Glory and Gore

Hurt me but it felt like true love.


Passava da meia noite quando Cato recebeu uma ligação.

Por conta daquela história de talento que os Vitoriosos tinham que ter, ele havia construído uma espécie de sala no térreo da sua casa, porque seu talento era ser um especialista em biologia. Ele até ensinava algumas crianças, a alma caridosa que era, tinha até um quadro negro. O talento escolhido era o melhor que ele podia adequar ao seu conhecimento adquirido na Academia.

De qualquer forma, a sala era cheia de manequins e alguns deles permitiam que você desencaixasse seus órgãos internos. Alguns deles eram meras espécies de espantalhos. Depois que tudo com a Capital havia se apaziguado e se voltado para Clove, ele havia arranjado alguns alvos e uns bonecos menos sofisticados para que pudesse treinar, ainda que treinar não fosse bem a palavra, porque ele não tinha mais para o que treinar. Graças a Deus.

Já que não era muito chegado a dormir, Cato estava rasgando um boneco de espuma – vermelha – com uma espada quando o aparelho que quase não era usado disparou. A filosofia dele era que se preocupar era sofrer em dobro. Mas foi com um riso suspirado que ele se pôs a alcançar o telefone.

Porque, claro, ia ser alguma coisa ruim.

— No que posso ajudar?

— Então, Cato. Você foi o mentor da Kentwell, não foi?

Cato não reconheceu a voz de primeira. Mas havia alguma coisa na cadência, no sotaque. Uma voz muito suave, muito doce, que, no entanto, pertencia a alguém que parecia mastigar chiclete, alguém impossivelmente cheia de tudo e todos.

Como ele poderia esquecer?

— Cashmere?

— Eu tive a infelicidade de encontrar sua pupila passada em um banheiro.

— O quê?

— Clove. Kentwell. A última que venceu daí, a pequenininha. Eu acho que ela exagerou na cachaça. Ela estava num bar e minha companhia me trouxe aqui, então eu encontrei essa ridícula aqui no banheiro a dois passos de entrar em coma alcoólico.

Alguma coisa pressionou a ponta do estômago de Cato. Ele bloqueou.

— Cadê o namorado dela?

— Eu não sei! Não está aqui, obviamente. Acredita em mim quando eu digo que não estaria te ligando se tivesse outra opção. Eu pensei primeiro que seria muita ruindade deixar uma menina nessas condições, mas você está fazendo muitas perguntas e eu tenho mais o que fazer.

— Cashmere. Você vai ter que pensar em alguma coisa. Eu não consigo chegar aí hoje.

— Ela está consciente. E chorando, para deixar registrado. Mas que seja, você que sabe. Você é um mentor de merda se deixa seus Vitoriosos chegarem nesse ponto.

— Não, espera! Fica aí com ela.

— Essa vadia matou o meu tributo, meu coração não é tão bom assim, Cato. Dá um jeito de vim pra cá e cuidar do seu estorvo. Eu já fiz minha parte.

— Porra, Cashmere!

— É, boa ideia. Tchau, Clove.

— Eles não podem ver ela comigo.

Os dois ficaram em silêncio por alguns longos segundos.

Aquilo tinha sido Cato desatando coisas em uma espécie de desespero. Coisas que ele não exatamente deveria estar desatando no telefone para Cashmere Ritchson. Ele ouviu o suspiro forçado do outro lado da linha.

Mas já tinha sido feito.

— Por favor – ele se forçou a dizer, entredentes.

Ele não podia confiar em Cashmere em um milhão de anos. Ninguém podia confiar em ninguém. Mas ela não era ruim desse tanto. Eles todos eram Vitoriosos, alguma coisa levemente decente era esperada. Clove era uma carreirista, também, afinal. E havia uma lealdade tácita entre os distritos mais ricos. Não à Capital, não aos outros distritos que viviam na miséria, mas àqueles que sabiam bem o que era aceitar ser construído com o único propósito de ser destruído.

Cashmere também devia saber melhor que ninguém sobre os interesses da Capital e o peso que imagens de Vitoriosos tinham, especialmente naqueles tempos. Devia funcionar, porque afinal ela devia ter se arriscado um pouco criando algum motivo para ser autorizada a fazer uma ligação para outro distrito.

E, além disso, os carreiristas do 1 não tinham o mesmo preparo emocional que os do 2.

