Glory and Gore

A rope in hand for your other man to hang from a tree.


Naquela noite, Cato pôde sentir as olheiras se formando abaixo de seus olhos.

Suas costas começaram a doer pelas incontáveis horas sentado na mesma posição. Seus olhos, fixados no mesmo ponto, começaram a arder. Ele teve certeza que sabia cada um dos detalhes que compunham aquela parte da sala da sua casa; a mesa de café, com os frascos que Clove estava usando para limpar os ferimentos em seu rosto, o vaso com os cravos murchos, a televisão desligada.

Tudo doía e mesmo assim nada poderia ser sentido.

A madrugada já estava se esvaindo quando Cato finalmente se levantou de seu canto, seu corpo todo dormente. Ele acendeu a luz da sua cozinha enorme e pegou da geladeira a panela que Ella tinha usado para cozinhar uma sopa na noite anterior, quando Clove estava voltando da Capital. Enquanto Cato esquentava a sopa, ele se lembrou da recusa da mulher em receber o dinheiro. Ele se lembrou do barulho do chuveiro e da batida na porta, dos olhos piedosos de Ella o entregando a panela, do jeito que aquele brilho estranho apareceu em seu olhar e ele pôde entender que porra era aquela. Quem não podia, quando Clove tinha acabado de ser exibida na televisão com todos aqueles quilos a menos e aqueles olhos vagos? Quem na Patrus não podia entender? Então ela saiu do chuveiro e ela estava tão cheirosa, mas tão ridiculamente quebrada que Cato sequer se atreveu a tocar nela.

Cato se sentou à mesa sofisticada que ficava na cozinha e engoliu relutantemente a sopa. Na noite anterior, ele não tinha tido a chance de experimentá-la. Seu prato estava feito, contudo, e, de repente, ele sentiu que o relógio tinha voltado vinte e quatro horas atrás: havia ele, um pouco aliviado que ela estava de volta, um pouco aterrorizado com tudo, rindo fracamente enquanto colocava a sopa no seu prato. Havia Clove, sentada na bancada, sacudindo as pernas cheias de marcas, contando uma história sobre o Kurt tentando mexer com um arco e flecha. Uma de suas pernas passou muito perto de sua mão desocupada e Cato não pôde fazer além de segurá-la. Qualquer expressão deixou o rosto de Clove enquanto ele tocava sua pele macia. Não demorou muito para que seus dedos alcançassem a única marca que permanecia roxa, a que decorava a parte interior de sua coxa esquerda. Ela se encolheu.

E aí o silêncio surgiu, gelando o cômodo como se o inverno estivesse chegando de novo.

Eles sabiam bem que não deviam deixar aquele tipo de silêncio aparecer. Aquele tipo de silêncio era sempre aquele que pronunciava as coisas ruins, aquele que evocava o interdito, aquele que trazia consequências desastrosas.

Porque a marca ainda estava lá e eles estavam calados, talvez eles fossem ter que ter aquele mesmo diálogo:

— O que é isso, por que ele faz isso, como que você se colocou numa situação dessa? – Cato iria gritar, correndo as mãos pelo cabelo, suas palavras se embolando num desespero sempre inédito.

— É assim que as coisas são, supera! – Clove berraria em resposta, o empurrando bruscamente porque queria fingir que aquelas coisas todas que aconteciam na Capital eram anuladas quando ela chegava no 2.

— Por favor, Clove, só pede pra ele parar. Ele iria te ouvir, ele não pode estar fazendo uma merda dessa se soubesse que você está toda fodida! Ele não está pagando pra ser seu namorado, por que ele...? Você tem que fazer alguma coisa, pede pra ele parar, por favor.

Enquanto o tempo permanecia parado, eles ouviram todas suas falas ecoarem como se estivessem tendo aquela discussão bem ali, de novo.

