O Baile...

A manhã já se anunciava, a Lua de Sangue fazia companhia para o sol, quando Damira entrou nos aposentos de Medar guiada por dois guardas. O conselheiro observou aquele rosto desesperado. Pediu cheio de compaixão para que ela se aproximasse.

-Sente-se ao meu lado.

Damira ainda estava em choque sob os efeitos da noite. Foi tirada de seu transe pelas mãos de Medar a tocar em seus braços. Ela deu um pequeno salto.

-Calma, minha menina. A voz dele era suave, aos poucos Damira foi relaxando, se sentindo mais à vontade. -Sei que vai ser muito difícil, mas gostaria que me contasse o que se passou nesta noite infeliz.

Fez um sinal para que os guardas saíssem, no que foi atendido de prontidão. Ela narrou o ocorrido, omitindo a parte que tinha ido se encontrar com Arão, nem mesmo mencionou qualquer coisa que o garoto havia dito. Apenas disse que não conseguia dormir e precisa sair para ‘pensar’ mesmo sabendo que não devia. Não sabia se Medar tinha acreditado, porém ele não a questionou em nada, apenas limitava-se a ouvi-la, nada lhe fugia, estava atento a cada palavra pronunciada por ela.

-Uma perda lamentável, Amagus era um dos grandes líderes de nossas forças.

Comentou ao ouvir a jovem narrar sobre como Amagus a havia salvo. No final lamentou tudo o que tinha ocorrido. Pediu a jovem que voltasse a seus aposentos.

-Pedirei a Inimis que a acompanhe. Assim você se sentirá mais segura. Ao virar para porta ela viu que ele já estava a sua espera. -Ele cuidará de você.

Antes dela sair, Medar se aproximou, segurou-lhe as mãos com carinho.

-Força minha jovem, sei que você tem passado por provações que poucos conseguiriam suportar, mas lembre-se que muitos precisam de você. Pode ir. Tente se preparar para a comemoração de hoje à noite.

-Ela vai acontecer? Mesmo com tudo isso que estamos passando? Damira parecia espantada.

Medar a olhou com tristeza.

-Sei que o momento não é propício. Mas nada podemos fazer pelo que passou, coisas piores hão de vir. Por isso vamos aproveitar este pequeno tempo que temos para comemorar.

-Comemorar o quê? Perguntou ela.

Ele respondeu com paciência.

-Comemorar que as cinco noites da Lua de Sangue já se passaram. E mais que nós conseguimos evitar que em cada noite morresse uma pessoa da Cidade Superior, no Santuário. Na segunda noite Ingrid, na terceira Jenya, na quarta Etality e nesta, a quinta Amagus, se na primeira tivéssemos perdido alguém da cidade... Teríamos uma tragédia indescritível. Sei que tivemos perdas muito importantes. Isso me deixa muito triste, mais do que você possa imaginar, já que Set confiou a guarda da Cidade Superior a mim. É melhor você se recolher, peço-lhe força e paciência prometo que puniremos os culpados por isso.

Inimis envolveu Damira nos braços e a levou.

-Mas o que você estava fazendo fora de seu quarto? Perguntava ele em tom reprovador.

Ela não respondeu, mas gelou por dentro quando ele fez a próxima colocação.

-Fui obrigado a comunicar o que ocorreu a seu pai. Ele está feliz em saber que você está bem, mas quer saber detalhes de tudo o que se passou...

Ele parou a frente dela.

-Você não pensa naquele garoto celestino?

Ele dizia as palavras com raiva, seus olhos fixaram-se nos dela. Ela não respondeu, mas abaixou a cabeça.

-Lembre-se que os celestinos são a desgraça desse reino e de sua família, eles merecem serem expulsos. São mentirosos e traiçoeiros.

-Arão não é assim. Respondeu ela sem pensar, arrependendo-se logo em seguida.

-Ah! Então é isso. O jovem celestino... Continuou ele com mais raiva ainda. -Eu a proíbo de vê-lo. Hoje você irá ao baile com um garoto da Cidade Superior. Ouviu! Gritou ele por fim.

