Glory and Gore

Bossed up, let's get buried alive.


Cato tinha quinze anos quando arranjou seu primeiro namoro sério.

Era tudo que Clove queria. Depois de uma conversa suspeita com Enobaria, ela havia prontamente o apresentado uma garota chamada Fedra, que era sua suposta melhor amiga, ainda que ninguém na Academia houvesse jamais visto Clove com mais ninguém além de Cato.

Cato engoliu o ultraje de ter Clove empurrando outra menina para ele quando era claro que era ela que ele queria e aproveitou a oportunidade. Depois de três semanas, numa mesa dividida com a garota e Clove, a madrinha oficial do relacionamento, Cato perguntou para Fedra se eles eram oficialmente namorados. Ela disse que sim.

Então o inferno veio à tona. Por baixo do sorriso reluzente de Clove, Cato viu com uma clareza surreal o fogo demoníaco que brilhou em seus olhos.

De repente, Fedra vivia sendo castigadas por transgressões que nunca havia parecido ter interesse em cometer. Clove vivia sentindo muito por ela. Do nada, ela não queria mais ouvir falar sobre Fedra quando eles ficavam sozinhos. Um dia, quando ela simplesmente abriu seu ombro fingindo errar com uma faca, Cato reparou que Clove tinha mudado de ideia sobre sua coisa com Fedra.

E Cato aprendeu uma lição dolorosa; receber a reprovação de Clove era perigoso.

Cato tinha tudo isso na sua cabeça enquanto conversava com Brutus sobre a entrevista e reparava que os olhos dela ainda não haviam se voltado em sua direção desde que eles tinham se encontrado em um jantar com Gauis e Rendwick.

Era uma benção e uma lástima a maneira com a qual ele costumava ser capaz de enganar a si mesmo, de volta pra Academia e para as manipulações sofisticadas de Clove, que nunca o deixavam saber a real natureza de seus sentimentos, mas que o deixavam fantasiar à vontade. Agora, encarando o perfil rígido dela do outro lado da sala, tudo que Cato era capaz de pensar era aquilo era a mesma dinâmica de sempre; ela, toda confiante na ideia de que ele era seu cachorrinho mais fiel, nem sequer o dando chance de falar, porque ela sempre sabia de tudo.

A pior parte era que, bem ali, tendo dormido uma hora e meia na noite anterior, ele não podia dizer exatamente que não era a pessoa que Clove julgava conhecer tão bem. Tinha sido ele que havia se esforçado mais para parar de pensar nela daquele jeito quando eles ficaram adolescentes. Tinha sido ele que havia assumido sozinho quatro punições por coisas que eles tinham feito juntos. Tinha sido ele que tinha a convencido de que só aqueles encontrinhos rápidos nas salas abandonadas não iam funcionar mais.

Toda aquela merda de agora tinha sido causada por ela. E, mesmo assim, lá estava ele, realmente considerando ir atrás dela para tentar amaciá-la ao invés de ficar com raiva de verdade da atitude mesquinha dela, que sequer tinha razão de ser.

(Clove podia simplesmente ter aberto a porra da porta e deixado ele explicar o porquê daquele encontro ter acontecido).

Contudo, Cato ficou parado no seu lugar o dia todo. Ele cerrou os dentes e lutou contra o impulso de ir atrás da aprovação de Clove. No fundo, ele esperou que ela fosse parar de conversar com Enobaria em qualquer uma de suas tentativas ridículas de ser uma boa mentora e fosse até ele perguntar sobre aquela palhaçada de agora.

Acontece que Clove era muito melhor nesse jogo que ele. Ela já estava com seus saltos altos esperando o elevador para descer para as entrevistas quando jogou um olhar na sua direção pela primeira vez no dia.

E foi isso.

Ela o lançou um dos seus olhares de desprezo e se virou para frente, cruzando os braços.