A ideia por detrás era quase difícil de ser elaborada racionalmente; eles podiam ignorar o provável retorno à arena, a ameaça sob a qual a Capital causalmente os mantinha, o risco que eles corriam toda vez que murmuravam contra ela. Mas seus corpos nunca puderam ser ignorados. A marca estava ali, então a marca estava neles. Não havia muita coisa a ser dita, mas como um idiota, Cato permaneceu ali, com a mão naquela coisa grotesca. Algumas vezes, ele cobria uma daquelas com uma marca de sua própria autoria. Clove não falava nada, mas ainda assim o pedia para fazê-lo.

A temperatura estava beirando os graus negativos porque Clove não estava pedindo nada pra ele naquele dia. A marca ainda estava dolorida, então ele não poderia tocá-la, deveria deixá-la quieta ali, confirmando na realidade qualquer acontecimento que a tivesse gerado. Tudo em Clove ainda estava dolorido, então ele não poderia tocá-la.

Clove empurrou sua mão para longe depois de alguns segundos encarando seus olhos cheios de coisas. Essas coisas eram difíceis de serem nomeadas, mas Cato pensou que as dele deviam se parecia um pouco com as que tinha visto nos olhos de Ella mais cedo.

Ela desceu da bancada e ele voltou a encher seu prato, agindo como se nada estivesse acontecido. Respirando pesadamente, Cato ouviu Clove se movimentando pela casa, sua respiração igualmente ofegante. Ele a imaginou correndo a mão pela testa, soltando o ar pela boca. Talvez ela fosse para o quarto jogar umas facas e talvez mais tarde ouvisse suas desculpas. E talvez...

Ela subiu as escadas correndo. Ele largou o prato e a seguiu.

— Você não precisa ir embora – ele meio que gritou, do meio da escada. Era tudo bagunçado, tudo indizível, tudo ridiculamente doloroso. Ele não sabia o que estava fazendo, não sabia por que aquilo tudo era tão difícil, não sabia por que Clove queria ir embora, mas sabia que ela iria o fazer como se tivesse nascido com aquela informação em seu corpo, como se seu instinto funcionasse única e exclusivamente para entender o que Clove era.

Cato chegou em seu quarto esbaforido. Clove agarrou a mala e se virou com seu rosto cheio de lágrimas. Ele ouviu sua respiração sufocada, percebeu a dor em seus olhos vermelhos.

O tempo deu uma outra pequena pausa; só o suficiente para que Cato pudesse enxergar direito os olhos afobados de Clove, para que ela pudesse entender de vez que estava o deixando vê-los daquele jeito, cheios de lágrimas e desespero.

— Não, não, Clove, me desculpa. Eu não vou... Desculpa – ele engasgou, sentindo seu peito apertar.

— Toda vez que você faz isso, eu quero te matar – Clove rosnou, a voz embargada. – Por que porra você acha que tem o direito de ficar me questionando sobre esses infernos dessas marcas, qual é a porra do seu problema, Cato? Você já foi marcado assim, seu filho da puta? Alguma vez você já foi colocado de quatro e a pessoa que fez isso com você acordou do seu lado e te beijou pra te dar bom dia e te deu a porra de um...

A voz de Clove sumiu. Ela o empurrou fracamente, só para terminar de expressar seu pensamento. Então permaneceu lá por uns minutos, seu corpo se sacudindo com os soluços. Cato pensou que poderia falar que não estava questionando nada, que ela tinha entendido errado, que ia parar, tudo isso. Mas ele não pôde mentir. O que ele tinha feito (o que quer que fosse aquilo) era errado. Então ele a abraçou, muito bruscamente, para que não pudesse passar mais tempo a vendo daquele jeito. Clove continuou tremendo em seus braços, mas ele encarava a parede do quarto, seu próprio coração disparado, pânico nublando seus pensamentos como sempre acontecia.

Clove está chorando de novo, Clove está chorando de novo, Clove está chorando de novo, seu cérebro gritava.

— Eu te disse que vou resolver isso, Clove, eu vou matar ele – ele sussurrou freneticamente, como se estivesse cantarolando uma canção de ninar. – Eu te falei que não vai sobrar nada dele. Todo osso vai ser quebrado e ele vai acabar numa cova rasa e ninguém vai nem reconhecer o rosto dele, eu prometo.

