Glory and Gore

You were my crown, now I’m in exile.


O ódio que Clove sentia do Distrito 13 era tudo que ela tinha.

Ela odiava o cinza sufocante do lugar, o silêncio ensurdecedor, a cara de doença que os moradores de lá tinham, espremidos embaixo da terra como um bando de ratinhos frágeis.

Depois de sua primeira semana lá, os dias começaram a se embolar. Não havia dia, não havia noite, havia o cinza. Havia uma cama parecida com a da Academia e um compartimento que ela não sabia como ter sozinha, pesadelos perfeitamente coloridos e um vazio que engolia, retumbava pela madrugada enquanto seus olhos abertos encaravam o teto.

Clove sempre havia sabido que você só pode odiar o que você verdadeiramente conhece. Foi assim que ela havia conhecido Cato, Wade, Naevio. E foi assim que ela emergiu na cultura robótica do 13. Era fácil de entender. Na Academia, eles tinham um sistema perfeito que era parecido com aquele. Claro que em casa as pessoas tinham ilusões e objetivos por trás de toda aquela obediência e claro que as pessoas do 13 sabiam que precisavam sobreviver simplesmente porque eram números importantes, mas Clove se esforçou para cooperar.

Ela tinha seu braço tatuado todo dia. Ela performava suas tarefas com perfeição. Ela aparecia para as reuniões com todas aquelas pessoas nas salas ainda mais embaixo da terra. E ela assistia a guerra destruir seu mundo de verdade de longe.

Não havia álcool nenhum no 13. Nenhum que fosse feito para consumo, pelo menos, o que era uma pena porque agora Clove não tinha nada para justificar todas as lágrimas grossas que rolavam por seu rosto toda noite ou os vômitos incessantes que destruíam sua garganta. Mas ela não estava surpresa, exatamente, porque ela sabia que aqueles eram os sinais de que sua existência estava lentamente se esvaindo.

Ele está morto, ela pensava, tentando testar o fato na realidade. No outro dia, no entanto, ela tentava de novo encantar os líderes e consegui-lo de volta. Toda vez que Clove recebia outra negativa, seus olhos se desviavam para Katniss Everdeen e ela deixava que seu ódio ficasse claro para a outra Vitoriosa. Se ela só pudesse parar de se lamentar e dizer que queria os outros de volta, céus e terras se dobrariam. Ela era o Tordo.

Sacrifícios tinham sido feitos, vidas estavam sendo tiradas por uma menina que não podia entender o mais simples dos jogos de poder.

Clove nunca havia sido fã de ingenuidade. Ela odiava a confusão, a burrice, a inabilidade. Ela odiava Katniss, escorregando seus olhos inocentes de um lado para o outro, lamentando um amante que nem queria ter em primeiro lugar, mas que podia reaver se assumisse que o estrago estava feito e que era hora de fazer tudo valer a pena.

E Clove também não era lá a maior fã da inconsequência idiota de Cato, que tinha feito as coisas acabarem daquele jeito.

Lentamente, tudo na sua cabeça passou a ser pintado em tons de cinza. Um cinza muito claro, quase branco, era o que havia na maior parte do tempo; as memórias mais agradáveis vinham nessa cor. Então havia alguma coisa em um tom de grafite, para as vezes que ela ia para as reuniões e contemplava a destruição, imaginava a expressão nervosa de Snow. O preto profundo era para a raiva que a consumia o tempo inteiro novamente, que nem nos seus dias de Academia.

O tempo todo, Clove sentia que estava lentamente deixando de existir, assim como os moradores do 13, se esvanecendo em meio às paredes, em meio à todas vezes que ela falava e não era ouvida.

Clove se lembrava o tempo todo de outros olhos muito parecidos com os de Cato, de pessoas cuja mamadeira ela tinha esquentado, de garotos ricos que tinham conversado com ela enquanto seu irmão estava nos Jogos. E ela estava ali, presa, sem poder cumprir suas promessas.

Havia essa coisa o tempo inteiro pulsando no âmago de Clove e ela teve que revirar sua mente para reencontrar a palavra, muito bem escondida depois de anos de divindade absoluta e inquestionável; era culpa e às vezes parecia que Clove não conseguia organizar sua mente frente à mais aquela intrusão, a mais um daqueles sentimentos que transformava tudo no mais absoluto caos.