-Não pode me obrigar. Sussurrou ela com vontade de chorar.

-Você não pode contrariar-me, isto já foi decidido! Afirmou ele puxando-a pelo braço. -Lembra-se?

Apesar de tudo, no começo ela ainda sentia-se um pouco animada com o baile. Seria uma oportunidade de ficar sozinha. Conversar com Arão e explicar-lhe o porquê de seu comportamento na última vez que se encontraram. Seria preciso somente se livrar de Teles. Mas agora via todas as suas esperanças irem por água abaixo. No fundo tinha medo do que Inimis poderia fazer, para evitar que ela se aproximasse dos celestinos.

Neste mesmo instante um guarda passava por eles indo em direção aos aposentos de Medar.

-Senhor, não achamos nem sinal de arma alguma no local onde Amagus foi encontrado.

-É uma pena. Respondeu ele.

-Quero que vasculhem cada canto do Santuário atrás dela, é nossa garantia para que as comunidades acreditem em nós...

Enquanto Medar falava com o cavaleiro, Sender escondido em um local sombrio distante dali ria com um punhal com entalhes negro na mão.

-O mestre pensa em tudo... Riu.

– Eles sabem que algo ronda o Santuário fazendo muitas vitimas, entretanto não tem uma prova concreta para convencer as comunidades a se unirem. Medar continuou seu discurso. -Mas mesmo assim não comentem isso, não vamos estragar a festa de todos. Instrui Inimis para pedir a colaboração de Damira.

Respirou profundamente.

- Dispensamos muitos de nossos esforços para ajudar a proteger as comunidades, nestes dias do segundo sinal, mesmo as custas de nossas próprias perdas. Eu esperava dar continuidade ao desejo do grande Deus Set e unificar os povos, mostrando nossa boa vontade através deste ato. Mesmo assim eles se mostram céticos a nosso respeito. Esperava que na próxima reunião dos conselhos das comunidades pudesse mostrar o punhal com fogo negro, provando de uma vez por todas para aqueles que não acreditam que as trevas já estão entre nós. Mesmo entre eles não existe uma relação de amizade tão firme assim.

-Lamento ouvir isso, senhor. Proclamou o guarda. -Quer dizer que apesar de tudo que está ocorrendo na Cidade Superior as grandes comunidades não acreditam em nós?

-Sim, isto é verdade. Muitos ainda não acreditam, acham que tudo isso é uma manobra nossa para uni-las, desfazer seus conselhos, colocando assim o conselho da Cidade Superior para governar todos.

-Mas então por que mandaram seus representantes para tentar se tornarem guardiões?

-Alguns ainda tem bom senso.

-Tenho pena deles.

-Eu também. Disse Medar. -Pois quando eles abrirem os olhos para o que nos afligi será tarde demais... Para eles e para nós...

Depois do desaparecimento da lua, o sol revelava todo seu esplendor. Muitos comemoravam o final do segundo sinal, enquanto outros se revelavam recatados ainda temerosos de que uma catástrofe ainda estivesse por vir.

A verdade é que o dia foi calmo e tranqüilo, a maioria das pessoas da Cidade Superior estavam empolgadas com a comemoração da noite. Apesar de atípica, pois nunca houvera antes um baile de máscaras. Mesmo assim não poupavam esforços para que a festa fosse a melhor possível, tudo para comemorar o final das noites de terror.

Os garotos caminhavam pelos jardins pensando em suas vestimentas, observavam a intensa movimentação das pessoas com enfeites.

-Vendo a alegria com que eles se empenham em adornar tudo isso, nem parece que acabamos de passar por um período de tamanha dificuldade. Comentou Cassi.

-Por que não fazem isso com mágica? Perguntou Dafne. -Seria muito mais fácil.

-Concordo com você. Falou Kitrina. -Entretanto há um motivo, arrumando assim eles tem contato entre si, conversam mais e acabam ficando mais próximos uns dos outros. A amizade se intensifica.

-Ânimo Arão. Bal deu-lhe um tapa no ombro. -Hoje você poderá conversar com Damira, inclusive já tenho um plano para isso...