Ela não parava de chorar, mesmo quando tentava dizer alguma coisa, mesmo quando ela subia os olhos para olhar para ele e parecia que tudo aquilo ia ser substituído por raiva. Mas nada vinha. A madrugada chegou e Clove não parava de chorar. Seus soluços soavam como os sons que um lugar amaldiçoado deveria ecoar. Eles se deitaram e ela não fez nenhum movimento para se desvencilhar de seus braços, mesmo quando passou a se sacudir menos. Foi quando o sussurro veio, contra a pele do seu braço, quase como uma respiração que ela estava tentando segurar.

“Eles vão te mandar de volta”.

Cato não perguntou quem eram eles. Era o seu namorado da Capital, que talvez soubesse sobre a amizade deles. Era o Snow, descontente com sua quebra de protocolo para com as estâncias poderosas da Capital, que tinham decidido que ela não poderia ser senão o garoto de ouro.

Era o Wade, como agora ele sabia.

Eles não falaram nada sobre a declaração de Clove na manhã seguinte. Ela fez alguns comentários que não tinham exatamente revelado a apreensão que ela deveria estar sentindo com a ideia de voltar pra arena. Cato ficou desconfiado. Eles decidiram não se falar mais pelo resto do dia até ele ter decidido quebrar a cara de Wade.

O relógio voltou para o presente e Cato se viu de frente à sopa novamente gelada, sustentando a cabeça com os braços.

Clove estava certa. Eles iriam o mandar de volta. E ele sabia que daquela vez não teria volta. Ele não queria que tivesse, mas também não queria que a coisa fosse daquele jeito. Era muito cruel, muito irônico. Snow iria rir demais se sua criaçãozinha voltasse pra lá toda quebrada, mas disposta a fazer mais uns trabalhos para ele só para ficar vivo mais uns dias e então receber uma homenagem no céu como se fosse um deles.

Mas não havia nada a ser feito a respeito disso. Era outra coisa que fazia Cato pressionar a testa contra suas mãos.

“Então eu não vou ter problema cortando sua garganta na arena para a qual você acabou de me candidatar para voltar”.

Ele iria voltar por conta das mãos habilidosas da Capital. Clove, contudo, poderia voltar por conta das mãos sedentas de pessoas que moravam duas casas à esquerda.

Wade.

Um errinho nas contas de Wade seria o bastante pra garantir que eles dois acabassem na arena. Diferente do que Brutus tinha previsto com tanta certeza, talvez a coisa toda não fosse acabar tão bem. Talvez Clove não durasse o bastante pra colocar a faca em suas costas, talvez ela não fosse ser sequer autorizada a se aliar a ele. Um errinho na execução e eles estariam condenados. Com os últimos acontecimentos, talvez Wade fosse organizar esse errinho de uma forma muito articulada.

Então Cato sabia exatamente o que devia fazer.

Com os passos certos de quem se prepara para uma execução, ele subiu as escadas e tomou um banho. Cato deixou que sua mente vagasse por todas as marcas no corpo de Clove para que ele pudesse sentir culpa o bastante para fazer o que fosse preciso para consertar as coisas. Ele tentou cuidar dos cortes mais uma vez e colocou uma roupa apresentável.

A madrugada chegava a seu fim e Cato caminhava pelas ruas da Aldeia dos Vitoriosos.

— Clove acabou de sair daqui – foi como Wade o recebeu, voltando pra dentro antes de oficialmente deixá-lo entrar.

Cato suspirou um riso sem humor antes de bater a porta atrás de si e seguir seu colega Vitorioso. Wade ostentava um rosto inchado e repugnantemente roxo que certamente o ajudaria a passar por aquela madrugada em sua companhia.

— É? Como foi? – ele perguntou, coçando o nariz.

— Bom. Ótimo. Sempre é, com ela – Wade respondeu, sorrindo daquele jeito estranho enquanto se sentava no sofá desgastado de sua casa muito bagunçada. Ele estava assistindo o programa do Caesar, que comentava extasiado todos os detalhes sobre o Massacre.