Uma vez, quando eles estavam em casa e era tempo de praticar pros Jogos em uma das florestas, Clove tinha criado uma armadilha perfeita para afastar Cato e seus olhos muito expressivos. Havia alianças falsas, pessoas de todos os cantos do distrito e dívidas sendo pagas. Ela tinha movido céus e terras, trazido o inferno para a terra, mas ela tinha conseguido o que queria. Ela sempre conseguia, sempre.

(Mas por que então Cato ainda não estava de volta?)

Ela não conseguia entender por que ninguém conseguia ver a deusa da guerra que ela era, por que ninguém estava comprando suas frases bem elaboradas, por que a destruição não estava sendo imposta pelas mãos dela.

Clove odiava o Distrito 13 mais do que tudo e ela sabia que os moradores de lá entendiam isso muito bem, que eles sentiam a raiva destrutiva que emanava dela, que eles se mantinham longe com razão.

As pessoas de lá sabiam que ela não pertencia em nenhum lugar em que sua glória não fosse reconhecida. Elas sabiam sobre o estrago que ela podia fazer e elas não ficavam entusiasmadas com ele. Afinal, Clove sempre seria a queridinha da Capital, um dos cachorrinhos que possuíam coleiras de diamantes e manchas do sangue de seu próprio povo.

Ela não podia discutir com isso.

Na maioria das vezes, ela se sentava sozinha nas refeições, fazendo e desfazendo planos. Algumas vezes, um ou outro forasteiro que de alguma forma tinha chegado ali se sentava em sua frente, simplesmente porque não havia nada melhor, reconhecendo sua existência com olhos que brilhavam com receio e nem um pouco do respeito que devia vir com ele. Effie Trinket, a escolta do 12, gostava muito de resmungar sobre as regras do distrito pra ela, outra cidadã de outro nível que meramente estava fora do lugar.

“As coisas vão voltar ao normal”, ela dizia e Clove queria estapear o rosto dela a cada palavra que ela emitia, porque a presença daquela pessoa da Capital ali parecia uma piada de mau gosto.

Em uma noite, Clove sonhou que caía nas entranhas incomuns de uma terra desconhecida. Ela segurava um colar entre os dedos e deixava que suas contas formassem buracos cheios de sangue em sua pele. Clove caía e caía e seu primeiro movimento quando acordou foi tentar alcançar uma mão que não estava mais lá.

— Eu revirava o inferno inteiro. Isso nem existe. Desafia as leis.

Cato tinha aquele sorriso enorme, descontrolado, meio infantil, meio insano. As palavras que Clove tinha acabado de proferir ainda ecoavam no ar, cheios da vagueza provocadora que era sua marca. “E se eu morrer?”

— Que leis? – ela perguntou, se esticando pelo sofá para alcançar o copo na mesa de café da casa de Cato.

— Minhas leis. – Foi a resposta curta dele. Clove bebericou sua bebida em silêncio por um tempo, contemplando o que estava tecendo. A figura de Cato começava a se inquietar sob seu olhar pesado. Ele engoliu mais rum e se levantou do sofá de frente para o dela. – Por que você ia morrer? Você já ganhou.

— E as pessoas só morrem nos Jogos? E se você morrer? O que seria feito?

Sua cabeça pesava e ela mal conseguia sentir o chão aos seus pés, mas ela o seguiu até a cozinha. Ele estava debruçado no armário, pegando alguma comida.

Cato costumava ser um deus. Ele nunca pensava sobre a morte, nunca admitia que ela existia em outra forma além da dele. Clove esperava algum rompante frente à sua audácia de questioná-lo sobre qualquer possibilidade além da vida eterna (porque era daquilo que Clove precisava agora, de algum rompante forte o bastante para assegurá-la de que a aliança ainda estava firme, à despeito de tudo que tentava sufocá-la).

Mas Cato havia ganhado os Jogos há um tempo. E o ódio que ele sentia era diferente do que ele costumava sentir.