— É assim que as pessoas acabam mortas – ele começou. Sua fala enigmática só serviu para consegui-lo outro olhar de tédio. Como Clove não pediu por nenhuma elaboração, ele teve que dar uma de graça. – Não abrindo a porra da porta, sentadas no caralho de um trono, achando que sabem de tudo só pelo poder da adivinhação.

Nada. O elevador chegou.

— Cashmere me cobrou um favor – ele cuspiu entredentes, antes que ela entrasse. – Eu fui pra aquela porra de restaurante sem saber que você estaria lá, Clove, eu obviamente não ia aparecer se eu...

— Foda-se, Hadley. Eu falei para você sossegar o rabo em um lugar só.

— Ela quer que eu volte a vender os carreiristas – Cato tentou de novo.

Finalmente ele conseguiu a atenção de Clove. Com mais brutalidade do que era necessário, ela bateu a mão na porta do elevador para segurá-lo e se virou pra ele.

— E é assim que as pessoas acabam mortas. Combinando coisas e fazendo outras. Eu mexo com os 1, você continua com os outros, não fode essa porra de novo, Cato, não é difícil assim – ela latiu.

— É, mas a fodida da Cashmere veio atrás de mim com essa história – Cato rosnou, puxando seu braço do elevador e deixando que ele descesse enquanto quase delicadamente a puxava para o lado. – Você sabe o que ela está me cobrando.

Clove se viu de novo no chão do bar da Capital, Cashmere se erguendo sobre ela como uma torre cheia de julgamento. Ela se viu na cama de Naevio, pagando por todas as pequenas vezes que eles descobriam sobre a associação entre eles. Ela ficou em silêncio e deixou Cato falar.

— Eu sei que essa história com o homem da Capital está toda fodida, mas eu vou resolver isso. Só tenta falar com a Lyme. Explica o que está acontecendo. Quebra essa pra mim.

Clove ficou lá, parada em sua clássica postura, braços cruzados, o olhando como se ele fosse a coisa mais odiosa já havia andado na terra.

— Eu falo com a Lyme, mas quem é que vai falar com o velho, seu filho da puta? Você deu pra atrás do acordo de novo – ela sibilou, a raiva vazando de todas suas sílabas bem separadas. Cato não conseguiria dizer com precisão se havia ou não alguma verdade naquele ódio bizarro, porque os olhos dela pareciam um pouquinho escuros demais.

Enquanto eles sustentavam olhares, Cato sentiu seus próprios olhos escurecerem, seus próprios dentes cerrarem, seus próprios lábios se contraírem para segurar um rosnado. Clove sabia pisar em seus calos com sua mera existência, às vezes.

— Você descobre, então, vadia – ele grunhiu, igualmente devagar. – A Cashmere só tem essa carta porque eu vim salvar sua pele aqui nesse buraco.

Alguma coisa na forma que Clove não se moveu um centímetro com a sua fala concebida para ofendê-la alertou Cato para o fato de que ela sabia muito bem de todas as implicações daquela noite com Cashmere, mas que permaneceria irredutível como sempre, porque longe dela mostrar qualquer gratidão.

Com isso, Cato sentiu um tipo de raiva que não era exatamente igual à que ele costumava sentir, mas que entrecortou sua respiração exatamente como a outra. Ele rumou para o elevador, soltando o ar pela boca para não soltar seus demônios. Ela o seguiu.

— E daí que ela me viu dando show na porra de um bar? – Clove voltou, apertando o botão do térreo impacientemente.

— E daí que você explicou direitinho pra ela porque a gente não pode andar junto. E aí ela me ligou, otária. Pra ajudar você.— Ele alegou firmemente, esperando que ela entendesse o conceito. Ela deu de ombros, a perfeita pária do 2 que sempre tinha sido. – Eu devo ela agora, Clove. Algumas pessoas são decentes e pagam suas dívidas. E é a porra da Cashmere, não tem como negar coisa pra ela com ela sabendo dessa...

— Você é decente porque vai brincar de queridinho da Capital e foder com nós dois porque recebeu uma ligação... – ela começou, propositalmente soando confusa.