— É, aposto que sim.

Cato se sentou no sofá que ficava na outra extremidade da sala e respirou profundamente por uns segundos antes de se curvar um pouco na direção de Wade.

— Escuta, cara, eu sinto muito por... essa coisa aí na sua cara – ele declarou, coçando o nariz de leve, observando Wade continuar a assistir seu programa. – Eu não sei o que aconteceu. Mas não teve nada a ver com você. Eu estou tendo uns problemas com um pessoal da Capital e você sabe como essas coisas são.

— É? – Wade emitiu, ainda encarando a televisão. – Que tipo de problema?

Cato soltou uma risada fria, sacudindo a cabeça para o perfeito filho da puta que Wade era.

— Ser a putinha do Snow está te causando problemas, Cato? – Wade riu, se apoiando no encosto do sofá para conseguir ver melhor a expressão de Cato, que só pôde sorrir um sorriso que não chegava a seus olhos. – Eu estou achando que isso é conversa sua, sabia? Eu acho que você gosta disso e só inventa essas merdas pra se fazer pra Clove. Você está fodendo aquele bando de rico desesperado por putaria e ainda sendo pago. Eu não tive problema nenhum quando estava no meu tempo. E você também não tem.

Wade simplesmente se virou para a televisão depois de cuspir suas verdades absolutas. Ele pegou uma tigela e despejou o resto dos cereais na sua boca aberta. Cato o assistiu, porque não havia mais o que se fazer. Não havia finalidade em mexer com as convicções de Wade. Ou você aceitava o que ele era ou você esmurrava a cara dele. Já que ele havia escolhido a segunda opção da última vez, restava a ele se conformar.

Alguns minutos se passaram e Cato tentou esvanecer as palavras de Wade de sua mente, abrindo e fechando suas mãos que teimavam em se fechar em punhos. Ele moveu um pouco seu maxilar cerrado.

— Olha, eu só quero ter certeza que essa merda não vai te impedir de fazer a decisão certa pra essa coisa do Brutus. Eu sei que você quer passar um tempo com a Clove, mas a arena não vai ser um bom lugar pra isso. Ela provavelmente vai te trair nas primeiras horas, então.

— Então o quê?

— Não coloca o nome dela naquela desgraça, Wade – Cato rosnou, entredentes, correndo a mão pela testa porque simplesmente não dava conta de lidar com Wade tendo poder demais nas mãos.

— Ah, Cato, vai se foder, cara. Essa porra não é da sua conta. O que é, é medo dela esquecer da parceria de vocês se for pra lá comigo?

— Olha, seu filho da puta, você não tem problema com ser a putinha do Snow, mas a Clove tem. Você não sabe porra nenhuma do que acontece lá na Capital porque você é um fodido do caralho que nem os perturbados de lá conseguiram aturar, mas a coisa é menos bonitinha do que você pensa – Cato despejou, se esforçando para manter seu tom baixo, seus olhos queimando com um ódio um pouco mais morno que o de sempre. – Quanto tempo você performou lá, cinco, seis meses?

— Sete – Wade rosnou.

— Eu estou lá tem três anos. A Clove está tem dois. Ela pesa dois gramas e toda semana está entretendo uns três ou quatro pervertidos, você tem noção do que é isso pra uma pessoa do tamanho da Clove?

— O velho passou ela pra aquele cantor – foi a pontuação de Wade, cheia de negação.

— E você acha que isso é melhor? – Cato quase sussurrou. – Você sabe o que ele faz com ela, imbecil?

Wade se virou para ele, agora. Seu olhar estava cheio de desgosto; ele quase o desafiava a dizer o que é que Naevio fazia com Clove. Mas Wade sabia bem que Cato não poderia realmente verbalizar muita coisa sobre toda aquela situação. Que ele mal podia pensar direito a respeito dela.

Então eles ficaram lá, sustentando olhares cheios de ódio por alguns minutos, enquanto o dia começava a amanhecer.

