Glory and Gore

Take the blade out of my heart so you can watch me bleeding.


As meras horas que ficavam entre a Capital se esvaneceram como nano segundos. Quando Clove arreganhou a porta do quarto de Cato e se empurrou para dentro, ele percebeu que ela não tinha acolhido bem a história com o Wade.

Não importava. A simbiose deles não estava completa. Algumas coisas pertenciam só a ele.

— O que você queria? – ela perguntou, sua voz transformada em um rosnado.

Cato permaneceu deitado em sua cama excessivamente macia e mal levantou a cabeça dos braços espalhados para vê-la. Ela estava usando só um daqueles roupões que a Capital adorava, todo cheio de pelos marrons.

Na cabeça de Cato, pareceu que ela estava usando a pele de Naevio.

— Só te impedir de se matar – foi a resposta honesta de Cato, que decidiu continuar a encarar o teto. Exatamente como poderia prever, sua recusa em fitá-la só serviu para enfurecê-la ainda mais; o rosto de Clove atingiu um tom de vermelho peculiar. Contudo, Cato já tinha bebido demais para se prestar a tentar vencer uma disputinha com Clove, que só vinha atrás dele daquele jeito se estivesse procurando uma, ainda mais depois que ele interrompeu um de seus longos mergulhos. Só traria mais problemas, então ele quis acabar logo com aquilo. – Eu não queria nada com você, Clove. Foi mal.

— É? Só quer com o Wade agora, não é? Pra ele poder arranjar um jeito de te foder de novo quando a gente estiver lá na Capital – Clove sibilou, ainda parada, seus braços cruzados escondendo os punhos que suas mãos formavam. Cato não respondeu nada. – Por que porra você não acaba logo com essa putaria, Cato? O Wade é a porra de um traidor fodido que acabou de tentar mandar a gente...

— Eu não vou discutir isso com você de novo. Essa porra não é da sua conta, você não foi chamada, nada aconteceu – Cato a interrompeu, se sentando na cama.

— Eu entendo que você agora é todo bonzinho e carinhoso, mas isso, Cato, isso é uma coisa que você não devia deixar passar. Não é possível que você vai deixar o distrito todo saber que você amoleceu desse tanto.

As palavras penderam no ar abafado do trem por um segundo.

Cato conhecia Clove como conhecia cada uma das cicatrizes que adornavam seus braços. Ele sabia que não podia esperar nada mais dela, a devota à Bellona que era. Não havia nada que Clove fizesse melhor do que incitar o caos, ultimar a violência até que nenhum traidor fosse perdoado por sua mente traiçoeira. Tudo aquilo era só Clove sendo Clove, Cato sabia disso, sabia que não havia finalidade em levar a sério seus insultos ardilosos.

Cato sabia de tudo aquilo.

Contudo, o rum ainda abrumava o pensamento sempre confuso de Cato e alguma coisa pairava no ar, arrepiando os cabelos atrás de sua nunca. A mesma coisa que sempre pairava nas salas abandonadas da Academia e que tinha pairado na casa da Rania quando ele colocou os olhos na mesma figura fulminante de agora.

Então Cato avançou na direção de Clove e a coisa era séria porque seus dentes se chocaram dolorosamente e as unhas dela cravaram na pele de seus braços no mesmo segundo. Alguma coisa em suas células gritou imediatamente para que eles parassem com aquilo porque já fazia algum tempo que Clove e ele não faziam as coisas daquele jeito, que eles tinham decidido reservar a brutalidade para seus clientes na Capital.

E depois, era pra eles se comportarem, certo?

(Porque que Deus proibisse que eles ouvissem mais uma vez aquelas vozes que sempre diziam que as decisões erradas deviam ser tomadas, que nada era real a não ser a morte, inevitável, convidativa, a maior razão de ser, manifestada na figura de Cato, manifestada na figura de Clove).

— Clove, o velho vai ver essa merda – foi o que ele conseguiu grunhir. Clove parou por alguns segundos e Cato quase ficou aliviado. Ela deu alguns passos para trás e Cato cambaleou de volta para a cama, sustentando a cabeça com as mãos, pronto para que ela fosse embora. E quase pareceu que tudo tinha aquietado de novo, até que Cato ouviu o peso do roupão de Clove atingindo o chão. Ele firmemente plantou seus olhos no carpete. – Não fode, Clove.