— Ela deve estar passando por uma fase ruim. Que seja. Acho que dá pra arranjar alguém pra cuidar dela. Porque eu realmente preciso voltar.

— Eu vou dar um jeito de estar aí amanhã cedo pra dar uma olhada nela.

— É, é melhor. Essa menina aqui está meio derrubada.

— Aham. Obrigado, eu acho.

— É, você me deve agora. Eu vou cobrar.

Subitamente, então, como havia começado a conversa, Cashmere desligou.

Cato inspirou profundamente, encarando a parede por alguns segundos.

Não pensa, não pensa, não pensa.

Ele não ia explanar a rica área de sua mente que trabalhava criando hipóteses elaboradas para justificar aquela crise de Clove (presumindo uma crise; e se ela fosse ficar daquele jeito sempre?). Ele não ia pensar.

Ele agiu; procurou um número e pegou o telefone de novo. A única coisa que ele sentiu foi o suor voltar a brotar de sua testa e um novo aperto no seu estômago quando contatou uma de suas companhias e embromou alguma coisa sobre estar com saudade. Em cinco minutos de risos escusos e duplos significados, o encontro estava marcado.

Seu próximo passo foi ligar para a escolta do distrito, a mulher de cabelo roxo que se chamava Iovita Raven. Ele a contou sobre a pessoa rica que tinha requisitado sua presença na Capital por pelo menos três dias. Ela estava sobrecarregada e tensa e incrivelmente ocupada com os eventos de Clove, que coincidentemente também estava lá, mas ia providenciar as formalidades de sua estadia, como sempre.

Ele estava autorizado a voltar pra Capital no dia seguinte.

[...]

Todo o processo de entrar disfarçadamente em um apartamento na área mais nobre da Capital parecia inútil. Cato não se misturava bem com a multidão da Capital, mas ele fez o possível. Andou de cabeça baixa e tudo. Mas ele não tinha pele colorida nem um cabelo muito extravagante tampouco uma aparência que lembrasse a de um palhaço, então... Também, Snow não sabia de tudo? Pra quê tentar? Que tornassem o toque de recolher ainda mais rígido, que fechassem logo outra pedreira. Quem se importava?

Ele usou sua chave e passou um tempo parado no hall de entrada do apartamento de Clove.

É melhor você ficar de boa. Infelizmente, não é culpa dela.

A Turnê da Vitória tinha sido um fracasso. A coisa ficou tão inflamada que Snow mandou Romulus Thread para o Distrito 12, o espírito do Distrito 2 traduzido em uma pessoa. Com ele, Thread levou pelo menos metade dos Pacificadores mais bem preparados do 2 para acabar com o que quer que houvesse na casa dos amantes do 12. Eles todos eram muito bons em destruir. Um dos amigos pessoais de Cato, um garoto que tinha passado por todos os níveis com ele na Academia, tinha ido junto.

Como uma perfeita infecção, o problema estava em Panem toda. Como uma perfeita tempestade, também, podia ser sentido; os sussurros conspiratórios eram um pouco mais altos, um pouco mais confiantes. A ira tinha crescido exponencialmente em cada distrito. Cato havia encontrado outros dois novos desenhos representando tordos caminhando pelas aldeias pobres do 2. Snow só convocava uns poucos Vitoriosos para performar, como ele colocava, no meio tempo. Cato estava passando por uma calmaria, a presença ambígua que era. Clove precisou triplicar suas aparições em público e agora mal era autorizada a voltar pra casa. Ela tinha um daqueles temidos passes de estadia que não tinha nenhuma data de expiração.

Ela estava cortando algum vegetal na cozinha, fazendo uma comida de coelho daquelas que ela gostava. Uma espécie de janela permitia que ele a visse lá, ainda que estivesse avançando pela sala. O riso debochado que ela soltou quando o viu não era confundível com nenhum outro.

— Eu falei pra Cashmere mandar você ficar.

— O que aconteceu? – apesar do que havia cruzado sua mente, seu tom era rígido. Era uma pergunta mais puxada para um “por que porra você não me ouviu e se colocou nessa situação?”.

Cato continuou chegando perto. Quando ele alcançou o batente da porta e a observou de verdade, lá estava: as pequenas linhas molhadas cortando seu rosto. Lágrimas. Ele então captou a imagem toda, seus olhos vermelhos, as meias luas abaixo deles, os traços de algum penteado chique presos em um rabo de cavalo mal feito.