— Eu não vou colocar o nome dela – Wade finalmente afirmou, voltando o rosto para a televisão.

— Então nós terminamos aqui – ele se levantou, de imediato.

— Eu não disse que não colocaria o seu.

Cato parou com sua mão a meio caminho da maçaneta.

— Legal. Pra você poder consolar a Clove aqui, é?

— Podia ser. Mas ela não vai precisar de consolo, de verdade. Ela supera fácil.

Cato só pôde suspirar um sorriso enquanto deixava a casa de Wade. Mesmo que ele quisesse negar, ele sabia bem que a sentença de Wade não era de toda falsa. Clove certamente superava fácil. Ele só não sabia ainda o que devia pensar disso.

Portanto, ele se esforçou muito para não pensar em mais nada a respeito de Clove. A sentença deles, afinal, tinha sido proclamada há muitos anos atrás. Eles não deviam ficar muito perto um do outro. Eles sabiam disso desde que Brutus os separou na Academia. Eles certamente sabiam que se Snow estava decidindo que eles deviam pertencer a universos diferentes, então separados eles deveriam ficar.

E porque Clove sabia muito bem disso, ela passou a noite observando o teto de sua casa no 2. Era melhor que o apartamento de Naevio, mas ainda havia alguma coisa errada. Sempre tinha havido. Alguma coisa a ver com o fato de que ela nunca tinha tirado suas roupas das malas quando estava lá e na inegável vastidão do espaço, desprovido de qualquer toque pessoal. Ela gostava mais do quarto de Cato, que tinha roupas de cama coloridas e algumas fotos no criado mudo. Ela gostava que ele não jogasse fora as flores que recebia da Capital.

Mas parava aí.

Tinha muitas coisas a respeito de Cato que ela não gostava. Coisas que a colocavam em posições terríveis. Coisas que a faziam visitar Wade no meio da madrugada para sondar suas pretensões para com os votos que colocariam alguém de volta na arena.

Naquela noite, Clove sonhou com um colar sufocando a garganta de Cato e com um lago vazio.

Segurando o mesmo grito desesperado de sempre em sua garganta, ela se levantou pela manhã e se aprontou para voltar para a Capital. Daquela vez, ela tinha um passe de só dois dias de estadia. Era só um serviçinho rápido para Naevio. Os Pacificadores curvaram a cabeça quando ela passou para entrar no trem. Ela se sentou sozinha nos bancos próximos da janela, deitando sua cabeça contra a mesa depois de confirmar que estava sozinha no vagão. E, como sempre, alguma coisa parecia devorar seu interior, a preparando para seu tempo na Capital, esvaziando tudo para que ela pudesse ser só um casco. Clove vagamente passou a mão pelo peito, como se para checar se seu coração ainda estava batendo.

Não havia Cato na Capital.

Se ela o visse, ele era só o cara que tinha ganhado os Jogos antes dela, seu muito reservado mentor. Se Naevio perguntasse sobre ele, ele era só seu antigo parceiro de treino, um com quem ela tinha rompido quaisquer laços pessoais há muito. Se Snow o mencionasse, ele era só seu amigo especial.

Clove conhecia o protocolo como conhecia a própria mão.

Então, quando Naevio adentrou seu apartamento enquanto o programa de Caesar mostrava exatamente o rosto dele, Clove sabia o que esperar e como devia conduzir a situação.

— De novo? – foi o que ele perguntou, um sorriso suspirado acompanhando a coisa estranha em seus olhos.

— Como assim? – Clove emitiu, desviando o olhar para Naevio, que largava sua maleta na mesa da sala.

– O Cato de novo – ele esclareceu segundos antes de depositar um beijo estralado nos lábios de Clove, entreabertos com o teor cru da conversa. Naevio se sentou imediatamente a seu lado, a dando pouco tempo para elaborar alguma coisa. Ela decidiu sorrir mais um pouco e o beijar de novo.

— É o meu distrito de novo. Eu gosto de saber que os melhores vencedores saem de lá.