— E daí se eu morrer? – ele deu de ombros, se encostando na pia, seus olhos enevoados com o álcool e com alguma outra coisa que sempre tinha pairado em seu olhar, talvez loucura, talvez outra coisa.

— Como vai ser?

— Eu quero morrer novo. Se der certo, vai ser ótimo.

Tudo pausou por alguns minutos.

A audácia.

Ele ergueu as sobrancelhas, porque o jogo tinha virado contra ela muito rapidamente.

Cato pareceu confortável demais, pareceu há muito esquecido de todas as promessas estranhas, da aliança de ferro que havia marcado que os dois só poderiam ir embora ao mesmo tempo.

Clove se viu cheia de ultraje, de raiva.

— Não se iluda. Você vai morrer velho.

Ivory Callowell se sentou à sua frente, segurando uma bandeja com seu jantar.

— Não te vi nas reuniões hoje.

Clove demorou um pouco para assimilar a fala repentina do homem, ainda absorvida pela cor violeta artificial de seus olhos grandes. Então havia o cabelo, levemente azulado, desbotado sem a coloração usual. Tudo contra o cinza violento do lugar. Uma pontada repentina atravessou sua têmpora. Ela não estava mais na casa de Cato.

— Eles até levaram a menina pro 12.

— Eu fiquei sabendo – ela finalmente montou a frase, abaixando os olhos para a sua comida, porque ninguém queria levar ela de volta pra casa, mas a 12 podia passear no meio das cinzas.

— Se tudo der certo, parece que ela vai colaborar com a gente.

— Bom saber.

Ivory permaneceu os olhos em sua figura; Clove permaneceu concentrada em mexer de um lado para o outro a mistura que tinha sido servida naquele dia.

Ivory tinha sido um dos espiões na Capital. Traído sua casa, passado informações para os outros distritos desde sempre com uma naturalidade impressionante. Seu nome estava sempre sendo mencionado nas conversas antes da revolta implodir de verdade.

— Ela fez uma lista. Com as pessoas que ela quer poupar.

Clove meramente arregalou os olhos para ele, como quem diz que não poderia se importar menos. Afinal, Cato tinha cercado Katniss na Capital, todo cheio de olhos intensos, lembrando a menina bem demais do motivo de sua coroa.

— Por que você não estava lá? – Ivory perguntou, direto.

— Dor de cabeça. – No Distrito 2, uma desculpa fajuta dessa seria malvista, se não severamente punida. No 13, com suas formiguinhas prontas para guerra e cheias de todas as rações nutricionais, não devia ser diferente. E mais ou menos, Ivory sabia disso, julgando pelo olhar de aviso que ele a direcionou.

— O pessoal queria te usar para os pontoprops...

— Eu sou do 2 – ela rosnou.

— Mas eles vão esperar – ele continuou, à despeito de sua interrupção rude. – Até a gente conseguir a maioria dos distritos. É muito cedo.

— Sempre vai ser, ninguém além do 2 quer ver minha cara. Eu falei isso. Pra Coin. Pro Plutarch. Pra você, pra quem quiser ouvir. E vocês não vão conseguir o 2 se não tiver alguém...

— A Capital ainda está dominando o 2, Clove, ninguém vai tirar um Vitorioso que está perfeitamente seguro aqui pra jogar no meio do combate assim, à troco de nada.

Eu preciso ir pra casa.

Eu quero desistir dessa história de guerra.

Eu quero ele de volta.

Clove queria falar tudo isso, tentar todas as abordagens, apelar para todos os ângulos mais uma vez. Mas nada quebrava a frieza distante do 13. Clove quase não sabia como agir, quando tudo que ela tinha sido por anos era negado daquela forma tão casualmente repressora.

O que era Clove Kentwell sem uma traição, sem uma conspiração, sem as coisas bonitas e caras (e sem Cato Hadley)?

— Você disse pro Plutarch que só dava pra conseguir o 2 se o Cato falasse com o pessoal de lá – Ivory afirmou, de repente, como se estivesse receoso de cuspir tais palavras.