Ele ficou lá parado, respirando, pensando no que dizer, no que fazer. Sua tese de que Clove não estava muito interessada em contato físico era sustentada pela maneira que ela o olhava, como se sequer o reconhecesse, como se nada além de ódio indiferente ficasse entre eles.

— Eu estou falando sério. Vai pra casa – a confirmação pra sua hipótese veio. Ele reparou que sua mão ainda segurava a faca.

— Eu tenho um compromisso aqui hoje – o garoto não mudou o tom de voz, não mudou sua postura recostada contra a moldura ou sequer descruzou os braços. Era assim que devia ser. Ela precisava ver que ele não ia dar pra trás por causa dos gritos dela. – Disseram que era uma emergência, e você sabe, o velho não gosta quando a gente dispensa cliente antigo, então eu vou lá ten...

— Foda-se. Vai embora.

Acostumado como estava, ele não ficou nem um pouco surpreso quando a voz de Clove começou a se altear, começou a ficar aguda.

— Sai daqui!

Mas depois de uns segundos ele acabou ficando um pouco surpreso; ela não estava se mexendo. E já era hora dela o fazer, ou para jogar a faca em sua mão e fazê-la cortar sua orelha, ou para arranhar seu rosto ou para simplesmente derrubá-lo no chão. Ele normalmente saía todo roxo dessas crises de Clove, que infelizmente não tiveram início só depois dos seus Jogos.

Mas ela continuava parada no mesmo lugar, imóvel, encarando os vegetais na tábua. Cato reparou nas marcas azuladas descendo pela extensão de seus braços.

Ele não se incomodava muito com os gritos dela; nunca havia o feito. Então Cato a observou em silêncio, imperturbável como se sequer a ouvisse o mandando embora. Como sempre, ela estava com raiva. Claro que envolvia ele sendo chamado para tomar conta dela e a vendo naquele estado e tudo, mas tinha mais coisa. Alguma outra coisa nos olhos dela, alguma coisa no jeito que suas mãos cobriram seu rosto quando ele trocou o peso de pé. O garoto viu mais lágrimas cortarem seu rosto. Aquele era um tipo diferente de ataque, um que não tinha a ver com suas habituais descargas de ódio.

Dessa vez, ele também estava sentindo outro tipo de dor.

Era o tipo de ataque que acontecia nas suas primeiras semanas se vendendo como Vitoriosa, quando quase todos os dias ele se encontrava segurando seu cabelo para livrá-lo do vômito, segurando sua língua para não gritar com ela, jogando fora qualquer coisa afiada.

(Cato se lembrava de ter rezado uma vez, quando o choro dela era muito desesperado e seu rosto estava muito cheio de dor).

— Você está me ouvindo, porra? Vai. Embora!

Ele tomou a decisão, então. Com passos rápidos, cortou a distância entre eles e se movimentou no intuito de tirar a faca da mão dela. O drama, os gritos, os tapas, nada aconteceu como ele estava prevendo. Com sua mão a meio caminho de tocar o pulso da garota, a faca foi derrubada voluntariamente.

E Clove deu dois passos pra trás.

— Não encosta em mim.

Aí estava. A outra coisa que ele estava procurando, o elemento novo, a surpresa.

Muito literalmente, Cato sentiu o ar ser expulso dos seus pulmões. Um tipo de pavor muito primitivo nublou seus pensamentos. Sua percepção sobre o que estava acontecendo na realidade foi cortada como se nada estivesse acontecendo de verdade.

Ele deliberadamente permaneceu parado, permitindo que a frase dela se assimilasse e terminasse de estapear sua face. Uma leve torção atingiu seus lábios, suas sobrancelhas subiram.

Ai.

E aí Cato se perguntava como havia se atrevido a querer uma prova de que Clove se sentia mal com tudo aquilo, de que ela não tinha se acostumado rápido demais.

Era a primeira vez que ela o fazia um pedido desses. Ele não entendia o porquê, não conseguia pensar numa razão, sua própria mente havia se desorganizado com a fala dela. O que ele ia fazer agora? Ela continuava parada lá, olhos agigantados como se alguma vez ele tivesse feito alguma coisa para provocar aquele medo estrangeiro nela. Ele era uma ameaça antes, claro, eles eram concorrentes apesar de tudo. Mas desde que ele havia saído da arena, não havia mais propósito nisso. Por causa disso, não havia mais esse tipo de comportamento fisicamente hostil de verdade entre eles na maior parte do tempo. Clove nunca tinha parecido ter medo dele.