— Uma ligação dizendo que você estava chorando na porra do chão de um banheiro. O que me fez sair da minha casa pra vir atrás de você aqui nesse inferno, o que, creio eu, me faz ser decente. Pelo menos mais que você.

Problema seu. Eu não te pedi nada. Decência não inclui matar vinte e três crianças.

Todas essas respostas pairaram na mente de Clove. Ela decidiu não usar nenhuma delas. Ela já estava vendo o que viria para compensar aqueles joguinhos com Cashmere.

— Tudo bem, então, Cato. Foda-se, faz a porra que você quiser fazer.

Cato estalou a língua e virou seu corpo na direção dela. Ele não era muito chegado em falar coisas como aquela para Clove.

— Porra, Clove. Se você pelo menos pensasse que nem uma pessoa normal... – ele suspirou, tapando os olhos. – Eu vim porque eu quis, você não me pediu, você não me deve nada. Mas agora a Cashmere tem uma vantagem, e eu não... não tem como saber que estrago ela pode fazer. Só colabora comigo, ok? Aguenta só mais um pouco, eu juro que vou resolver essa história.

Clove deixou que ele se aproximasse, que passasse a mão em seu braço e que sorrisse um segundo antes do elevador abrir. Lyme não era o problema real, ela esperava. Clove confiava, quase naquela mesma esperança inocente de Cato, que Lyme entendesse o que estava em jogo quando se falava da aliança entre eles, assim como todo mundo do 2 entendia que havia muita coisa entre Cato e Clove.

O problema não era Lyme, não eram os rebeldes, Cato devia saber, se não fosse o mesmo garoto de ouro, sempre transformando draminhas sociais em tramas elaboradas de vida ou morte, se preocupando demais com jogos de poder que só sabia jogar às vezes.

Clove, no entanto, conhecia outra pessoa que não ia entender tão bem, que ia cobrar por todos os minutos que ela passava com Cato.

Ela não ia torturá-lo com isso, contudo.

Ela apagou o fogo de raiva dos seus olhos e meio que sorriu de volta. Ela falaria com a Lyme, explicitaria ainda mais a porra da ligação entre eles e a vida ia seguir, a despeito das marcas novas que ela ganharia.

Quando eles chegaram nos bastidores das entrevistas, Cato ficou pra trás, respirando pela boca. Ele daria qualquer coisa para bater a cabeça em algum lugar e simplesmente acordar sem memória nenhuma. Nada a respeito de rabos de cavalo apertados e lábios vermelhos. Nada que lembrasse o som de vozes suaves e promessas perigosas sendo seladas em salas abandonadas, nada que provocasse aquele aperto em seu peito, aquela coisa estranha que pulsava todo o tempo porque ela existia.

Aquilo tudo era demais, nunca havia ar, nunca havia espaço.

— Olha. Vai melhorar quando a gente voltar pra casa – ele disse, tocando levemente em seu braço para chamar sua atenção enquanto eles eram guiados pelos organizadores. Ela não parou, como sempre acontecia quando ele falava “a gente”, mas quase imperceptivelmente fez que sim com a cabeça.

Clove não gostava de mentiras que não fossem as suas, afinal.

Nada nunca ia melhorar, era o que Cato pensava, enquanto os dois interagiam com seus tributos e com as pessoas do 1, se servindo de bebidas que de certo tinham sido dispostas sob a vaga intenção de manter os Vitoriosos domados. Não enquanto ela continuasse sentindo mais raiva dele do que qualquer outra coisa, não enquanto eles tivessem que olhar com desprezo para os tributos do 8 porque Cashmere cutucava suas costas.

Precisou de um vestido de noiva e de um menino do 12 sorrindo para eles para que uma centelha de ânimo se insinuasse na mente dos dois, previamente ocupados intimidando pessoas que até meses atrás eram seus companheiros nas atividades sórdidas que só a Capital poderia fornecer.