À despeito de quão clara sua posição parecia em sua cabeça, a voz de Cato era um mero lamento doloroso. Tudo aquilo era muito fodido. Clove era demais pra ele, que nem todo mundo havia o alertado, e não tinha como eles continuarem com aquele jogo antigo quando ele não era mais o Cato antigo.

Ele não estava recebendo uma resposta.

— Para com essa porra, Clove, para de me perturbar – Cato implorou mais uma vez, sacudindo a cabeça. Mas o silêncio de Clove estava durando demais e havia essa aura esquisita ao redor dela que Cato não podia realmente ignorar. Então ele levantou o olhar e sustentou seus olhos escuros, tentando esvanecer todo o resto. – Para com isso.

— Não – Clove sussurrou, alguma coisa que se pareciam com lágrimas tomando seu olhar. Ela também sacudia a cabeça agora. – Aquela merda que você disse ontem.

— Eu te ouvi, eu sei dessa porra toda! A gente não vai se encostar, ele não vai ver nada, eu juro, para com essa merda.

— Não! Aquela coisa que você disse ontem, aquela coisa ridícula que não é verdade – a voz de Clove estava embargada naquele desespero inquietante, agora, e ela começou a avançar em direção a Cato. – Você só fala merda, Cato, você não sabe de porra nenhuma e nada daquilo é verdade. Você nem reconhece a porra de um traidor quando você vê um, então que direito você tem de me acusar de ser uma?

Clove nunca ficava bêbada, de acordo com ela, mas aquilo dali era ela estando bêbada com todas as melhores bebidas da Capital. O peito de Cato se apertou mais uma vez porque ele não ia olhar pra ela, mas seu olhar era uma coisa de outro mundo, uma coisa cheia de ruína e dor e ela continuava andando em sua direção e Cato pensou que aquele inferno nunca iria acabar porque o que quer que fosse que ele tinha com Clove ainda destruía o lugar onde seu coração devia ficar.

— Clove, não faz isso – Cato murmurou novamente. Ela sacudiu sua cabeça em resposta e uma única lágrima escapou de seus olhos.

— Você não sabe de porra nenhuma. O Wade é o traidor, ele que te trai toda vez – Clove disse antes de agarrar de novo o rosto de Cato e o beijar. Ele sentiu as lágrimas no rosto dela e aquela agonia no jeito que ela o beijava antes de se afastar. Clove o deixou, mas continuou segurando seu rosto. Cato não queria sustentar seu olhar de novo, mas ele o fez. Então ele viu, tudo de novo, tudo que ele tinha visto na primeira vez que tinha colocado os olhos nela. – Cato, por favor.

E mesmo antes que Adão pudesse se apaixonar por Eva, Cato ainda iria fazer qualquer coisa que Clove o pedisse daquele jeito.

Então ele a beijou (olhos bem apertados para não ver a destruição nos olhos de Clove) e a deitou na cama com cuidado. Ela beijou sua mão, o único gesto de gratidão que ela conseguia performar e Cato inalou seu perfume, constituído de tudo que era tortuoso. O mundo era feito de traição e de lealdade e eles paravam de se machucar toda vez que capturavam o olhar um do outro, olhares bestiais que só podiam ser tratados com gentileza. Clove parou de chorar. Cato sentiu arrepios levantarem os pelos na sua nuca mais uma vez.

Eles contemplaram o mundo desabar mais uma vez. Nada era tão real quanto a morte, afinal.

x

Clove permaneceu no quarto de Cato pelo resto da viagem.

Eles não falavam nada, que Deus proibisse, mas alguma coisa no jeito em que ela estava se mexendo fez Cato pensar que ela queria dizer alguma coisa importante. Ele não perguntou, contudo, e assistiu em silêncio enquanto ela penteava o cabelo em frente ao espelho. Ela sustentou seu olhar por alguns instantes.

— Eu preciso encontrar o Naevio hoje.

Ela não iria mesmo receber folga naqueles tempos em que sustentar a imagem da Capital era a missão oficial deles. Cato sabia disso e ele se perguntou o que Clove queria realmente dizer com seu anúncio, mas tudo ficou claro quando ela caminhou até a cama e o beijou de novo, muito levemente, daquele jeito que era proibido tempos atrás.