Seus olhos mais uma vez se encheram de raiva. Clove odiava ouvir sobre coisas que ela não podia ter. Ela se curvou mais na mesa, deu a Ivory outro ângulo para observar seus olhos, para deixar que ele sentisse a ameaça melhor.

— E daí?

— Por que você já quer ir pra lá? – se você é inútil sem ele, ela completou.

— Porque o Cato está morto. É eu ou nada. E essa porra de guerra tem que acabar uma hora, então é melhor vocês se contentarem comigo.

A coisa toda soou menos impactante do que deveria. Clove não conseguiu nenhuma sensação de triunfo do rosto assustado que Ivory deveria ter. Ela não conseguiu nada. Conseguiu a mesma respiração entrecortada de sempre, o mesmo caroço na garganta, as mesmas pontadas na cabeça. O mesmo.

Contudo, as pessoas da Capital eram fãs inatas do drama. Eles amavam umas verdades impactantes, uns olhos desesperados e a coisa toda. Ivory a olhava com uma admiração de outro mundo (era admiração, tinha que ser, não tinha nada a ver com pena ou surpresa ou nenhuma realização surpreendente nem nada assim).

— A Katniss pediu imunidade pra ele – ele emitiu, impessoalmente, a despeito de sua expressão comovida.

Clove desviou os olhos da figura pálida de um dos moradores do 13 e os fixou em Ivory.

— O quê?

— A gente acha que os Vitoriosos capturados estão vivos. Ainda. A Katniss pediu imunidade para eles, independente do curso da guerra.

Clove tinha visto coisas ruins acontecerem antes. Com chances melhores, pessoas tinham morrido na sua frente. Ela não queria acreditar em nada que uma pessoa da Capital dizia, uma pessoa que não tinha visto nada além de sonhos realizados e perfeição a vida toda. Ela conhecia a vida melhor que ele. A morte também.

— Ele não foi capturado na arena – ela refutou, afastando a bandeja de sua frente, a comida intocada e a bile queimando sua garganta.

— Nem a Annie Cresta. Mas ela está viva, ela está lá com os outros. Cato é esperto, eu tenho certeza que ele conseguiu se virar.

O tom de consolo, as pontinhas daquela esperança infantil transparecendo na voz de Ivory cutucaram Clove. Ela se levantou. Os olhos de Ivory se arregalaram pelos segundos em que ela pairou de pé sobre a mesa, a linguagem corporal sugerindo coisas que ele preferia não compreender.

— Cala a boca. Cala a porra da sua boca. Você não sabe de porra nenhuma e eu estou pouco me fodendo pra sua opinião sobre quem está vivo ou morto ou o caralho a quatro. Então enfia essa sua pena no seu...

“Você não sabe como mexer com essas coisas.”

Então, bang. Ela viu tudo muito claramente. Ela empurrou o cinza pro fundo da sua mente. O mundo inteiro era preto e branco. Seus alvos eram coloridos de um vermelho escarlate. Ivory era um deles e ela soube exatamente o que precisava fazer.

— Me desculpa – Clove suspirou, se jogando de volta no banco dramaticamente. – Eu só...

— Não tem problema – Ivory devolveu, sacudindo a cabeça e pela primeira vez olhando de verdade nos olhos dela.

E Clove viu outros olhos, viu crianças quebradas que tinham ficado no meio dos planos deles, viu famílias destruídas e casas que ela costumava frequentar.

A aliança permanecia mesmo depois da morte.

— Eu estou tão frustrada. Isso é idiotice. Eu posso ajudar – a suavidade em sua voz quase a convenceu. – Essa coisa com o Cato é...

Clove observou cuidadosamente a expressão incomodada de Ivory. Ela reconheceu, admitiu o que estava vendo, ainda que com desconforto. O rosto dele estava todo cheio de tristeza, remorso, empatia. Todas as conexões estavam tecidas em sua mente. Seus olhos escuros se levantaram mais uma vez.

— Me ajuda – ela sussurrou. – Eu preciso ir pra casa. Os irmãos do Cato estão lá, a Capital pode achar eles em dois segundos. Eu só... Eu devo ele.