Naevio não desviou o olhar do rosto de Clove, cheio de uma simplicidade infantil. Suas sobrancelhas se franziram antes de ele se recostar no sofá.

— Você não é dessas coisas, Clove. Essa historinha de orgulho, glória e sei lá mais o quê. Quando é que você sequer fala alguma coisa do seu distrito, amor? Então, sei lá, eu acho que é o Cato de novo.

Clove não conseguia descrever a forma com a qual Naevio falava com ela. Era cheio de uma propriedade impossível, como se tudo a respeito dela pertencesse inteiramente a ele. Ele sabia o que ela pensava, sentia e fazia o tempo inteiro. Ele sabia o que ela faria ou tentaria fazer. Ele a espiava em seus sonhos, no 2, em qualquer lugar. Ele depreciava sua inteira existência.

— Eu já disse que não tenho nada com o Cato. Supera, Naevio – Clove rosnou, se levantando e caminhando para o bar.

— “Supera” – Naevio repetiu, a voz escondendo um leve riso. – Clove, não sou eu que tenho que superar nada. Para de deixar ele te foder e talvez eu supere alguma coisa.

Todas as mil respostas para aquele ultimato passaram pela cabeça de Clove antes que ela decidisse engolir seu conhaque e sacudir a cabeça, em silêncio.

— Eu não sei do que você está falando. Eu não sei por que você não pode confiar em mim. Eu já te disse, o Cato é só meu amigo. Nem isso, direito, mas a vitória dele foi complicada. Ele precisa conversar, às vezes. E ele foi meu mentor, então eu devo ele.

— Amor, você precisa entender que eu te vi ali – Naevio exclamou, apontando para a televisão. – Eu te conheço, Clove. Eu vi você sendo você e é por isso que eu sei que não tem chance nenhuma do Cato Hadley não estar te fodendo porque, se não fosse isso, você estaria pouco se fodendo pra ele “precisando conversar”. E você lá conversa com as pessoas, princesa? Que porra de pergunta é essa, Clove, “por que você não pode confiar em mim”? Porque você é você.

Naevio estava muito perto dela agora, se servindo de vinho com um sorriso. Clove ficou lá, encostada contra a bancada fria, sua boca seca e sua cabeça rodando cheia de nada que fosse servir para remendar aquela situação. Naevio não a deu tempo para tanto, contudo. Com o mesmo sorriso, ele passou a mão pelo seu rosto pálido.

— E eu te amo por isso, Clove. Você é você. É só que... você sabe, eu não gosto de dividir as coisas – ele ronronou, seus olhos de uma ternura dissimulada. – Então eu não gosto da ideia de você e o Cato passando esse tanto de tempo lá no 2.

— Não, eu não passo tempo com ele lá, eu só... – Clove começou, num movimento impensado, sua voz soando como uma súplica, seu rosto muito cheio de dor para alguém como ela. Naevio estralou a língua de leve, beijando sua bochecha em seguida. Então sua testa. Seu nariz. O canto de seus lábios. Quase como se ele odiasse vê-la daquele jeito.

— Tudo bem, amor. Eu não estou te pressionando. Eu te amo demais pra fazer isso. Está tudo bem. As coisas estão mudando. Eu vou dar um jeito de te trazer pra cá quando a gente casar e, quando você for uma cidadã da Capital, tudo vai se ajeitar.

Clove ouviu a própria respiração entrecortada enquanto era envolvida num abraço por Naevio. O vômito subiu sua garganta. Com seu olhar preso em um quadro que retratava uma gazela, ela se viu ali na Capital para todo o sempre, vestida em couro e seda, a permanente atração daquele circo. Ela se viu assistindo ao Massacre do lado de Naevio, sua mão aprisionando a sua enquanto eles assistiam Cato morrer, a lembrando de não reagir demais. Clove empurrou tudo de volta com um último gole de conhaque. Então ela se livrou do abraço e exibiu um sorriso.

— Eu não sou garota para se casar. Você sabe, eu prefiro coisas menos sagradas – ela sussurrou.