Ela estava o testando, verificando se ele ainda iria conseguir tocá-la depois que ela fosse tocada de novo pelo homem da Capital. Clove esperou por uma resposta bem conhecida, parada ao lado da cama.

(Eles sabiam que ele ia conseguir, que não havia nada que ele negasse a ela).

Era como sempre. Nenhum grito, nenhuma promessa, nada sobre bom comportamento era verdade. Nada era tão real quanto Clove, divina, perfeita, demais pra ele.

— Eu vou esperar você – Cato respondeu.

Que nem ele tinha feito todas aquelas vezes na floresta da Nêmeses, ossos quebrados e hematomas que só ela conseguia consertar, tudo para que eles pudessem amaldiçoar a figura de seu pai sem usar uma palavra. A única coisa forte o bastante eram os olhos de Clove na escuridão mais absoluta e suas mãos suaves dando pontos e fechando curativos com muita força.

Eles se juntaram ao resto da equipe na chegada à Capital. O Distrito 2 nunca tinha sido conhecido por tratar muito bem suas escoltas, então, longe das câmeras, Iovita permanecia de braços cruzados encarando a janela.

— Controlem as garras. A selvageria de vocês só é bonitinha na televisão – foi seu conselho. Porque ninguém na Capital queria ver que suas bestialidades eram tecidas exclusivamente para eles, seus expectadores mais féis.

Planos acertados e tudo, a chegada na Capital foi gloriosa. Enquanto o trem parava, ficaram os quatro lá, relativamente perto uns dos outros, provocando e alimentando a multidão bizarra, psicótica. Eles se lançavam contra o trem, preparados para adorar com toda a força mais aquelas oferendas antes do sacrifício. Como bestas, eles se pisoteavam e guinchavam, fechando um cerco ao redor dos Vitoriosos.

A cena vinha direto de um pesadelo, faces coloridas em desespero, mãos alteradas tentando agarrar qualquer coisa, arranhões atravessando suas peles.

Clove, como sempre, os tocou com a ponta dos dedos enquanto caminhava para o Centro dos Tributos, sorrindo enquanto eles tentavam a alcançar, todas as memórias indo e voltando em sua mente. Algumas mãos pareciam familiares, algumas vozes já tinham sido ouvidas em seus pesadelos.

Cato, como sempre, deixou eles saberem que estava pouco se fodendo para aquilo tudo. Sem se lembrar por um segundo do conselho de Iovita sobre controlar suas garras, ele empurrou todo e qualquer corpo que ficava no caminho do seu, uma carranca de ódio se insinuando em seu rosto quando os flashes ficavam perto demais.

Quando eles finalmente chegaram, Brutus era o único que tinha um rubor de divertimento no rosto, andando na frente deles, comentando o jeito que alguém tinha chorado ao segurar sua mão por três segundos. Cato se perguntou o que tinha finalmente rompido o fio que ligava Brutus à realidade, se perguntou como todas as promessas de glória haviam sido cumpridas para ele.

Ele quase o invejava.

Cato quase não o reconheceu o andar do 2 e refletiu brevemente sobre quanto dinheiro a Capital havia gastado para transformar o prédio em algo que pairava acima da definição de luxuoso para ocasião especial que reuniria suas estrelas. Mesmo assim, o ar era o mesmo e tudo parecia errado do mesmo jeito sufocante. Os flashes piscavam em uma espiral em sua mente, como sempre acontecia; ele tinha fingido apreciar a adoração deles, comentado com Dandara sobre o luxo do prédio, se gabado de alguma coisa com Kurt e se deitado naquela cama, começando a se assustar de verdade com toda aquela merda.

Então ele fez a mesma coisa.

Cato se deitou naquela mesma cama e a primeira coisa que surgiu em sua cabeça foi Clove, de certo se arrumando para sair com seu namorado no quarto ao lado. Por dez segundos, ele foi capaz de sentir raiva, porque ela puxava e empurrava, ditava regras que era a primeira a descumprir. Dez segundos. Dez segundos antes de uma coisa estranha embotar sua garganta quando ele se lembrou do olhar de Clove.