-Espere um pouco. Interveio Arão.

-Como o da noite passada com violino... O tom de Arão era reprovador.

-Psiu! Vejam ali. Apontou Dafne.

Odrin discutia com Lethan, Keyllor e Teles.

-De quem foi a idéia estúpida deste tema? Perguntou Keyllor revoltado.

-As candidatas à deusa escolheram. Disse Teles.

-Mas Odrin, você também votou nesse tema. Acusou Lethan.

-Eu já disse que não votei. Odrin estava furioso.

-Mas seu nome estava lá. Finalizou Keyllor.

O grupo passou por eles, Bal ria baixinho. Cassi percebeu.

-Balduíno!

\"Xi! Aí vem bronca\". Pensou ele.

-Espero que você não tenha nada a ver com isso.

Bal olhou para Arão com ar de cumplicidade.

-Eu? Por que teria?

Viu a cara de Cassi nada satisfeita.

-Eu não fiz nada. Juro. Disse cruzando os dedos atrás das costas.

–Por que seus dedos estão cruzados Bal? Perguntou Dafne inocentemente.

-Xiu! Fique quieta. Repreendeu Bal rapidamente para que Cassi não ouvisse sua observação.

-Bom, acho melhor irmos nos preparar para a noite. Sugeriu Kitrina a Cassi.

-Nós também iremos. Disse Arão sem muito entusiasmo.

O grupo se separou. Cassi e Kitrina foram para seus aposentos. Arão, Bal e Dafne se dirigiram aos seus. Bal ainda gritou.

-Até a noite.

-Isso é, se vocês nos acharem.

Brincou Cassi, colocando as mãos sobre o rosto com se estivesse com uma máscara.

Ao seguirem pelos jardins, Lissa e Milena passaram fazendo comentários maldosos sobre Kitrina estar andando com Cassi.

-Olha ela! Já virou uma delas. Comentou Milena.

-Traidora! E pensar que um dia aceitamos sua amizade. Lissa carregava seu bastão de energia. - Sua hora vai chegar. Disse apontando o bastão para Cassi. -Depois... Olhou para Kitrina

-Não esquenta. Disse Cassi sorrindo.

-Eu sei, se eu for ligar para o que elas dizem estou perdida. Mas Lissa me preocupa, ela é muito vingativa.

As duas continuaram caminhando olhando para trás sem prestar atenção ao caminho. Cassi trombou com um garoto mascarado. Ela tentou passar por ele, mas conforme se movia, ele se colocava a sua frente.

Ela perdeu a paciência, estava pronta para falar-lhe umas \"poucas e boas\" mas ele tirou uma flor debaixo de suas roupas oferecendo-lhe. Cassi foi pega de surpresa pelo gesto do desconhecido e ficou sem saber o que fazer. Ele tirou a máscara revelando seu rosto.

-Tiror é você.

Estava aliviada por não ter falado o que pretendia instantes atrás.

-Eu nunca ia adivinhar quem era.

-Bem, agora você já sabe como é minha máscara e se... Ele ficou um pouco sem jeito para falar. -Se de repente você estiver sozinha à noite e quiser procurá-la...

Ela pegou a flor, cheirou-a, seu aroma era muito doce, porém, suave ao mesmo tempo. Tiror tomou-a colocando sobre a orelha de Cassi. Os cabelos cobriram o caule da planta, dando-lhe uma aparência maravilhosa.

-Se você usá-la. Disse o garoto. -Saberei como achá-la.

Cassi riu.

-Tenho que ir ajudar os outros. Colocou a máscara e partiu se despedindo das duas.

-Parece que esta noite terei que arrumar outra companhia para conversar. Provocou Kitrina.

Cassi corou com o comentário, mas no fundo esperava que isso acontecesse mesmo.

A discussão no quarto estava exaltada.

-Por que é tão teimosa? Sabe que ninguém vai se atrever a chegar perto de você se não for com Teles.

-Meu querido irmão, não posso ir com ele.

-Você irá e acabou. Por que não quer ir?

