A noite foi ficando cada vez mais escura, mais quieta. Enquanto eu colocava os carrinhos no rumo do Arroio Enamorado para achar o açucareiro, Emily dormia com a cabeça encostada em meu ombro. Dali umas quatro horas, eu a acordaria para trocarmos de turno. Na verdade, o turno era de três horas, mas eu daria esse "presente" a ela.

Eu dirigia na escuridão, o que não era tão difícil, pois o sertão era descampado. O que me preocupava era o fato de que eu não tinha a menor idéia de como buscaríamos o açucareiro assim que chegássemos ao arroio.

“Por que o seu nome é Snicket se Lemony é só seu tutor?” Uma voz me assustou na escuridão. Pensei que Emily estava dormindo.

“Porque Lemony não é só meu tutor”, eu respondi. “Ele me adotou. É, legalmente, meu pai. Mas acho que ele nunca serviu para ser pai de alguém. Quer dizer, estava sempre saindo por dias para fazer suas pesquisas, me deixava sozinho na base de operações; eu era cuidado pelos voluntários da base do Cume das Aflições. Ele teve sorte por eu me acostumar com isso rápido. Se eu não me interessasse por tudo que ele me ensinava ele teria problemas.”

“Não consegui dormir” ela disse, lendo meus pensamentos. “Estava elétrica demais com a idéia de sair do sertão e tentar encontrar o tão importante açucareiro.”

“Nem me fale”, eu respondi. “Mas talvez seja melhor você dormir. Quando nós chegarmos ao arroio eu te aviso.”

“Até parece”, ela disse.”Prefiro ficar acordada.”

Nós ficamos no silêncio, conversando de novo depois de um tempo. Ficamos nesses intervalos: “conversa-silêncio-conversa”.

Até que amanheceu. Fico feliz em dizer, o último amanhecer que veríamos no sertão. O carrinho corria a toda velocidade, e eu piscava num período cada vez mais longo, como se minhas pálpebras fossem ficando cada vez mais pesadas. Fiquei muito, muito surpreso em ver um ponto no horizonte, que ficava cada vez maior conforme nós chegávamos mais perto. Era uma pessoa. Parei o carrinho perto dele.

“Deve ser uma cobra-da-begônia”, sussurrava para si mesmo, enquanto examinava uma cobra metade vermelha, metade roxa.

“É um herpetologista?” Emily perguntou para mim.

“Com certeza é”, eu respondi. “Amigo ou inimigo?” Perguntei, me dirigindo a ele.

“O mundo aqui silencia’”, ele respondeu. “Isso responde a sua pergunta?”

“Estamos tentando ir para o Arroio Enamorado”, disse Emily ao herpetologista. “Você sabe onde podemos arranjar um barco para navegar nele?”

“Claro que sei! Eu mesmo tenho um barco! Estou subindo o Arroio Enamorado para chegar à base de operações de C.S.C. em cima da montanha, mas fiquei distraído com essa cobra-da-begônia.”

“Sinto dizer”, eu falei, “mas essa base de operações foi incendiada”.

“Que triste”, disse ele. Deu um giro nos calcanhares em um jeito um tanto extravagante. Mudara muito rapidamente de tristeza para excitação. ”Então terei de descer o rio. Querem ir comigo?”

“Adoraríamos”, Emily respondeu por mim. “Sente no carrinho aí de trás, que nós chegaremos ao arroio em alguns minutos. Precisamos do barco para achar o açucareiro. Meu amigo acabou de me contar que ele viu quando Lemony jogou o açucareiro pela janela e foi levado pela correnteza do arroio.”

“ÓTIMO!” Deu um berro de felicidade. “Faz tanto tempo que não entro em uma missão de C.S.C.! Acho que desde que fui treinado pelo dr. Montgomery em herpetologia avançada.”

Ele parecia ser só um pouco mais velho que nós. Era ruivo e tinha olhos castanhos.

Ele subiu no carrinho e partimos para o Arroio Enamorado. Em menos de dez minutos, chegamos ao nosso destino: a margem do rio de águas cinzas imundas, onde um barco de madeira nos esperava.

“Esse foi o barco que eu usei”, disse o garoto. “Vamos lá!”

Nós passamos as minhas coisas para o barco, sentamos lá, e conversamos enquanto eu fazia sanduíches de geléia para todos.

“Só a título de curiosidade”, disse Emily, ”quem é você?”

“Sinto muito não ter mencionado! Minhas iniciais são H.R., e sou herpetologista. Adivinham?”

