Rio de Janeiro, Fevereiro de1968



Mais um dia começava na casa dos Silva.Como sempre,Lineu era o primeiro a acordar,antes mesmo de seus pais,Seu Abreu e Dona Marília.Este,aliás,era um costume que havia aprendido com seu pai,que assim como ele,acordava antes mesmo de o sol nascer para assim ter tempo de sobra para se organizar,colocando a papelada em ordem assim como o resto de seu material de trabalho antes de se arrumar e descer para tomar café e sair para trabalhar.Enquanto isso,Dona Marília ia para a cozinha preparar o café da manhã da família,que a esta altura já estava quase toda de pé.A exceção era Fred,o filho mais novo,que sempre acordava em cima da hora,por vezes chegando atrasado e tendo que voltar para casa.Este comportamento desinteressado por vezes já havia dado dor de cabeça aos pais do garoto,que por vezes foram chamados à escola por conta de sua atitude.


Já Lineu,o filho mais velho,por outro lado,era o orgulho da família!Mesmo tendo apenas 17 anos,o jovem demonstrava uma maturidade e força de caráter que eram raros em alguém da sua idade,sendo por muitas vezes elogiado por seus professores e patrões.Esta sua personalidade austera,porém,acabava lhe causando problemas de relacionamento.Por ser considerado sério demais,Lineu era por muitas vezes alvo do desprezo dos outros garotos de sua idade,que o viam com desconfiança pelo fato de ser considerado o “queridinho” dos professores.Estes pensamentos passavam por sua cabeça enquanto se preparava para o primeiro dia de aula em sua nova escola...


A Família Silva havia se mudado há pouco tempo para o Rio de Janeiro em decorrência do novo emprego de Seu Abreu Silva em um grande escritório de contabilidade da capital.O patriarca da família havia ponderado bastante antes de aceitar esta proposta,pois sabia a transformação que isso ocasionaria na vida de sua família.Afinal,eles estariam deixando sua vida tranqüila no interior pela correria da cidade grande,o que certamente teria um grande impacto na rotina de todos.Assim sendo,antes de tomar sua decisão,Seu Abreu decidiu ter uma conversa séria com toda a família a respeito da melhor coisa a se fazer.Isto era novidade para os garotos.Afinal,eles quase não viam o pai,e agora ele pedia suas opiniões para desfazer-se de suas dúvidas.Mesmo assim,Lineu e a mãe foram receptivos à idéia da mudança,apesar dos receios do garoto.Quem não aceitou muito bem foi Fred,que não queria se ver longe dos amigos e das paqueras.


E foi desta forma que a Família Silva se mudou da pequena cidade de Rio das Flores para a capital do Estado do Rio de Janeiro,outrora Capital Federal,onde agora o jovem Lineu encontra-se absorto em seus pensamentos.Mesmo sendo uma pessoa centrada e equilibrada,Lineu não podia deixar de ficar ansioso.Afinal,agora estava iniciando uma nova fase de sua vida,morando em uma nova cidade,estudando em uma nova escola,estabelecendo novos relacionamentos,apesar de não cultivar muitas expectativas quanto a esta “nova vida...”


Já pronto para sair,Lineu desce as escadas se dirigindo até a cozinha para o café da manhã,lá encontrando já seus pais,que o aguardavam e a seu irmão.O garoto beija a mãe e senta-se à mesa.


-Bom dia,filho!Dormiu bem?-Pergunta Dona Marília com um sorriso amável enquanto lhe serve o café.


-Dormi sim, mãe.Obrigado...-Responde Lineu com um sorriso incerto,um tanto encabulado.Dirige-se então a Seu Abreu,que lia o jornal enquanto tomava seu café,cumprimentando-o de maneira formal,quase impessoal:


- Bom dia,pai...


O contador desvia por um breve momento a atenção do jornal para o filho,cumprimentando-o da mesma maneira.


-Bom dia,Lineu...


A relaçãode Seu Abreu com os filhos era um tanto distante.Não que ele fosse um mau pai,longe disso.O que ocorria era que como se dedicava demais ao trabalho,acabava passando cada vez menos tempo com a família,fazendo com que desaprendesse como falar com seus filhos e sua esposa.Além disso,Seu Abreu havia tido uma educação muito rígida e sua relação com seu pai não havia sido muito próxima,o que fazia com que agora ele próprio tivesse dificuldade em se relacionar com seus próprios filhos.


Percebendo o clima desconcertante que se instaurava,a mãe volta a puxar conversa com Lineu de maneira interessada:E então,filho?Animado para o seu primeiro dia de aula?-O garoto volta sua atenção à mãe,um tanto desconcertado,procurando mostrar alguma animação:-Hum...É claro,mãe.Já estou com todos os documentos da transferência em ordem para apresentar na secretaria,assim como todo meu material.