Alguns minutos depois, Clove tinha terminado o serviço para o qual estava realmente recebendo. Naevio estava deitado ao seu lado, seus olhos maravilhados dançando pelo teto, seu corpo suado muito perto do dela. Clove estava sentada contra a cabeceira da cama, contando suas novas marcas, seu rosto congelado no mesmo choque desesperado de sempre.

— Deus, eu te amo – Naevio suspirou.

— Eu também – Clove sussurrou em resposta, seus olhos presos na parede a sua frente.

Ela passou o resto da noite contemplando a situação. De manhã, depois que Naevio havia saído, Clove traçou todo o caminho que a tinha levado àquela situação, imersa na banheira. Passeou por seus planos intrincados para permanecer no topo do ranking da Academia. Se viu se forçando a se envolver com muitas pessoas do 2 e para deixar de se envolver com uma em particular. Viu Attico pedindo para que ela recobrasse a razão antes de ir pros Jogos e Wade aparecendo em sua sala de treino. Snow a chamando para conversar sobre seu namorado e a palavra casamento ecoando de novo e de novo.

A arena quase parecia a saída perfeita.

Ela morreria num par de segundos. Talvez algum aliado pudesse ser coagido a dar o tiro limpo. Todos seus pecados seriam perdoados. Todo mundo que ela havia traído e machucado ficaria livre. Naevio não poderia mais encostar nela.

Mas.

Havia uma coisa que pulsava em seu interior, desesperada, gritando que ela devia procurar outra saída. Você sabe, Clove não ligava realmente para o que a vida era. Ela poderia penhorar algumas e encerrar outras, tudo feito sem compreender exatamente a magnitude de seus atos – ou prendendo essa compreensão num local muito raramente visitado de sua mente. Sua potência de vida era instável.

Havia uma outra existência, contudo, que fazia Clove entender perfeitamente bem o valor que uma vida tinha. Havia uma vida que era sagrada.

Então Clove se impulsionou para fora da banheira e sem se dar tempo de respirar apropriadamente, alcançou seu telefone. Ela alegou se tratar de uma emergência pessoal. Ignorou que o poder destrutivo da Capital tivesse inegável acesso a mais uma prova da associação entre eles.

— Oi – ela disse primeiro, sua voz soando um pouquinho desesperada.

— Clove?

— Oi, Cato.

— Por que você está ligando pra cá, o quê...? Você está bem? Que porra aconteceu agora?

— Um tanto de merda está acontecendo aqui, então eu acho que você devia levar a sério aquilo que eu já te disse mil vezes.

Cato ficou em silêncio. Clove pôde ouvir sua respiração pesada do outro lado da linha.

— Eu já pedi desculpa. Eu não vou mais questionar esses infernos de marca aí, Clove.

Ele pareceu cansado, mas, como sempre, disposto a lidar com ela.

— O que aconteceu?

— Aconteceu um monte de merda, eu te disse! Eu vou voltar pro 2 amanhã e a gente terminou. Não precisa me procurar mais.

Clove ouviu a risada seca de Cato ecoar. Ela quase pôde ver a cena nitidamente. Afinal, era uma que tendia a se repetir com certa frequência. De volta na Academia, depois de suas edições dos Jogos, depois do vexame na vitória dos 12. Ele iria empurrar a bochecha com a língua, sacudindo a cabeça. Iria desejar que realmente fosse possível acabar com aquilo de uma vez.

— Não é assim que funciona, Clove. A gente conversa amanhã. Tchau.

— Funciona do jeito que eu quiser, Hadley. É sério, dessa vez. Não dá mais pra...

— Clove. Eu falo com você amanhã.

Cato desligou antes que ela pudesse responder e alertá-lo sobre a seriedade daquele ultimato. Ela deixou, porque não queria realmente alertá-lo sobre nada. Mesmo assim, mesmo com aquela sensação de queimação assolando seu peito minutos depois de abandonar o fundo da banheira, a coisa teria que ser feita.

Para preservar o sagrado, Clove Kentwell decidiu não mais se associar à figura de Cato Hadley.