Como crianças olhando para coisas brilhantes, os olhos de Cato e Clove cintilaram à visão dos tributos do 12, timidamente avançando pelo espaço atrás do palco; o casal que supostamente seria o sacrifício que inauguraria a guerra. Como um dever moral, eles precisavam olhá-los mais de perto, sendo uns dos que conspiravam e planejavam o futuro deles. A menina usava um vestido de noiva e um olhar cauteloso. O menino, aquele tipo de devoção inocente e um terno branco.

Eles quase se empurraram para longe, porque, quando felinos brincam com presas, o domínio pertence a quem as tem entre os dentes. Vagamente desejando sorte aos tributos que formariam a aliança carreirista, Cato e Clove se apressaram a rumar até as novas e mais brilhantes estrelas de Panem e se apresentaram quase ao mesmo tempo. Algumas civilidades e saudações rápidas foram feitas antes de Cato finalmente testar o terreno.

— Clove aqui ficou chateada. No primeiro ano dela como mentora, o cachorro velho do 12 tira dois sortudos – ele disse, muito intenso para ser confortável. Não havia nenhuma sutileza nele; aquele modo com o qual ele levantava o queixo e se projetava levemente na direção de Peeta Mellark não era nada além de uma tentativa de intimidação muito natural para ele.

Talvez Cato não gostasse muito de não ser a estrela mais brilhante de Panem, afinal.

De qualquer forma, aquele casalzinho tinha acabado de definir outro padrão. Agora a Capital estava atrás de suavidade. Cuidado, amor, todo tipo de sentimento bom que pessoas do 2 raramente conseguiam fornecer quando iam pros Jogos.

Já era hora de superar.

— Sem ressentimentos – Clove amaciou, sorrindo. A Capital ainda estava sob o feitiço dela, afinal; se ela quisesse, ela podia convencer qualquer um a fazer qualquer coisa. Convencer aqueles dois a gostarem dela, ainda que brevemente, não devia ser muito difícil. Não depois da semana atribulada que eles com certeza teriam tido, os novatos naquele círculo tenro de pessoas que haviam ganhado edições há anos atrás e há anos lidavam com os jogos da Capital. Eles eram pessoas do 12, as que tinham inventado uma história de amor e ninado a morte de crianças de onze anos, no final. Humanidade vazava deles como os furos de um regador. Eles iriam ter que apreciar alguma aceitação, algumas palavras gentis, ainda que elas só viessem no final da coisa toda, ainda que da mentora de tributos que não haviam sequer os olhado uma segunda vez.

Ela observou os olhos calmos do menino voarem de Katniss Everdeen para eles, deles para os arredores. Ele era um inocente e ela o etiquetou assim. Então ela passou para a menina e quase sentiu pena dela, diminuindo sob o olhar persistente e esquisito de Cato.

Katniss Everdeen era um tipo de pessoa que só era produzido pelos distritos mais pobres. Aquela bravura tímida, aquela desconfiança quase confusa, quase inata, aquela aura de “queria não ter que, mas vou” não surgia em lugares como o 1 ou o 2.

O que ia ser necessário pra fazer uma garota como aquela aceitar qualquer papel numa rebelião? Ela tinha raiva, obviamente, mas uma raiva contida, muito conformada. Quão poderoso iria ser o sentimento de traição que a tomaria quando descobrisse que não teria outra opção além de aceitar seu papel?

— Então. Como os outros têm tratado vocês? – Clove perguntou, no seu tom mais leve, tentando desviar o olhar da menina e voltar para quem provavelmente ia conduzir a conversa; Peeta Mellark tinha uma cordialidade muito natural, uma que era quase... cativante.

— Vocês são excêntricos. Mas de um jeito bom, claro – Peeta se corrigiu rapidamente, rindo, e Clove imitou seu sorriso sem sequer perceber. – A gente poderia se acostumar com a companhia de vocês fácinho, se pelo menos tivéssemos um pouco mais de tempo – ele delicadamente passou um braço ao redor da garota, que não tinha nem de longe o mesmo talento em ser agradável. Ela tinha mais talento em reconhecer ameaças e não se preocupar em esconder isso delas. O que não era exatamente um talento para Clove, que prezava tanto a capacidade de dissimular.