Clove, que tinha sido vendida como um animalzinho luxuoso, sendo exibida pelas ruas da Capital com todas suas coleiras de diamante, o bichinho selvagem que eles gostavam de pôr em gaiolas de ouro porque o castigo nunca era o suficiente.

Nunca havia ar o bastante, o peso nunca saía do seu peito.

Ele se perguntou se ela estava chorando enquanto calçava os saltos altos. Se ela ia voltar tão quebrada que iria recuar até com seu toque. Se alguém iria notar se ele usasse um daqueles revólveres que tinham levado sua mãe para acabar de vez com aquela merda toda.

Ele ponderou sobre quem atingiria primeiro; Cato não conseguia proteger ela ali, ele não podia consertar nada ali. Eles eram divindades, mas aquela terra não pertencia a eles e as pessoas ali só fingiam adorá-los para que pudessem torturá-los mais. E eles nunca terminariam de quebrá-los, nunca terminariam de puni-los.

Cato não saiu do seu quarto pelo resto da noite. Brutus e Enobaria tinham mais experiência em toda a coisa dos Jogos. Não havia nada que ele pudesse oferecer a Brutus, o rei absoluto da Academia, nada que Enobaria, a brilhante Enobaria, precisasse ouvir. Tudo aquilo era só porque a Capital queria passar os olhos nos últimos Vitoriosos do 2, porque Snow queria ver quem eram seus servos fiéis, quem não iria abrir com aquele tipo de tormento.

Então Cato apagou as luzes e entornou todas as bebidas que haviam em seu quarto até que tudo ficasse mais suportável. Clove não apareceu. Ele não notou.

x

Cato sempre ficava impressionado com o poder de uma ressaca sob seu corpo. Na tarde seguinte, ele se distraiu com a dor enquanto tropeçava para o chuveiro e vomitava tudo que nem se lembrava de ter consumido.

A Capital fazia umas bebidas fortes.

Àquela hora, ele imaginou que Brutus e Enobaria deviam estar sendo refeitos pelas equipes de preparação para o desfile. Mais uma vez, Cato não se atreveu a deixar seu quarto e enfrentar qualquer que fosse a armadilha que a Capital estava aprontando agora. Não havia finalidade em procurar por Clove; ele não era útil ali, não naquela terra de atrocidades.

Naquela terra, ela só sobreviveria sem ele.

Ele ficaria sozinho para preencher as horas, e decidiu não encher a cara por causa do desfile de mais tarde. Ele tomou o comprimido deixado no criado mudo do quarto e comeu lá mesmo, sentindo a dor em sua cabeça atenuar sua existência.

No ano de Clove, Cato conheceu de cor todo o prédio, cada um dos cantos, cada um dos andares, cada uma das caras inexpressivas dos Avoxes e dos patrocinadores. Ele não queria conhecer mais nada.

Ele tinha enganado todo mundo que tinha pensado que ele era um bom mentor.

Uma batida na porta. Ele ouviu os ruídos que só pessoas da Capital emitiam. Era sua equipe de preparação, esperando nervosa sua autorização para entrar. Ele grunhiu a permissão.

— Olá! É sua vez agora. Vai ser só uma coisinha por cima, meia hora no máximo – Kirana, a estilista do distrito, anunciou, apressando seus serviçais para dentro do quarto. Cato se sentou e deixou eles trabalharem, no mesmo silêncio tenso de sempre.

Ele era um deus, mas também era um monstro. Sua equipe de preparação não era desleixada com ele desde sua vitória.

— Eu vou descer para ir fazendo as honras. Te vejo lá, Cato – a voz de Clove anunciou de algum lugar na sala depois do que pareceram horas.

— Clove! – Kirana gritou. – Vocês têm que descer juntos!

Sem receber nenhuma resposta, a mulher desviou o olhar de seu tablet e se voltou para ele, um suspiro de frustração escapando.

— O que tem de errado com ela? Vocês são nossa equipe de ouro, qual é o ponto disso tudo se vocês não vão nem andar juntos?

— Deixa ela – Cato a respondeu de forma arrastada, divagando sobre que porra tinha acontecido daquela vez ou se nada tinha acontecido e ela magicamente havia decidido voltar ao plano anterior. Ele desejou que Clove pudesse parar de existir por um tempo porque aquilo era exaustivo.