Na verdade, adivinhar nunca fora meu jogo favorito, principalmente depois de uma noite inteira sem dormir. Mas acontece que me lembrei do nome dele bem rápido.

“Hugo Rukbik?”

“Din din din, você acertou!” Ele disse. “Já terminei meu sanduíche, que a propósito foi um ótimo café da manhã, e então já posso remar”, disse ele, começando a remar o barco, deixando o sertão para trás e colocando a nossa frente o mar aberto.

Ele era um pouco esquisito. Era elétrico, sempre divagava, parou de remar nove vezes porque achou que viu um Lagarto Azul da África do Sul Ocidental. “Louco”, pensei. “Tudo bem, todos os agentes de C.S.C. o são.”

Foi com grande prazer que vi que ele trazia papel no barco. Comecei a datilografar na minha máquina de escrever. Fazia muito tempo que não datilografava. Talvez, dali algum tempo, um agente de C.S.C. se interessasse em ler a minha história, então comecei a registrar a minha saída do Cume das Aflições, a caminhada pelo sertão e o encontro com Emily nas ruínas do parque Caligari. Quando a correnteza ficou hostil demais para se datilografar em papel seco, eu parei.

“Gregory Snicket”, disse Hugo. “Sabia que já tinha visto você em algum lugar! De qualquer forma, pode me atualizar sobre o Colóquio Secreto Criostático?”

“Claro”, eu respondi. “Fui eu mesmo que o fiz na geladeira da base de operações quando ela estava incendiando. Vai ser na quinta feira, no Hotel Desenlace.”

“Que maravilhoso!”, Ele respondeu, mais entusiasmado. “Meu livro de lugar-comum precisa mesmo de atualizações, e uma reunião de C.S.C. vai ser perfeita. Só tenho uma pergunta: Você sabe onde está o açucareiro?”

“Não”, respondi, sinceramente.

“Por isso estamos procurando”, respondeu Emily. “Mas eu tenho um palpite. A correnteza do arroio deve ter levado o açucareiro muito além do que o que nós pensamos. Afinal, o açucareiro é pequeno, não ficaria no fundo do rio.”

“Está sugerindo que ele simplesmente foi em frente?”, Hugo perguntou.

“Não”, ela respondeu. “Nada vai reto no mar. A correnteza leva tudo um pouco pros lados.”

“Quando eu era pequeno”, eu disse, “tinha aulas de mecânica e física.”

“Não é hora para histórias de sua infância”, disse Emily, hostil. Ela achou que a história não tinha conexão com a nossa situação.

“Um dia”, ignorei-a, “tive uma lição muito difícil: reconfigurar o termostato de uma mini-geladeira quebrada. Fiquei a tarde toda tentando e não consegui. Fiquei muito bravo, então joguei uma chave de fenda que estava usando pela janela da cozinha da base de operações das Correntezas que Sopram Constantes, exatamente como Lemony fez com o açucareiro. A ferramenta caiu no rio e foi levada pela correnteza. Como castigo, meu professor de cartografia me obrigou a calcular o paradeiro exato da chave de fenda com os mapas da organização.”

“Você acha”, Hugo não pôde deixar de me interromper, ”que a chave de fenda e o açucareiro tiveram o mesmo destino?”

“Tenho certeza”, eu respondi. “Pois eu descobri que a chave de fenda parou na Aquáticos Anwhistle. Meu professor de cartografia averiguou e disse que eu estava certo. Fiquei tão curioso com esse nome. Acho que tinha uma única lembrança de uma vez que fui na casa de uma tia com sobrenome Anwhistle. Ela era engraçada, pois tinha medo de tudo e morava nas margens de uma lago lindíssimo. Sempre amei a casa dela. Mas estou divagando. Bem, eu fiquei curioso com o nome Anwhistle e busquei na biblioteca tudo que pude sobre isso. Quando ninguém estava olhando, coloquei uma cadeira em cima da mesa de leitura, subi nela e dei uma olhada nos livros da prateleira mais alta. Achei um: ‘Os confins sombrios da Aquáticos Anwhistle’. Li da primeira à última página, e descobri que ela ficava em cima de uma tal de Gruta Gorgônea, um lugar que guardava um dos fungos mais temidos do mundo: Mycelium medusoide. Aparentemente, tudo que caía na correnteza do Arroio Enamorado era levado para a tal gruta. Inclusive a chave de fenda e o açucareiro.”

“Então está decidido:”, disse Hugo, “próxima parada, Aquáticos Anwhistle.”