Até agora.

— Clove.

— Não, Cato! Cala a boca. Sai daqui, vai pra casa. Por que porra você não está me escutando? Me escuta! Vai embora!

Seus olhos estavam desfocados. A voz suave dela não combinava com aquele desespero. Ela só devia ser usada para controlar, persuadir, sussurrar. Daquele jeito, Cato não sabia o que fazer.

— Você precisa parar com essa porra, ok?

Ele quase fez o movimento de segurar seu braço quando ela passou por ele como um vulto em direção à porta. Ele se conteve porque, aparentemente, o motivo da pressa era medo de que ele fosse encostar nela.

Cato engoliu o que quer que ele estivesse sentindo com dificuldade.

— Eu não encosto em você se você não quiser – ele levantou as mãos, enquanto a seguia cautelosamente até um dos quartos. Pela bolsa repousando no chão, era nele que ela estava ficando dessa vez.

— Eu não quero – era quase um sussurro. Sentada na cama, ela encarou a parede na sua frente. Uns minutos longos se passaram. Ele quase relaxou, pensando que tinha acabado. Mas ela voltou a falar e sua voz era tudo menos um indicador de fim para aquela crise: – Aquela vez na Academia, quando eu fingi que errei a faca e abri seu ombro e você ficou sem participar de uma luta com o Bac? Você devia ter segurado meu pescoço por mais tempo. Eu iria sufocar e a porra daquele colar iria quebrar e nada dessa merda iria estar acontecendo.

Cato permaneceu na porta, quase sem se mexer. Ele se lembrou do dia que ela falava sobre; eras atrás, ele havia comentado com ela sobre uma namorada e ela havia fingido errar um arremesso que parou no seu ombro. No outro dia, porque ela estava sorrindo demais e era estranho, ele a questionou e ela admitiu com muita tranquilidade. Ele havia então fechado as mãos em torno do pescoço dela por algo em torno de três segundos.

No presente, Clove direcionou seus olhos pra ele, esperando, desafiando.

— Eu não vou encostar em você.

— Cato... – ela começou a falar, num tom incrivelmente raivoso, como se ele tivesse diretamente a atacando, a ultrajando. Então, um barulho insuportavelmente agudo a interrompeu e encheu o apartamento.

Cato simplesmente se afastou uns dois passos.

Clove gritando daquele jeito não era uma novidade pra ele. Mas como aquela era aparentemente uma ocasião especial, eles eram diferentes.

Infelizmente, ele a conhecia muito bem. As informações vinham quase instintivamente, ele mal pensava sobre elas, mal as percebia passando por sua mente. Nem queria também. Ele as tirava de suas sobrancelhas franzidas, na sua respiração entrecortada; ele procurou muito rapidamente gatilhos extraordinários que poderiam tê-la conduzido àquilo. Era alguma coisa grande, porque ela não costumava se interromper como se a coisa houvesse a tomado de surpresa. Cato deixou que ela terminasse. Dez minutos se passaram. Nada.

— Clove.

Os gritos aumentaram. Mais altos, mais agudos. Não dava mais para ignorar agora. Sua cabeça doía insuportavelmente.

— Por favor, Clove. Escuta, por favor. Para. Olha pra mim.

Para, para, para, para, por favor.

— Clove.

Cato queria tapar os ouvidos, fazer alguma coisa, qualquer coisa, que a fizesse parar.

— Clove!

A garganta dela era potente.

Havia lágrimas escorrendo pelo rosto dela de novo. Quando a menina se levantou para correr para outro cômodo, Cato não pensou; ele a segurou.

— Para com essa porra! Clove! Para com essa porra! Para! Para!

Clove ficou lá, amolecendo o corpo como uma boneca de pano ridícula, gritando e gritando, bagunçando sua cabeça, mexendo com tudo que devia ser deixado quieto.

Talvez ele estivesse a sacudindo muito brutalmente, talvez ele estivesse machucando ela e talvez marcas novas fossem aparecer em seus braços. Clove se mexeu ainda mais, tentando se livrar dele, olhando para o outro lado; nunca para os seus olhos.

Cato só sentiu seus dentes doerem, seus punhos ficarem dormentes. Eles tinham ficado cerrados por muito tempo.