— É melhor vocês acertarem isso. Se for que nem o Bac e a Diana de novo, Cato, eu juro que... – Cato vagamente reconheceu que Kirana continuava falando alguma coisa sobre o fracasso do ano passado e a dificuldade em trabalhar em equipe que ele e Clove pareciam ter.

Ele e Clove, que precisavam justamente parar de trabalhar em equipe o tempo inteiro.

— Faz sua parte, a gente faz a nossa – e soou quase como um rosnado. Ele precisou de alguns segundos para se lembrar da educação refinada que tinha que dispensar às pessoas da Capital, independente do quanto elas não merecessem, independente do quanto elas atrapalhavam suas linhas de raciocínio com todas aquelas frescuras. Tapando os olhos por um segundo, ele pensou num jeito de remendar o estrago; ele precisava deles, como sempre. Ela havia financiado sua crueldade sua fortuna e sua ruína. – Vai dar certo dessa vez.

— Se você diz – Kirana exprimiu com dificuldade por conta das lágrimas embargando sua voz. Cato quase quis rir, quase quis gritar de raiva. Aquela mulher tinha o apresentado ao seu primeiro cliente, anos atrás, olhado a cena toda se desenrolar como se estivesse orgulhosa dele, o buscado no dia seguinte com um sorriso de orelha a orelha. Ela estava chorando por conta de uma descortesia ordinária daquela enquanto ele não era sequer autorizado a chorar porque a porra de um bando de gente rica estava pagando para dormir com ele. Cato respirou fundo. Ainda havia coisas que ele precisava terminar. Lyme estaria lá, também, e talvez ela aparecesse com um plano genial para explodir a Capital de uma vez. Então ele precisava manter as boas relações com os fodidos de lá. Enquanto ela tirava sua roupa de um pacote preto sem sequer mostrá-lo com o entusiasmo e os gritinhos como mandava o protocolo, ele voltou:

— Então. Os outros Vitoriosos vão estar no desfile hoje, não é?

— Sim. No camarote, como sempre.

— Você me ajuda a chegar lá?

E foi isso. A simples menção de uma oportunidade de ajudá-lo a fazer qualquer coisa idiota bastou para Kirana voltar com seu sorriso, ainda contido, mas teimosamente esticando os cantos de seus lábios.

— Claro. Estou aqui pra isso.

— Obrigado. Eu não sei o que eu faria sem você, honestamente – Cato disse, imaginando que era daquele jeito que Clove devia se sentir toda vez que conseguia enrolar alguém. Era quase divertido.

Cato se lembrou de festas em casa, quando Clove sempre sumia para que eles não fossem vistos juntos. Era a coisa deles, afinal. Justificativa de equipe de ouro nenhuma os dava autorização para ficar juntos; a Capital não iria querer ser ameaçada por sua união, ela não gostava da narrativa que ela contaria, nunca havia gostado. Então ele desceu sozinho e, com sua sorte, Cato só pôde rir quando o elevador parou no único andar antes do térreo e abriu as portas para Cashmere e Gloss Ritchson entrarem.

— Cato. Bom te ver – Cashmere disse friamente, toda inalcançável, vestida com nada além do tecido ao qual seu nome aludia. Levemente, pra fazer com que a coisa pudesse ser invenção de sua cabeça, ela esbarrou seu ombro no dele. Gloss meramente reconheceu sua presença com um aceno de cabeça, indo pro fundo do elevador.

— Bom ver vocês – sua frase de saudação era inapropriada, mas qualquer outra seria. De qualquer forma, os irmãos do 1 não pareciam estar muito chegados em conversar muito. Eles ficaram em silêncio pelo resto dos longos cinco segundos que o elevador precisou para chegar ao estábulo. O que tinha pra falar? Era tudo uma merda. Eles só iam precisar lidar com isso.

(Contudo, tinha alguma coisa esquisita no jeito com que Cashmere olhava para ele de canto de olho. Cato decidiu ignorar; uma merda de cada vez).

Eles acenaram com a cabeça de novo e rumaram para suas carruagens.

A Capital era a mesma coisa patética e impressionável de sempre. Um espaço pequeno no teto do estábulo tinha uma infinidade de criaturas coloridas se amontoando para conseguir uma olhada nos Vitoriosos. Sem estar sequer minimamente motivado a sentir qualquer coisa, Cato encontrou a carruagem do 2.