-Não! Disse com ódio dele, no momento em que a porta se abria. -Eu não quero ir com ele.

Hartch e Inimis entravam no quarto.

-O que está havendo aqui? Hartch impunha um tom autoritário.

-Nada. Respondeu Damira.

-Damira estava mudando de idéia sobre o baile. Eu apenas estava dizendo que conforme vocês sugeriram, ela deveria ir acompanhada de Teles.

– Foi por isso mesmo que trouxe seu pai aqui Odrin. Para que ele diga qual é a seu desejo final a respeito do baile.

Damira olhou assustada para Inimis, este fez um sinal de confirmação com a cabeça. Ela se viu tomada por uma ira que teve que ser contida a muito custo.

-Pensei que já tivéssemos decidido sobre isso. Replicou Hartch. -Tem a minha bênção. Damira ira com Teles e Inimis ficará ao lado de vocês para garantir que nenhum celestino os importunem.

Ele ficará ao meu lado como um cão de guarda, minha noite vai ser terrível\'”.

Estava realmente decido, teria que ir ao baile com Teles, um sorriso de triunfo apareceu mais uma vez no rosto do garoto, quando Odrin lhe deu a confirmação da notícia.

Tudo estava preparado, a lua surgindo anunciava o início da noite. Com sua chegada os ânimos se exaltavam pelo período de alegria que viria.

Teles bateu a porta e ficou aguardando por alguns instantes. Quando ela se abriu a visão que teve o deixou extasiado. Damira usava um vestido branco, onde os bustos eram realçados pelo decote. Seus ombros amostra exibiam uma pele clara e suave. O vestido justo à sua cintura fina, alongava-se depois. Luvas brancas e finas se estendiam até o cotovelo, onde havia uma mínima ligação com o vestido. As costas ficavam praticamente todas expostas. Os cabelos estavam presos e uma pequena máscara branca cobria-lhe a face.

O garoto contemplava abismado aquela visão maravilhosa, estendeu-lhe a mão. Ela a tomou, desceram para o baile, sem trocar uma palavra.

-Vamos Bal! Gritou Dafne da porta, ela usava uma pequena máscara. -Como pode ser tão enrolado. A ninfa estava impaciente. -Você não acha ele muito enrolado?

Perguntou a Arão que estava escorado na porta absorto em seus pensamentos.

-Arão, estou falando com você.

-Ah! Claro. Respondeu sem saber qual era a pergunta.

-Vou buscá-lo. Dafne voou para dentro do quarto. O garoto estava arrumando o cabelo em frente ao espelho.

-Agora sim! Hoje vou arrasar. Aiiii!

Dafne o pegou pela orelha arrastando-o para fora.

-Calma aí, estou indo. Cuidado com meu cabelo deu muito trabalho para arrumá-lo.

Arão se divertia com a cena.

-Espero que hoje seja uma longa noite, com muito agito. Bal chacoalhou Arão, exibindo um largo sorriso. - Certo amigo?

-Se assim você o diz...

Colocaram as máscaras e por fim partiram. A festa dava um novo colorido ao lugar. A noite seria espetacular, cheia de emoção. Essa era a expectativa dos garotos.

Cassi e Kitrina entraram no salão maravilhadas com a decoração. Tudo estava perfeito. A música na altura certa, o local estava cheio. Todos usavam máscaras e as roupas que as pessoas desfilavam eram umas mais bonitas que as outras. Cassi usava um pequeno vestido amarelo e branco com uma sandália combinando com sua vestimenta. Enquanto Kitrina usava um azul, os dois eram muito parecidos, só se diferenciavam por pequenos detalhes. As sandálias de Kitrina ao contrário das de Cassi trançavam os cadarços até as canelas. As máscaras encobriam-lhes a face, mas qualquer um que as olhassem saberia que se tratavam de duas garotas belíssimas.

A comemoração estava sendo realizada na maior basílica que Cassi já vira. Quatro pilares de proporções descomunais sustentavam o teto em formato de concha. Na parte central, um enorme bico se projetava em direção ao céu.