— Você está encostando em mim! Me larga! – por dois segundos, ela parou de gritar para dizer isso. Mas antes de ouvir sua resposta, voltou a berrar.

Não machuca ela, não machuca ela, não machuca ela. Meu Deus, me ajuda a não machucar ela.

Cato reuniu alguma coragem – ele estava um pouco cansado, um pouco perdido, um pouco com raiva – e traçou seus próximos passos. Ele não se esquivou quando Clove cravou seus dentes e unhas contra seu ombro enquanto ele a levava nas costas até o banheiro. Ele não mudou de ideia quando ela engasgou um pouco com a água que caía do chuveiro e olhou para ele de verdade e ele sentiu outra coisa invisível socando sua garganta e cortando sua respiração, outro peso no seu estômago. Ele mecanicamente desfez o rabo de cavalo dela, mas não se atreveu a tirar suas roupas. Ele assistiu quando Clove não precisou mais ser segurada dentro do box do chuveiro e encostou a cabeça na parede, em silêncio.

Os gritos pararam de vez. Ele respirou direito.

Ele sentiu sua expressão suavizar enquanto se sentava no canto, suas próprias roupas úmidas. Suas costas, por causa da tensão, doíam. Suas mãos igualmente, porque suas unhas tinham perfurado a carne delas. Agora ele também conseguia sentir todas as dores locais e persistentes que ela havia causado. Ele mal poderia encostar nos próprios ombros.

Mesmo assim, no canto da sua mente, uma voz que ele não gostava de escutar falou “porra, ela é muito bonita”.

Ele ficou lá, observando enquanto Clove respirava embaixo da água gelada. A expressão facial dela mudou. Seus olhos se fecharam e, quando que se abriram, estavam focados de novo. Ela continuou em silêncio. Os olhos dele percorreram as marcas que começavam a se formar onde seus dedos haviam cercado os braços finos dela.

Vinte minutos de silêncio intimidador, tenso. Cato estava considerando sair para dar a ela um pouco de privacidade quando se ouviu falar:

— Me fala o que aconteceu – e nada naquela frase podia ser confundida com um pedido.

Ele fechou a boca e aí pensou que podia estar cedo demais. Mas Clove prontamente voltou seu olhar pra ele e desligou o chuveiro. Ela se sentou no chão, de frente pra ele, toda encharcada.

— Eu não sei.

Essa era outra surpresa.

— Você sempre sabe.

— É, mas eu não sei dessa vez – obviamente, seu tom era defensivo. Mais que isso; quase o atacava. Cato ergueu as sobrancelhas e suprimiu um suspiro. Clove, olhos colados nele o tempo todo, voltou a falar. – Me desculpa.

Dessa vez, foi muito proposital. O que não extraía o elemento surpresa da coisa. Apesar de ela não parecer querer voltar atrás nem retirar as palavras, ainda havia um peso muito estrangeiro nelas. Cato observou Clove o olhando com expectativa, talvez esperando que ele risse ou mandasse ela parar de gracinha.

— Não tem problema.

Era outra surpresa.

— Eu meio que marquei seu braço. Eu não quis. Me desculpa.

— Não foi você que fez isso – ela disse rapidamente, como se ainda estivesse se desculpando, querendo compensar algo. Cato não conseguiu seguir a linha de pensamento dela; se aquelas marcas tinham uma origem misteriosa, era um sinal ainda pior.

— O que aconteceu, então? – Clove continuou em silêncio. Cato coçou o nariz. Ele queria poder conseguir largar o assunto. Que diabos ele ia poder fazer? Mesmo assim: – Você só tem um cliente, Clove, que porra é essa?

— Foi o Naevio. Foi ontem – (e é muito recente).

Eu sei, mas por favor me fala, Cato queria dizer.

— Não fala, então – foi o que ele disse de verdade, dando de ombros como se não se importasse. Clove sorriu e sacudiu a cabeça, desdenhosamente descrente de quaisquer reações casuais que vinham de Cato.

— Me dá uma toalha.

Foi enquanto ela se secava, ainda sentada, que começou a falar de novo.

— Você vai ficar com ciúmes? – Clove parecia muito honesta na sua pergunta, muito longe das suas pretensões de provocação de sempre. Honestamente, também, Cato sacudiu a cabeça e deu de ombros. Não tinha como saber. Provavelmente sim. Mas quem se importava? – Você vai ficar estranho. É estranho.