— Uau – foi seu comentário à visão das roupas exageradas que Brutus e Enobaria trajavam, alguma coisa de pouco tecido cheia de fendas e véus. Enobaria estava perfeitamente calma, seu mesmo batom vermelho de sempre, sua face brilhando de um jeito que não era particularmente feio. Brutus era todo feito de intimidação e músculos ressaltados. Clove... Cato não ia sequer olhar muito para a versão sofisticada de seu rabo de cavalo, o vestido escuro, seus olhos percorrendo todo o ambiente cansadamente.

Se desse pra ela só parar de existir um pouquinho que fosse.

Lá na Capital era o lugar que sua qualquer coisa devia acontecer. A oportunidade, a qualquer coisa que fosse satisfazer a raiva que sentiu no dia que a desejou pela primeira vez. Mas agora que ele estava ali, vendo Mags Cohen tentar subir naquela carruagem e Chaff vomitar no canto do elevador...

Porra.

Ali não era o reino de nenhum deles.

Clove estava muito próxima dele, agora, quase como se não soubesse que ele não conseguia salvar ela ali, não daqueles monstros atirando flashes a todo momento, não naquele inferno. Eles sustentaram olhares, e era sempre uma merda quando eles ficavam ali naquele inferno ao mesmo tempo. Para Cato, quase pareceu que Clove estava se encolhendo para mais perto dele. Ele rezou para ser só sua mente pregando peças.

— Cadê a Iovita pra levar vocês lá pra cima? – Enobaria cortou a conversa com Brutus para perguntar, graças a Deus. Cato vagamente se lembrou que deveria usar a ajuda de Kirana, mas a ponderação rapidamente se esvaiu quando ele pensou sobre passar mais um minuto que fosse encarando a expressão no rosto de Clove.

— Eu sei como chega lá – ele respondeu de pronto, apontando para uma porta no canto esquerdo e encostando na mão de Clove brevemente para chamar sua atenção. Ele se afastou rapidamente, sobressaltado, quando ela apertou um pouco seus dedos de volta. – Vamos.

— Eu encontrei o Indigo – Clove disparou enquanto eles rumavam para a seção reservada da arquibancada, os gritos da multidão que agora os cercavam quase insuportáveis. Cato fingiu não ouvir, como mandava o protocolo. Ela continuou: – Ele mencionou a Lyme e alguma coisa sobre a arena. Ela deve ficar por aqui alguns dias. Você fala com ela?

Ele sacudiu a cabeça positivamente uma única vez e se afastou para que ela pudesse entrar na fileira primeiro, prendendo a respiração para evitar qualquer gatilho. Quando eles se sentassem, Cato poderia murmurar qualquer coisa só para manter ela falando e esvanecer o que quer que estivesse em sua cabeça. Porque coisa boa não poderia ser, nunca era, e Cato teve certeza de que ela iria passar muito tempo pensando debaixo da água mais tarde naquele dia.

Então Cato teve tempo de ser servido por uma taça de champanhe e reconhecer a presença dos outros Vitoriosos antes de ver o que realmente daria tom àquela noite.

Naevio apareceu por detrás de Clove e a abraçou.

Ao vivo e a cores, ele assistiu um olhar de terror brilhar nos olhos de Clove ao reconhecer a dolorosamente familiar figura de seu namorado. Cato se sentou para que ninguém além dele pudesse ver a pele de suas mãos cedendo às suas unhas frente a visão do homem que deixava aquelas marcas estrangeiras nela a dar um beijo estalado, a abraçar do jeito que era proibido.

Cato se sentou, porque ele não poderia salvá-la ali.

Clove começou a massagear os pulsos, porque Naevio conseguia fazer uns estragos.

— Cato. Finalmente nos conhecemos – o homem disse, sua voz calculadamente ameaçadora e casual ao mesmo tempo, estendendo a mão. Cato correu o olhar por seus inumanos olhos de urso, por sua aparência quase normal não fosse o terno inusitadamente vermelho. Ele era exatamente como era na televisão, os mesmos pares de anos mais velho que ele, as mesmas mãos prendendo Clove forte demais. E ela parecia exatamente como parecia na televisão, o troféu de olhos vazios ao seu lado.