Havia vulnerabilidade exalando de seus poros. Ela era toda feita de olhos enormes e expressões desesperadas. Ela nunca havia sido nada além de uma vítima. Ivory coçou seu pescoço, desconfortável. Coin confiava mais nele no que nela, afinal. Clove viu com clareza o próximo movimento.

— Você deve ele, também. Pensa sobre a quantidade de vezes que você poderia ter sido pego se não tivesse sido ele cobrindo você. Você deve ele.

E, simples assim, Clove descobriu como traçar seu caminho de volta para casa. Ivory era mais um daqueles senhores poderosos que usavam pessoas como Cato como seus gladiadores pessoais. E ele tinha ciência disso. E, infelizmente para ele, ele sentia muito por isso.

Clove não sentiu pena de Ivory enquanto o observava na reunião, suando enquanto apresentava seus argumentos em frente aos olhos esquisitos de Coin, que quase não parecia respirar, mas que concordou com um aceno de cabeça depois de dois dias de deliberação.

Afinal, guerreiros como eles não deviam se misturar além do necessário com pessoas da Capital, todos da Academia estavam sempre dizendo, e eles estavam naquela desgraça por culpa de pessoas parecidas com Ivory, então que ele se entendesse com Coin. Esse era o pensamento na mente de Clove enquanto ela aterrissava no Distrito 2.

Havia infinitas recomendações por parte do 13. Ela não devia circular por entre as vilas mais ricas, não devia ser vista por ninguém além dos pedreiros que não estivessem envolvidos com a Montanha da Capital. Era quase como se eles soubessem mais sobre seu próprio distrito que ela, que havia transitado por cada um dos círculos sociais daquele lugar.

À noite, eles a deixaram na base rebelde definida desde o começo da rebelião, uma extensão abandonada da Academia que ficava no meio da floresta mais próxima da Montanha da Capital, onde as práticas para os Jogos aconteciam anualmente.

Clove tinha sentido falta das árvores, das florestas, da montanha, da neve, do ar. E de um tanto de outras coisas que ela não podia reaver só de voltar para casa.

No fundo, uma frustração destruía suas estranhas. Ela estava em casa. E, mais uma vez, Cato não estava lá.

Você sabe, o problema é que Clove não estava convencida de que Cato estava morto. Ela não estava (então ele não poderia estar, certo?). Ela não tinha sentido a dor súbita, o ar sendo expulso de seus pulmões, a certeza sufocante que deveria sentir quando ele morresse.

Clove caminhou com menos certeza quando desceu do aerodeslizador.

— Clove – Lyme a saudou imediatamente, parada na entrada da base, a mesma rigidez de sempre, mas um pouquinho mais de afobação.

— Lyme – ela respondeu, apertando a mão da outra Vitoriosa. Durante todo o processo que desencadeou a guerra que elas atravessavam agora, Lyme e Clove não haviam se encontrado muitas vezes. Não iria ser certo, não pegaria bem. Além disso, Lyme sempre era muito chegada a passar muito tempo observando Clove, como se esperando que ela denunciasse alguma lealdade à Capital enquanto jantava ou trocava algumas palavras com Cato.

— Eu não esperava que você fosse vim pra cá. Pensei que eles estavam segurando os mais novos no 13 para a divulgação – Lyme disse sem qualquer entonação em especial, como sempre, enquanto elas seguiam pelo corredor largo da base.

— Esse era o plano original – como Lyme esperava que ela acrescentasse mais alguma coisa e ela não tinha bem o que acrescentar, Clove meramente deu de ombros, arregalando enfaticamente os olhos. Um período longo de silêncio se seguiu. Quando Lyme parou na porta de uma seção cuja placa de identificação exibia o nome “dormitórios”, ela se virou para Clove como se estivesse esperado a vida inteira para dizê-la aquelas palavras:

— Como o Cato foi capturado?

Não era nada que ela estivesse perguntando para fazê-la se sentir melhor, Clove sabia, nada parecido com educação ou interesse cordial. Era algo que ela ordenava, algo num tom em que os treinadores podiam subitamente perguntar “o que você faz se desconfiar de infecção em algum ferimento?”.

Clove não quebrava fácil, contudo, ela não era uma de Lyme que nem Cato era. E, por isso, ela não estava no clima de avisar para ela que Cato tinha decidido casualmente assassinar um cidadão da Capital. Então, Clove meramente sacudiu a cabeça e deu de ombros.