— Fala logo. Você está dando pra meio mundo desde que eu te conheço.

Essa sentença poderia ter sido uma daquelas que evoca um silêncio rancoroso, mas Clove suspirou uma risada. Ele tentou uma, também. Eles sabiam bem que Clove não estava dando para meio mundo desde que Cato conhecia ela.

Por um tempo, afinal, ela só fazia isso com uma pessoa. Uma que talvez não tivesse superado exatamente bem a maneira brusca com a qual aquela fase tinha passado, mas que tinha precisado se acostumar.

— Você sabe que eu não gosto que marquem meu corpo. Outras pessoas. Eu não me importo quando é você, mas quando é gente daqui, eu odeio. E, você sabe, por causa da arena, eles têm expectativas quanto a minha performance — ela estava tão constrangida que Cato quase a pediu para parar de falar. Clove nunca tinha falado nada sério sobre suas coisas na Capital. Ela fazia piadas de gosto duvidoso, ria mais do que devia e tinhas surtos às vezes, mas nunca havia dito nada claro sobre como as coisas eram pra ela. Até porque ninguém dizia, ninguém se atrevia a elaborar nada sobre o assunto. Agora, ele via o constrangimento a fazer ter que procurar palavras. Justo ela, com todo seu talento verbal.

Ele se limitou a assentir, porque ela estava esperando alguma coisa dele.

— Na maioria das vezes, eles me pedem para “ser eu mesma” e o que eles querem é que eu bata neles, o que eu faço sem problemas. Eles sempre me pedem pra fazer as coisas. Eu sempre faço alguma coisa.

— Claro – seu comentário pareceu idiota uma vez que havia sido dito em voz alta. Clove sorriu um pouco da situação. Ele não estava achando a menor graça.

— Ontem eu tive outro encontro com ele. A gente comeu, ele segurou meus pulsos que nem o filho da puta que ele é, ele perguntou sobre você e tinha câmeras capturando tudo, como sempre. Ele me chamou para ir pro seu apartamento e eu fui, porque você sabe. Ele não quer ficar só sorrindo pras câmeras. Ele está pagando, no final.

Cato sentiu seus olhos se arregalarem um pouquinho quando ouviu a voz de Clove mudar de tom como se estivesse se comprimindo. Ele queria mais que tudo parar de ouvir. Ele limpou a garganta e coçou o nariz, balançando a cabeça. Ele se reclinou e prestou mais atenção nela.

— Essa porra não devia importar mais, mas. Durante a coisa toda, ele não deixou que eu me movesse. Ele me pediu para ficar quieta e não falar uma palavra. E eu falei “qual vai ser a graça?” e ele “vai ter muita graça, confia em mim”.

Os olhos dela pareciam estar presos em um ponto abaixo dele. Eles estavam focados e havia um ódio imensurável dentro deles, mas havia muito mais humilhação.

— Porra, Clove – foi o que ele foi capaz de dizer. Mas não tinha acabado ainda. Clove mordeu o interior de suas bochechas como quem se prepara para dizer algo.

— Eu pedi pra ele parar – foi um sussurro emitido rapidamente, como uma respiração.

Foi a confissão.

Como se seus lábios estivessem selados, Cato não conseguiu falar nada. Ele continuou a olhar pra ela como se o mundo fosse acabar se ele desviasse o olhar. Ele nem estava captando seus próprios pensamentos. Ele conseguia vagamente saber que os olhos de Clove estavam marejados e que ela parecia estar sem fôlego e que seu rosto estava pálido e que ele queria vomitar.

Os dois sustentavam olhares arregalados, selvagens. A perturbação teceu suas linhas cuidadosamente e Clove foi a primeira a se desvencilhar, depois de longos minutos.

— Eu fiquei chorando bem baixinho, pedindo pra ele parar, que nem uma fracassada ridícula. Eu nunca fiz isso, eu nunca pedi nada para eles. E, você sabe, vai acontecer de novo. Essa é a porra do estilo dele, eles todos têm um, todo mundo sabe disso, certo? E ele nem... Eu estou presa com ele, então eu não posso chorar enquanto ele me fode toda vez, eu tinha que estar acostumada com qualquer tipo de merda. Certo?

Não.