— Tenho certeza que sim.

Clove sabia o que falar e como falar macio, mas ela não estava mentindo. Sua própria iniciação naquele grupo na sociedade de Panem era recente e os Vitoriosos podiam mesmo ser as criaturas excêntricas que o garoto do 12 graciosamente descrevera. Precisava de tempo. Menos pra ela, mais pra eles, claro. Era um grupo de pessoas que podiam não ter nenhum pudor, que nem Chaff do 11, ou que podiam te lembrar toda hora que eram capazes de quebrar seus ossos em segundos, que nem Velorum, do 1. Mas eles também podiam ser que nem ela, capazes de se encaixar bem em qualquer situação, saber exatamente o que falar e o que fazer pra chegar a seu objetivo. O que Clove queria na época era respeito. Respeito ela tinha conseguido.

Eles iriam conseguir um lugarzinho, eventualmente. Aquele sorriso fácil do Mellark poderia salvar algumas festas e a transparência da Everdeen iria ser divertida se regada por uns copinhos de conhaque.

Tristeza piscou como um flash nos olhos de Clove.

Eles sorriram e concordaram com suas sutilezas estudadas pelo resto da conversa. Ela era boa, era cuidadosa. Ela estava preparada. Ela tinha certeza que ninguém iria sequer se lembrar de ter visto seu rosto delicado manchado de sangue quando ela sabia tão bem o que falar o tempo todo, quando ela conseguia amansar qualquer besta.

Clove precisava ver por si mesma o rosto da rebelião, precisava medir por si mesma o quanto de potencial aquela menina tinha. Naquele momento, defendendo com paixão a escolha de seu estilista de humilhá-la com o vestido de casamento que jamais seria usado apropriadamente, ela não parecia ter muito.

Ela valia mesmo a pena? Todas aquelas pessoas que haviam pago bebidas para ela depois das piores reuniões, todas aquelas que tinham parecido quase tristes ao recebê-la em seu círculo, todas elas morreriam para que aquela coisinha insossa do 12 vivesse, uma daquelas que sequer conseguia fingir que gostava de um garoto de verdade. Tinha que ter mais em Katniss Everdeen. A face da rebelião não poderia ser só aquilo.

Clove persistiu. Ela precisava se convencer, impedir que a palavra traição piscasse em sua mente toda vez que seus olhos batiam em Enobaria. Ela não estava recebendo muitas respostas às quais se interessava ainda, mas devia ser questão de tempo.

Mas Cato tinha outros planos.

— E em casa? O 12 deve estar sentindo saudade de vocês. Da agitação— ele voltou a participar da conversa, bebericando de um copo. De certo cansado de ficar encarando as pessoas que nem uma aberração. Clove conseguia sentir seu olhar voar dela para a garota o tempo todo. Ela quebrou o contato visual. Ele voltou novamente sua atenção intensa pra Katniss. Clove viu o arrepio que subiu pelo braço da menina do 12.

A vitória de Cato ainda era muito recente. Ele era o animal do 2, a besta que só destruía e fazia sangrar, do tipo glorioso que a Capital às vezes se apegava muito e acabava contratando para uns serviços extras.

Talvez sua pergunta vagamente cordial não tivesse a intenção de assustar ninguém. Talvez ele nem estivesse falando sobre seus colegas da Academia dominando o 12, nem do pelourinho que tinha sido instalado lá. Talvez o problema fosse sua presença e qualquer lembrete que fosse dela. Como sempre, alguma coisa em seus olhos de gelo e sua figura enorme se projetando fez com que os 12 parecessem... tensos.

Clove soltou o ar pela boca com pouca discrição.

Congratulações para Cato.