-Esse é o nosso Lineu!Você não imagina quanto nos enche de orgulho,não é verdade,Abreu?-Seu Abreu então abaixa o jornal e se dirige ao filho com um sorriso discreto:


-Claro.Nós estamos muito orgulhosos de você meu filho...


-Por falar nisso,e o Fred?Ainda está dormindo?-Pergunta Lineu,dando pela falta do irmão.Neste momento seu pai se altera e fala em tom irritado:


-Ah,nem me fale nisso!Esse seu irmão ainda vai me botar louco!Mas o que ele pensa,afinal?Que vai levar a vida na flauta para sempre?!


-Abreu,não fale assim!O menino já explicou que hoje vai ter reunião do corpo docente e por isso ele pode ir mais tarde...-Diz Dona Marília,tentando defender o filho...


-É sempre a mesma história!Esse garoto sempre inventa alguma desculpa para escapar do compromisso!Por acaso você já se esqueceu das vezes que fomos chamados à escola por causa da irresponsabilidade desse garoto?


Quando todos já estão quase terminando o café,eis que surge Fred,ainda com roupa de dormir,completamente descomposto e com cara de quem acabou de acordar.Com ar enfadado,o garoto beija a mãe e cumprimenta a todos antes de sentar-se à mesa:-Bom dia,família...


-Ah!Aí está o condenado!Mas isso são horas?!-Esbraveja Seu Abreu,claramente insatisfeito com a postura do filho mais novo.


-Bom dia pra você também,pai...-Retruca Fred de maneira irônica,já habituado a esta situação.


-E ainda por cima faz troça!Mas o que esse moleque pretende da vida,acordando a uma hora destas enquanto todos já estão cuidando de suas obrigações?!-Diz Seu Abreu,ainda irritado.


-Eu já expliquei:Hoje tem reunião do corpo docente.Quantas vezes eu vou precisar repetir?-Responde Fred,ainda com ar sonolento.


-Ah,e quem garante quenão é mais um truque para não ir ao colégio?! Esta não seria a primeira vez que você arruma uma desculpa para escapar das suas obrigações...-Rebate Seu Abreu.


-Calma,pai!Se exaltar desse jeito não vai levar a nada!-Intervém Lineu,tentando esfriar os ânimos.


-O Lineu tem razão,Abreu!Isso só vai fazer mal a você!-Assente Dona Marília,também tentando encerrar a discussão.


-Mas como vocês querem que eu tenha calma,se este moleque só me dá desgosto?!-Replica irritado Seu Abreu.Tentando se acalmar,o contadorlevanta da mesa,apanha sua pasta e se prepara para sair.Então dirige-se novamente à sua família:-Enfim,não tenho tempo para discutir.Já está na minha hora.- Então volta-se para o filho caçula,falando de maneira enfática:-Porque EU tenho mais o que fazer-.Dito isto,Seu Abreu dirige-se à porta da frente.Ainda na mesa,Fred faz cara de “saco cheio” e permanece em silêncio.


-Eu também já vou.Bom dia pra vocês.-Despede-se Lineu e sai atrás do pai.


-Bom dia,filho.Boa aula!-Responde Dona Marília,carinhosamente.


-Vai pela sombra,brother!-Responde Fred alegremente.


Lineu e o pai saem de casa sem dizerem uma palavra um ao outro.Porém antes de tomar caminho em direção ao ponto de ônibus,Seu Abreu se dirige ao filho:


-Boa sorte no colégio,filho.


O garoto,que estava indo na direção oposta,pois seu ônibus passava em outro ponto,se vira e responde ao pai:-Obrigado,pai.Boa sorte no trabalho-.Então os dois retomam seus caminhos.


Chegando ao ponto,Lineu espera cerca de dez minutos até seu ônibus chegar.Enquanto se encaminha à sua nova escola,o garoto torna a pensar nas mudanças que ocorreram em sua vida,como o fato de agora morar em uma cidade grande e estar indo freqüentar uma escola nova.Mudanças estas que ao mesmo tempo que criavam novas oportunidades,também assustavam um pouco.Não estava particularmente preocupado com o nível do ensino,afinal sempre fora um bom aluno,e mesmo que o nível de ensino de uma escola da capital pudesse ser um pouco mais elevado que o da sua antiga escola,sabia que não teria grandes dificuldades em se adaptar a um novo ritmo de estudo.Mas sua dificuldade em se enturmar ainda o preocupava.Se já tinha dificuldades em sua antiga escola,imagine então nesta!Ainda mais sendo um aluno novato,vindo do interior do estado,e com um jeito de ser que todos achavam “certinho” demais?Estes pensamentos passavam pela sua cabeça quando finalmente chega ao seu ponto,dando sinal e descendo do coletivo.