Ela ergueu as sobrancelhas como quem espera uma reação, uma aprovação, alguma coisa. Cato sempre conseguia dar essa alguma coisa pra ela. Ele tinha sido seu mentor, ele sempre tinha feito às vezes de uma figura quase protetora quando não era o perigo do qual ela precisava de proteção; ele sempre sabia o que dizer.

Dessa vez, a expressão dele estava mais vazia que o normal.

Talvez aquilo fosse demais. De qualquer forma, Clove escolheu continuar falando.

— Quando acabou e ele me deu um beijo na testa, eu disse que ia voltar pra cá. Eu fui para um bar porque eu sou o Chaff agora e aí a Cashmere te contou o que aconteceu lá.

Clove continuava falando, mas a cabeça de Cato estava longe. Estava em algum lugar distante, mergulhada em visões com sangue e homens da Capital mortos, em olhos de urso assustados e ossos da mão quebrados.

Ele quase podia ouvir os sons; punho contra carne, contra dentes, contra ossos. Alguns gritos por piedade. Sua mente ficaria distante de novo, tudo aconteceria em câmera lenta, todas as cores vibrariam, queimariam seus olhos.

(Clove estava batendo seus dedos contra o box do chuveiro).

Ela já havia parado de falar e se dedicava a olhá-lo atentamente, talvez tomando ciência sobre seus olhos escurecendo, se estreitando. Para disfarçar, Cato assentiu mais uma vez e suspirou um sorriso triste, desfranzindo suas sobrancelhas e cruzando os braços.

— Uau, hein.

— Não é?

Ele trancou olhares com ela e torceu pra que ela conseguisse ler o dele e ter certeza de que ele iria acabar com tudo aquilo. Corpos iriam ser encontrados, destruição massiva ia acontecer e tudo ficaria bem de novo. Não havia muita coisa que ele pudesse dizer, mas alguma coisa teria que ser feita.

Clove sorriu. Ela se lembrou de quando eles pertenciam só um ao outro. Para machucar, para foder, para fazer o que eles entediam como todo o resto.

Eras atrás, eles eram guerreiros. Havia honra e orgulho e tudo parecia certo. Como num piscar de olhos, tudo que havia era sujeira e violação e aquele desespero que nunca ia embora.

Era injustiça. Ela não gostava de quando a injustiça era para o lado dela.

Eles não disseram uma palavra por compridos minutos. Clove ainda ostentava um sorriso fraco, observando a expressão perturbada de Cato com olhos muito atentos. Ele sacudiu a cabeça e finalmente levantou os olhos.

— Eu estou morrendo de fome – ele disse, erguendo as sobrancelhas.

A cozinha mágica dela podia entregar qualquer coisa. A mágica acontecia no subsolo, onde dezenas de Avoxes cozinhavam para os aristocratas da Capital. Clove trocou de roupa e eles pediram as comidas que mais pareciam com as do distrito deles.

— Eu estou na pior ressaca de todas – Clove começou o assunto enquanto eles comiam no sofá, a televisão desligada como sempre, com seu mesmo tom levemente imaturo, porque ela podia muito bem ter sido mesmo uma adolescente mimada em outro mundo. – Essa coisa de destruir seu corpo é muito divertida, mas no outro dia...

E ela continuou falando e falando e Cato olhava para ela fixamente, se afundando e se afundando cada vez mais, todo preso em sua risada e em seus gestos. Toda vez que ela saía do seu campo de visão, no entanto, ele traçava surpreendentemente rápido planos assassinos; podia ser em uma visita cordial ao namorado da sua amiga, podia ser em uma daquelas festas extravagantes, podia ser no meio de uma guerra.

Ele beijou Clove muito lentamente na hora de ir embora e sustentou o olhar estranhado dela sorrindo. Ela não exatamente sorriu de volta, mas enquanto ele andava pelas ruas da Capital, há muito Clove havia deixado sua mente (a parte boa da existência dela, pelo menos). Ele queria saber por que porra tudo estava demorando tanto pra acontecer. Alguma coisa precisaria acontecer para que eles saíssem daquele impasse. Ele estava impaciente. Ele queria um sacrifício, um massacre, uma provocação, alguma coisa que começasse a coisa de vez. A parte da conspiração não era a área dele, ela sempre tinha sido feita por Clove.

As mãos dele estavam coçando por alguma ação. Ele queria alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse transformar os delírios de vingança na sua mente em realidade.