— Eles vão sobreviver – Katniss escolheu responder à possível intimidação dele toda confiante, queixo erguido e só um leve brilho de temor nos olhos. Ela estremeceu um pouco, sim, e todo mundo conseguia ver que ela queria desviar o olhar, mas era bom pra uma 12.

Clove ficou quase convencida.

Cato ficou lá, sorrindo abertamente para ela, enquanto Peeta tentava exercer alguma normalidade na situação toda, mas estava tudo perdido. Clove sentiu uma súbita vontade de rir e precisou escorregar pra sua garganta o resto de conhaque que tinha no seu copo, sacudindo a cabeça para tentar prender o riso.

Não fossem os organizadores montando a fila para as entrevistas, eles ficariam presos ali por um tempo, constrangedoramente observando enquanto os amantes do 12 sucumbiam à intimidação que eles nem sequer pretendiam exercer pra começo de conversa.

Cato e sua necessidade constante de frustrar seus planos.

Então Clove ficou com raiva dele, a despeito do fato de que a humilhação a qual ele havia sido submetido tivesse ajudado a clarear sua perspectiva a respeito da menina do 12.

— Se divertiu recebendo resposta de uma 12? – ela perguntou para Cato, enquanto enchia seu copo com mais uma dose da bebida sofisticada da Capital. – Por que porra você falou do 12 daquele jeito? Sabendo da putaria que está acontecendo lá?

— Ela é metidinha, não é? – ele riu, empurrando o interior da bochecha com a língua e erguendo as sobrancelhas. Gritando que tinha achado tudo muito divertido, sem nem se parecer com a pessoa que tinha ficado desesperada com a ideia de ser considerado um traidor por conversar com Cashmere Ritchson.

— Para de ser um pervertido. Essa menina tem sorte de estar indo pra arena, se você vai virar o Wade perto dela. Eu não sei por que porra você não me deixou falar com eles sozinha.

Cato ficava bêbado muito mais rápido que ela, mas aquela ceninha de rir de tudo que ela falava infelizmente era algo que ele fazia sóbrio também.

— Porque você, princesa, não iria chegar a canto nenhum comendo pelas beiradas. Você só sabe quem alguém é quando você pisa no calo da pessoa, não é? E não fica com ciúmes. Eu só tenho uma quedinha pelas que me desafiam – ele respondeu, a voz cheia de escárnio.

— Você não tem uma quedinha por ela, Hadley.

— Não tem como você saber disso. – Então, para arrematar a fala e ganhar o coração da garota de vez, Cato aproveitou o olhar de canto de olho de Katniss, na ponta da fila, e deu um tapa na bunda de Clove quando ela se curvou para alcançar um guardanapos.

Ele estava querendo vender de verdade aquela imagem de animal.

Clove sorriu para a gracinha dele fingindo que nada além de uma demonstração brincalhona de amizade próxima havia acontecido. Por trás de suas pernas, os dedos dele foram torcidos até estalinhos serem ouvidos. Ele xingou bem baixinho enquanto puxava a mão pra longe.

— Vai por mim, eu saberia. E para de bancar o sensual. Quando você fica desse jeito perto de uma menina, especialmente uma menina do 12 que te viu matar vinte e três pessoas, ela não pensa em sexo, ela pensa em você quebrando o pescoço dela – Clove falou sem qualquer tom em específico. – E não encosta em mim.

Clove era a rainha do ciúmes naqueles dias.

Cato era o rei do desespero.

E Johanna Mason era, acima de qualquer coisa, uma boa observadora. De olhos atentos, encostada contra a parede em seu vestido obviamente desconfortável, nada a impediu de ostentar um sorriso para Clove, parada ali, tendo acabado de levar um tapa na bunda na frente de todo mundo.

Que bela noite para ser humilhada.

Clove sustentou seu olhar de volta e esbarrou no ombro de Cato enquanto caminhava na direção dela.