Depois de caminhar pouco mais de uma quadra,Lineu finalmente chega à escola.Era de fato bem maior que sua antiga escola,e parecia também ter muito mais alunos.Agora que já estava lá,precisava ir até a secretaria apresentar os papéis da sua transferência.Para isso,entretanto,precisava antes de mais nada descobrir onde ficava a secretaria.Começa então a perguntar para os alunos que passam:


-Por favor,sabe me dizer onde fica a secretaria?


O aluno passa direto e Lineu murmura chateado:


-É,acho que não...


Lineu continua tentando,e continua a ser ignorado:


-Por favor,você poderia...Deixa pra lá...Com licença,será que...


E assim vão mais algumas tentativas.De repente,o garoto ouve vozes vindas de algum lugar perto dali.Na esperança de encontrar alguém disposto a ajudá-lo,começa então a seguir o som delas para descobrir de onde vinham.


-Vai,broto,só um beijinho!-Dizia uma voz masculina,que parecia ser de um garoto da sua idade.


-Não,aqui não!Alguém pode nos ver...-Respondia a voz de uma garota da mesma faixa etária.


-Que isso,broto,só tem nós dois aqui!Ninguém vai ver!Só um beijinho,vai...-Insiste a voz masculina.


-Mas alguém pode aparecer...-Retruca a voz feminina,apreensiva.


-Fica tranqüila,broto!Não vai aparecer ninguém!Agora vem cá,dá um beijinho...-Diz a voz masculina.


Neste momento Lineu,que havia descoberto que as vozes vinham de trás de uma porta semi-aberta,abre a porta no momento em que o jovem casal estava prestes a se beijar:


-Com licen...


Ao se deparar com os dois,Lineu fica completamente desconcertado.Surpreendidos,a garota abre a boca com expressão surpresa enquanto tenta se recompor,e o garoto balbucia algo como “Mas que..” e olha na direção de Lineu com expressão surpresa e irritada.Os três permanecem estáticos,olhando pras caras uns dos outros quando de repente ouve-se uma voz vinda de trás de Lineu:


-Mas o que é que está acontecendo aqui?!-Diz uma voz feminina envelhecida e em tom irritado.


Sem saber o que fazer,Lineu vira-se devagar,dando de cara com a inspetora escolar.Ainda um tanto atordoado,o garoto responde fingindo nãoentender:


-Perdão?


-Perguntei o que está fazendo aí... -Repete a senhora em tom severo.


E agora?O que deveria fazer?Não podia entregar os dois!Sabia que o que eles estavam fazendo era proibido,mas,afinal,eles não estavam prejudicando ninguém,então não era justo prejudicá-los.Tentando manter a calma,Lineu responde procurando não transparecer nervosismo:


-E-Eu estava procurando a secretaria...


-No armário do zelador??-Indaga a mulher,desconfiada.


-Bem,é que eu sou novo aqui...-Responde Lineu timidamente


Após olhar demoradamente para o garoto,a inspetora,parecendo convencida de sua sinceridade,responde em tom sério,mantendo a expressão severa no rosto:


-Vire à direita no fim do corredor,depois siga em frente.É a última sala à esquerda.


-Obrigado- Responde Lineu de maneira sincera.A mulher então lhe dá as costas e vai embora.


Aliviado,Lineu observa enquanto a mulher vai embora.De repente,ouve uma voz vinda de trás da porta do armário do zelador:


-A barra está limpa?-Pergunta o garoto desconhecido.


-Er...Está sim.-Responde Lineu.


Livre do perigo,o casal sai de dentro do armário.A garota vai embora de mansinho,caminhando apressadamente e tentando não ser vista.Enquanto isso o garoto vai em direção a Lineu.Agora que a tensão já tinha passado,Lineu podia observá-lo melhor:Tratava-se de um garoto da sua faixa etária,um pouco mais baixo e com cabelos cheios e encaracolados,um tanto bagunçados.Agora ele se encontrava em sua frente,dirigindo-se a ele com um sorriso simpático:


-Cara,obrigado por livrar a minha barra!-Diz o desconhecido,em tom de gratidão.


-Ahn...De nada- Responde Lineu,incerto.


-Então quer dizer que você é novo aqui...-Diz o outro garoto.


-Er,sim,acabei de me transferir.Me chamo Lineu Silva.-Estende a mão ao garoto.


O garoto aperta a mão de Lineu e responde:


-Prazer:José Carlos Mendonça.




Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.