— Você estava dopada ou alguma coisa assim? – Lyme disparou de novo, a encarando atentamente com seus olhos estreitos.

— Não.

— Então por que você não fala pra ninguém o que aconteceu? Porque você sabe o que aconteceu, eu sei que você sabe, vocês estavam lá juntos, eu passei as informações para ele e você tentou ir atrás dele, então eu só posso assumir que você sabe por que ele ficou pra trás. Por que você não quer dizer, Clove? – a intensidade súbita nas suas perguntas, sua figura enorme se inclinando em sua direção, tudo fez com que Clove quisesse se afastar. Mas ela cruzou os braços e ficou no mesmo lugar porque sua lealdade era firme e só Deus sabia se Lyme não iria correndo contar pro 13 e anular a história da tal da imunidade. – Você tem consciência de que o 13 pode mudar de ideia sobre essa imunidade dependendo do motivo pelo qual as pessoas estão lá na Capital? Você entende, Clove, que eles não veem a gente do 2 do mesmo jeito? Você não quer ajudar o Cato?

— Eu não sei o que aconteceu. – Ela emitiu firmemente, encarando a outra mulher nos olhos, encostando-se à parede atrás de apoio. Ela poderia segurar aquela situação por mais alguns minutos, se ela quisesse, ela já tinha feito coisas parecidas antes. Mas Lyme provavelmente demoraria um tempo antes de desistir ou de começar a gritar com ela e Clove estava honestamente cansada. Então ela escolheu cuidadosamente suas palavras. – Eu sei que ele conhecia o plano para sair de lá melhor que qualquer um. Ele não estava planejando ficar.

Lyme inexpressivamente acompanhou o movimento de cada um de seus músculos faciais, a cadência de cada uma de suas palavras. Ela assentiu, depois de um tempo, para que Clove continuasse.

— Ele não traiu a rebelião, ele não ficou lá de palhaçada. Alguma merda aconteceu, então antes de entrar no aerodeslizador, eu decidi ficar pra descobrir o que tinha sido. Eu tenho certeza que você ouviu a respeito – Clove acrescentou, observando o leve franzir nas sobrancelhas da mulher frente à sua menção aos acontecimentos na Capital antes da fuga. – Eu não estava querendo dar trabalho nem foder a causa nem nada assim. Eu sabia o que estava fazendo.

— Sabia?

Um silêncio pesado se estendeu. A expressão de Lyme parecia ser feita de pedra, mas ela conseguiu ouvir a reprovação quase irônica no seu tom de voz, na pequena erguida de sobrancelha. Clove fechou mais o rosto.

— Eu não sabia onde o Cato estava, mas eu ia procurar ele – ela disse, e quase pareceu um rosnado.

— E aí?

— E fim da história – Clove sibilou. – Eu não consegui ir atrás dele, ele deve ter morrido. Talvez os Pacificadores tenham pegado ele, eu não sei. Merdas acontecem. Foi o que aconteceu.

Lyme passou mais um tempo a olhando. Era estranho para Clove ser o objeto daqueles estudos cuidadosos.

— Então você não vai mesmo falar que porra o Cato estava fazendo para não entrar na merda daquele aerodeslizador? – Lyme falou, sua voz muito firme à despeito da breve expressão de choque no rosto de Clove ao ouvi-la xingar. – Ele só largou os irmãos dele e decidiu dar uma de doido, então, ele estava entediado assim?

Clove permaneceu em silêncio, sustentando o olhar gélido de Lyme com uma expressão impassível que era quase de tédio, só para dar uma afrontada de leve.

— Você ainda subestima a Capital – foi o que Lyme decretou depois de longos minutos. Clove quase disse “ajeita suas sentenças”, mas pensou melhor e só estreitou suas sobrancelhas em sinal de confusão. – O Snow não matou o Cato.

— É uma opção tão boa quanto as outras – Clove rebateu. Cato estava morto, Cato estava morto, Cato estava morto. Ela precisava impregnar sua mente com aquelas palavras até que elas pudessem ser assumidas como verdade. Não havia motivo para se convencer do contrário. Ela tinha demorado demais. Ele tinha assassinado um cidadão da Capital. O que podia se esperar?