— Perdeu a porra de alguma coisa na minha cara? – foi como Clove decidiu começar aquela interação, já que qualquer cordialidade era desnecessária em se tratando de sua relação com Johanna, que meramente ergueu as sobrancelhas numa surpresa dissimulada e sorriu mais.

— Pensei que você não vinha falar oi. Muito ocupada torturando nossos novos amigos? – e Johanna quase nunca falava nada demais, mas qualquer coisa que saía da boca dela irritava Clove profundamente. Era alguma coisa na sua voz fina, no jeito que ela a olhava, naquele deboche muito descuidado e, logo, muito diferente do dela.

— Imagina se eu ia perder a oportunidade de falar com você. Nenhum 12 me privaria desse prazer, Jo— Clove respondeu, decidindo ajeitar a gola do vestido de Johanna. – Cadê o Finnick, a propósito? Não falei com ele, também.

Clove não estava fazendo uma provocação, no sentido clássico e consciente da palavra, mas Johanna mesmo assim empurrou suas mãos com brutalidade, se virando para ela com aquela fúria que não precisava mais conter agora que a Capital tinha terminado com ela.

— Vai se foder, Kentwell. Eu não quero nem saber que porra você vai ter que fazer pra compensar não ter vindo se foder bem aqui – Johanna disse, apontando para a fila. Clove deu de ombros, quase como se pedisse desculpa, mas o assunto devia ser delicado para Johanna, que decidiu abaixar a voz e dizer: – Eu posso jurar que ser a queridinha da Capital tem seu preço. Eu acho que sai até a porra de um casamento, já que esse do 12 foi pro brejo. O que você acha?

Clove franziu as sobrancelhas e viu o sorriso satisfeito de Johanna.

— Casamento? – ela repetiu, em um dos raros momentos em que se sentia... desorganizada. Clove ficou em silêncio por mais uns segundos; afinal, a rebelião poderia acontecer quando já fosse tarde demais e qualquer documento imbecil prendesse ela a Capital para sempre. Suas mãos tocaram brevemente seus pulsos e seus olhos seguiram para a figura de Cato, agora conversando com Beetee, mas ainda tentando aterrorizar os 12. Johanna acompanhou seu olhar e estralou a língua, revirando os olhos.

— É, mas foda-se – Johanna exclamou, claramente dando para trás, alguma coisa quase parecida com pena em seus olhos escuros enquanto ela sacudia a cabeça como se Clove fosse muito ridícula. – O velho não vai desviar a atenção do Massacre agora. Ele não ia querer mexer com essa porra quando tem esse tanto de estrela para entreter esses perturbados.

Clove permaneceu em silêncio, odiando Johanna muito vagamente enquanto avaliava as possibilidades dessa história de casamento acontecer antes da rebelião implodir. Com muita clareza, ela percebeu que precisava dobrar Naevio antes disso, então, para que ele não tentasse aquela forma final de dominação. Porque o que seria feito se isso acontecesse? Se ela de repente não fosse mais Clove Kentwell da Patrus, mas Clove Kentwell casada com Naevio, cidadã da Capital, prêmio final de um homem cruel?

Rebelião nenhuma apagaria o rastro de destruição que isso alastraria dentro dela. Guerra nenhuma impediria aquela declaração final de derrota.

E era só um soquinho na cara de Johanna para resolver, como sempre.

— Eu só falei essa merda pra encher seu saco, Kentwell, não precisa desmaiar nem nada. Você ainda tem tempo de aproveitar esses tapinhas aí.

— Vai se foder – Clove rosnou automaticamente. Contudo, ela permaneceu do lado de Johanna por mais um tempo, braços cruzados e o silêncio que servia melhor às duas, planejando intrincadamente mais algumas estratégias para convencer o homem da Capital.

— Não é sério assim, Kentwell – Johanna sibilou, mais uma vez.

Clove observou Finnick Odair por um instante antes de erguer mais uma vez as sobrancelhas para Johanna e sorrir muito levemente.

