, até do destino que agora a afligia.

Sua atenção foi dirigida novamente à entrada, a névoa começou a surgir na parte iluminada do túnel, ganhava espaço rapidamente. Levantou-se reunindo suas últimas forças.

-Me deixe em paz! Saia daqui.Gritou histérica.

Ela foi envolvida pela névoa, as garras a atingiram sem piedade, começou a sentirfalta de ar,a cabeça ficara pesada repentinamente, experimentou um ardor quente no abdômen, foi perdendo a consciência e seus olhos fecharam vagarosamente.

Tinha falhado, com todos, imagens vinham-lhe à mente nesse momento, seu pai, seus companheiros, todavia amais nítida delas era deEinar... Ele não conseguiu protegê-la como havia prometido, porém estava certo em uma coisa, hoje tudo estaria terminado e eles estariam juntos para sempre.

Seu corpojazia inerte no solo,a vida dentro dele também se extinguira.