“Ainda criança, Naevio conquistou a atenção de seus professores ao evidenciar seu enorme talento musical. Aos dezenove, Naevio deixou o sobrenome da família para adotar seu atual nome artístico, em busca de sua própria marca”, Cato recitou em sua mente, recordando cada palavra do programa da Capital. Ele viu a fotos dos pais de Naevio, gerações e gerações de homens que tinham passado dinheiro para a mão de Snow para comprar as crianças dos distritos, todos aqueles selvagens que precisavam ser domados, quebrados para se encaixar em suas prateleiras.

Cato, cuja presença por si só sobrecarregava o ambiente, reconheceu alguma coisa estranha demais no outro homem. Se ele houvesse nascido no 2, ia de certo ser do tipo que tentava cegar um oponente na primeira luta na Academia para manter as órbitas de lembrança, o tipo de criança rica que era moldada não para a eficácia, mas para o show. Com a escolha de ser um cantor e tudo, apesar de todo o dinheiro da família, parecia apropriado. Perto de Clove daquele jeito, ele cabia perfeitamente no papel; ela era a competidora de ossos delicados que pessoas do tipo dele adoravam quebrar.

— Finalmente. – Cato enfim sacudiu sua mão. Como ele previra, o aperto de Naevio não era nem um pouco firme.

— Prazer – seus olhos estranhos permanecerem trancados com os de Cato por tempo demais. Clove correu uma mão pelo pescoço. Cato sorriu. Não para Naevio, mas para as forças do universo que permitiam que situações como aquelas acontecessem para puni-lo por tudo. Ele merecia, afinal.

— O que você está fazendo aqui? – a voz de Clove cortou o momento, forçando um tom entusiasmado que só podia enganar alguém da Capital. Contudo, ao vê-lo descendo o olhar para ela, Cato pensou que os olhos dele tinham se suavizado muito pouco para alguém que tinha caído no jogo dela.

Um arrepio subiu por sua espinha.

As pessoas nunca olhavam daquele jeito para Clove, não se ela já tivesse as dobrado.

— Eu não podia esperar pra conhecer seu famoso mentor, Clove – e o nome dela ecoou. Clove. Clove. Por que não princesa, por que não querida? Cato coçou o nariz e suspirou um discreto riso sem humor; Naevio era diferente dos outros com quem Clove tinha se metido. Eles estavam bem fodidos daquela vez. – E eu fiquei com saudade, você me conhece. Eu puxei uns pauzinhos.

— Ah. Que bom. Que você veio – com isso, ela se esticou para beijá-lo de verdade, suas mãos quase não tocando a pele dele. Cato olhou para o desfile que se formava e se serviu de outra taça, para deixar o álcool e o ódio destruírem suas entranhas de vez.

Lá atrás, na Academia, quando Brutus decidiu separar eles porque “não estava funcionando mais”, Cato sentiu alguma coisa parecida com aquilo que sentia agora, vendo Clove enterrar o rosto no pescoço de outra pessoa. Ele se lembrava de querer tudo, querer qualquer coisa que viesse dela. Sua voz falando seu nome, sua risada, seu sangue, seu toque. Seu rosto se enterrando em seu pescoço.

Porque as pessoas gostam muito de querer tudo aquilo que não podem ter, um fogo estranho implodiu nos olhos de Cato.

Aquela história precisava de um fim; não havia outra certeza na mente de Cato.

Eles olharam para a avenida abaixo; Cato engoliu seu quarto drinque e construiu planos elaborados.

Isso vai acabar matando ele, era o que Clove pensava, se lembrando do dia que Naevio observou um vídeo de sua Turnê da Vitória e rosnou com toda a propriedade umas palavras que nunca deixavam sua mente.

Clove, amor, ele está apaixonado por você.

Mas ele não podia estar, não de verdade. Era o Cato, aquele da mãe legal e das bilhões de meninas em casa, o deus que a Capital tinha perdido. No fim das contas, ele era esperto, certo? A vida dele valia mais, ele devia saber.

Naevio mantinha seus olhos estranhos na figura inflexível de Cato.