— Eu sei que não é, otária – ela respondeu, esbarrando o ombro no dela para voltar a seu lugar. – Boa sorte, então, Jo. Te vejo depois.

— Ok, Clo. Te vejo depois.

Muitas coisas podiam ser ditas por palavras muito simples, afinal.

Clove retribuiu o olhar de Cato uma última vez antes de eles saírem para tomar seus lugares na audiência, Clove vagamente correndo as mãos pelo pescoço enquanto lhe guiavam até Naevio.

E quando um homem da cenografia deixou cair um papel nos pés de Cato e ele encontrou um endereço conhecido cuidadosamente escrito, Clove já estava se aconchegando em Naevio como se ansiasse pelo corpo dele rudemente aprisionando o seu, ele já estava preso na mesma falta de ar que acompanhava a presença do homem da Capital e Cashmere já tecia cuidadosamente um drama familiar na sua entrevista.

Então a única coisa que ele pôde fazer foi guardar pra si o fato de que, depois daquele dia tortuoso e infinito, ele ainda teria que atravessar a Capital para foder a pior de suas clientes e casualmente encontrar Ivory Callowell e ver o progresso que Plutarch Heavensbee estava tendo com o presidente.

Guardar pra si.

Nunca havia ar o bastante.

Finnick declamou um poema ambíguo, Uter balbuciou qualquer coisa que saísse de sua mente viciada, Johanna Mason usou seus três minutos para xingar todo e qualquer cidadão da Capital, Cecelia disse adeus para seus filhos.

— Olha. Eles vão embora amanhã cedo. Aí vai melhorar.

Agora, ele tinha que guardar as coisas para si porque Clove tinha que ser o tipo de pessoa que usava as palavras que ele usava com ela falando com pessoas da Capital.

Casamentos, tordos, bebês. Ele não conseguiria descrever com precisão as tentativas desesperadas dos tributos de arranjar um cancelamento, mas ele conseguiu ver que tudo estava uma bagunça em segundos.

A cena não parecia fazer sentido; pessoas da Capital não reclamavam, não sentiam nada além de alegria, nunca ficavam insatisfeitas. Mesmo assim, eram elas gritando, clamando o cancelamento como se um deles estivesse sendo levado para o abate.

O suposto bebê dos amantes do 12 seria posse deles, de qualquer forma, certo? Que nem eles eram.

Alerta piscou nos olhos momentaneamente verdes de Clove se voltando para ele no exato instante em que o hino começou a ser tocado, pulsando em sua cabeça como as palavras vagas que sua mente bêbada ecoava.

O inferno veio à tona com uma visão insultante; os tributos, em algum tipo de demonstração de insubordinação, seguraram as mãos uns dos outros. No compasso das luzes se apagando e dos Pacificadores evacuando cadeiras como se algum desastre natural estivesse implodindo, o riso de Cato lentamente foi sufocado.

Como um bom Vitorioso, mesmo sob a influência de álcool, seus instintos funcionavam perfeitamente bem. Ele largou o copo de rum e identificou a entrada mais próxima para o Centro dos Tributos. Vendo tudo em preto e branco – e um leve borrado nas beiradas –, ele sustentou seu corpo contra a multidão avançando contra os Pacificadores e gesticulou um “vamos” para Clove. Ele não ficou para ver a despedida do casal, mas Clove estava ao seu lado em cinco segundos, rumando para a entrada com o mesmo olhar de decisão que ele devia ostentar, o mesmo brilho que só brilhava em seus olhos frente ao mais absoluto caos.

Mesmo que as coisas estivessem diferentes e um ou dois rachados estivessem aparecendo na aliança deles, Cato fez seu corpo de escudo para ela contra os animais exóticos que eram as pessoas da Capital.

Seu perfume alcançou seu nariz no segundo que sua mão encontrou a dele.

Eles encontraram o elevador no segundo que um homem histérico os reconheceu.

Cato reconheceu seu problema no segundo que Clove sorriu para ele;

Eu amo ela.