Ela não devia esperar mais nada. Ela devia assumir o pior, como sempre tinham te ensinado.

— É uma opção idiota. Você é idiota se acha que o Snow não sabe da sua proximidade com o Cato.

— Eu não acho que ele não saiba, eu acho que isso não importa muito pra ele no presente momento – Clove respondeu, o tom insolente formando uma afronta que Lyme com certeza não costumava tolerar.

— Não é pra você ser a inteligente? Importa. – Lyme falou, a nano segundos de interrompê-la, irritada com o conjunto de sua voz arrastada e sua expressão de tédio e aquele desespero no fundo dos seus olhos verdes.

Clove tinha tirado todos os outros Vitoriosos do pedestal assim que havia vencido os Jogos, porque ele pertencia apenas a ela. Lyme, entretanto, lembrava mais um general do que uma celebridade da Capital. Ela respirou fundo e continuou em silêncio por mais uns segundos esperando que Lyme fosse desistir daquele interrogatório idiota.

Mas.

Lyme suspirou e não pareceu que ela traía pessoas da casa dela. Clove confiava em seu julgamento.

— Ele matou o Naevio. – Clove cuspiu, de repente.

Lyme arregalou incisivamente os olhos frios, ofegando de um jeito que era muito pouco característico de sua personalidade firme.

O quê? — ela rosnou, entredentes.

— O Snow me vendeu para um cara da Capital. O Cato matou ele – Clove repetiu à contragosto, tentada a desviar o olhar porque só o que faltava era Lyme dizer que aquilo tudo era culpa dela.

— Clove. Presta atenção... – Lyme começou em um tom de aviso, sacudindo a cabeça como se não quisesse ouvir mais nada daquela trama complicada, como se Clove estivesse falando demais.

— Ele matou ele. Eu já vi o Cato fazer merda desse tipo antes. Isso não tem só a ver com essa porra de rebelião, ele matou uma pessoa da Capital e ele ficou porque deve ter se atrasado fazendo isso. Então é melhor pra ele se ele estiver morto.

Por alguns segundos, nada pôde ser ouvido. Em algumas salas à direita, entusiastas da guerra produziam algum material e a floresta lá fora era castigada com ventos impetuosos, mas nada foi ouvido entre as duas mulheres no Corredor B da base rebelde do Distrito 2. Elas contemplaram o eco das palavras de Clove, verdades violentas que evocavam ideias melhor ajustadas a partes inacessíveis de suas mentes.

— Ele não está morto. – Lyme decretou, ao fim de alguns pesados segundos. Ela se aproximou mais um pouco da figura dela e Clove entendeu que Lyme era leal a ele pelo jeito que ela mordicou o interior da bochecha antes de dizer: – E não delira, garota. O Cato não matou ninguém.

Naquela noite, Clove se deitou no dormitório 7b e encarou o teto do quarto que dividia com uma garota pequena que depois veio a descobrir ser Gaia.

Era ruim que Cato pudesse estar morto, mas era impensável, desesperador, que ele pudesse estar vivo. No fundo da mente de Clove, algumas imagens rodavam em branco e vermelho, como se estivessem tentando recriar aquela história excruciante. Cuidadosamente, ela criava legendas para as figuras até se lembrar de cada um dos detalhes que as compunham, até se lembrar de cada um dos crimes, cada um dos pecados.

O vermelho no fundo dos olhos de Cato quando eles tinham doze anos contra o branco sufocante de sua casa. A palidez doentia de sua pele nos Jogos. Os ternos de Naevio. Os dez mil lençóis brancos dos seus clientes. Seus próprios lábios checados em um espelho (Cato aparecendo no fundo). O Voivode no inverno. O sangue escorrendo de uma das vítimas de Wade (a sensação das mãos dele ao redor do seu corpo). Um pedaço de tecido vermelho aparecendo por baixo dos escombros de uma explosão no Distrito 8.

Clove levantou às três da manhã para vomitar no banheiro de frente para seu dormitório.