— Lyme chegou. Quer conhecer ela? – Clove se obrigou a oferecer, tentando distrair a atenção maliciosa de Naevio.

— Já vai começar o desfile, bebê.

Bebê.

Cato levantou o olhar e encontrou o dela. Ela queria poder esquecer o jeito que os olhos dele ficavam às vezes.

Soava diferente na voz dele. Errado. Para completar a cena, Naevio entrelaçou seus dedos aos dela com aquele mesmo tipo de força desnecessária. Derrotada, Clove nem considerou tentar se soltar. Era quase como se Naevio visse tudo, soubesse de tudo. Como se ele soubesse exatamente o que fazer para deturpar tudo que havia de certo.

O maxilar de Cato parecia passível de se quebrar a qualquer segundo.

No canto da sua cabeça, como o elefante parado na sua sala, ela pensou de novo sobre o urso e Cato indo embora sem sua pulseira, o colar brilhando nos restos de seu cadáver. Ela não conseguia montar aquele quebra cabeça, nunca parava de assistir as cenas se repetirem em um loop eterno.

A próxima coisa em sua mente foi a vez que Cato segurou sua mão e entrelaçou seus dedos com os dela por dez segundos na porta da Academia, depois que Attico perdeu um pé e Dom falou com ela em público.

Ele nunca segurava sua mão com mais força do que o necessário. Ele conseguia ser gentil daquele jeito estranho.

Mesmo quando o desfile começou e os trajes bem bolados dos irmãos do 1 enlouqueceram a multidão, memórias dos últimos dias no Distrito 2 ainda rodavam na mente de Clove. Precisou dos seus tributos, precisou de Finnick e Johanna, precisou das roupas com fogo de Katniss do 12 para que seu senso de realidade fosse recobrado.

Naevio, um perfeito cidadão da Capital, estava extasiado com o que o desfile tinha mostrado, uma brechinha do poder dos tributos daquele ano, há muito esquecido de medir Cato naqueles seus joguinhos doentios de sempre. Eventualmente, ele se levantou e encontrou Lyme. Quando Naevio deu por sua falta, ele já estava rindo de alguma coisa de certo pouco engraçada dita por Lyme.

Clove soube, como sempre sabia, que aquela não seria a última vez que eles se encontrariam.

Então ela fechou seus olhos por um segundo e torceu para que aquilo tudo tivesse fim.

x

Clove rumou para o quarto que Cato havia tomado posse assim que chegou ao andar do 2. Brutus e Enobaria pararam na sala e começaram a beliscar a comida ali mesmo, rindo de todos os acontecimentos absurdos da noite, o fogo dos 12 e Woof existindo e Johanna tirando a roupa no elevador. Ela puxou a porta sem bater e encontrou tudo que sabia que encontraria. Como em um déjàvu, ela passou os olhos pelo vidro quebrado e pelos lençóis arrancados da cama caídos no chão.

Cato estava sentado na beira da cama como gostava de ficar, como se contemplasse o fim do mundo e aquilo dali também se encaixava bem. Ele levantou os olhos pra ela, olhos cheios de todas aquelas coisas que ela queria não ver, mas permaneceu em silêncio. De todas as maneiras possíveis, eles nem podiam falar nada. Ele sacudiu a cabeça.

Ela caminhou em sua direção, no mesmo passo desesperado e relutante de sempre.

Clove pensou que ainda devia ter o cheiro de Naevio impregnado em si quando decidiu correr as mãos pelo braço dele, que apoiavam sua cabeça. Ela engoliu aquela coisa estranha em sua garganta e continuou traçando padrões que pareciam muito gentis sendo traçados por suas mãos, respirando pesadamente.

— Você me arranja outro apelido ridículo? – ela quase sussurrou, olhando para a parede como se nada estivesse acontecendo.

Clove estava com um pouquinho de medo da resposta dele, porque aquela vez talvez fosse ser a vez que ele iria decidir que tinha cansado daquilo tudo, que era demais como os dois sabiam que era, mas que preferiam não verbalizar.

Cato, como sempre, se virou para ela com os olhos suaves que ela odiara um dia e fez que sim com a cabeça, sempre disposto, sempre legal com ela. Clove, como nunca havia feito, passou os braços ao redor dele no que, com bondade, podia ser chamado de um abraço.