Give Me Her Heart

Me entregue o coração dela


O caçador não estranhou quando viu a tempestade que caia sobre o reino. Não se assustou com os trovões que ecoavam e com os raios que caiam do céu, parecendo serem capazes de atingi-lo a qualquer momento. Não parou temeroso que os raios pudessem acertá-lo, apenas continuou correndo. Afinal, ele tinha um trabalho a fazer. E ele sabia que a rainha não iria tolerar atrasos.

E ele não tinha mais nenhuma intenção de irritar a rainha. Tinha aprendido e muito bem quais eram as conseqüências que aquilo traria.

Ofegou, cansado, enquanto subia sem parar os inúmeros lances de escada que levavam até os aposentos privados da rainha. A porta estava aberta, ela o estava esperando. Ele parou, encostado na parede, tomando fôlego e tentando se recuperar da subida. Respirou fundo, antes de olhar para a rainha.

Ela estava sentada, encolhida no trono, abraçando os próprios joelhos. Seus olhos azuis e frios estavam desfocados e ela estava perdida em pensamentos, sequer havia notado a presença dele ali. A rainha estava presa em sua própria bolha de sofrimento e ele sabia muito bem que aquela era a verdadeira razão para o reino estar sendo assolado por um inverno tão rigoroso.

E o caçador sabia muito bem que a rainha não estava imersa em tristeza por conta da morte do rei. Ah, não. A rainha não ligava para o rei. Ela tinha se casado com ele por obrigação e depois de algum tempo, aprendeu como usar o rei para obter o que queria. E agora que ele morrera na guerra ela conseguira o que sempre quisera, um reino só seu.

Ainda assim, ali estava ela, infeliz. Como se algo lhe faltasse, logo agora que ela tinha conseguido tudo o que queria. Definitivamente, ele não entendia mulheres.

Pigarreou, para chamar a atenção dela.

Lentamente, Lilith ergueu os olhos para ele. Ela se aprumou no trono e assumiu um ar grave e um tanto orgulhoso, o olhando dos pés da cabeça. Ergueu o queixo. Agora sim, se parecia com uma rainha.

— Mesmo para um homem que vive na floresta, você está deplorável. — foi a primeira coisa que ela disse, sua voz estava rouca.

O caçador revirou os olhos.

—Também é bom vê-la, majestade. — não conseguiu evitar ser irônico na última palavra.

Ela o ignorou. Levantou-se do trono e andou até onde ele estava. Lançou-lhe um olhar desconfiado.

— Sua tão amada Cinderela descobriu algo de útil dessa vez? — perguntou, arqueando a sobrancelha loira. — Ou ela tem estado ocupada demais se divertindo nos aposentos do príncipe encantado? — ela trincou os dentes à menção do príncipe.

O caçador fechou a cara.

— De encantado ele não tem nada. — resmungou, ainda apoiado na parede. — Ela talvez tenha encontrado algo... Mas vai precisar de sua ajuda para ter certeza de que é útil. Ela não vai conseguir descobrir o que é sem recorrer a um pouco de magia.

A rainha ficou em silêncio durante alguns instantes. Fechou os olhos e inspirou. Depois, os abriu lentamente e se aproximou mais do caçador. Parou em frente dele e o olhou nos olhos.

— Magia... Parece ser a solução mais simples para os seus problemas, mas na verdade, pode ser apenas mais uma maldição. — ela passou a mão pelo cabelo loiro e sedoso. — A ingênua Cinderela percebeu que, sem os sapatinhos, o príncipe não a amaria nem desejaria, não é? Espero que ela não esteja planejando cancelar o nosso acordo, pois eu a tinha avisado sobre isso. Eu podia garantir sim, que ela fosse ao baile e que o príncipe a desejasse. Mas não que ele a amasse. — a rainha olhou para as próprias mãos e fagulhas douradas saíram da ponta de seus dedos. — Amor é a única coisa que a magia não faz.

O caçador parou por um momento. Não se lembrava da última vez que tinha visto aquela mulher tão infeliz. Ele já a tinha visto irada, enfurecida e excitada, mas nunca infeliz. Não daquele jeito. Ela era a própria visão da tristeza e o caçador não pôde evitar se sentir mal por ela.

— O príncipe espera que todos caíam no sono, e então vai até um quarto secreto no castelo. A chave fica no pescoço dele — ele fez uma careta e cruzou os braços. — E Cinderela vai precisar do outro pé do sapatinho para conseguir pegá-la.

Lilith sorriu.

— É claro. — ela virou de costas para ele e foi até uma prateleira negra, que ficava quase camuflada nas paredes da mesma cor. — Toda beleza é magia. — acrescentou, pegando o sapatinho de diamante e logo depois voltando para perto do caçador. Estendeu-o em sua direção. — Aconselho a você que fique por perto. Não posso garantir a segurança dela enquanto ela estiver os usando. — a rainha observou enquanto o caçador pegava os sapatinhos.

— Se importa se eu lhe fizer uma pergunta? — indagou.

Ela franziu as sobrancelhas e depois bufou.

— Se eu lhe dissesse que não, você iria fazê-la do mesmo jeito. Pergunte. — ela deu de ombros e então, com seu vestido azul-escuro arrastando-se pelo chão, ela voltou a se sentar no trono.

O caçador se deixou observá-la lentamente. A rainha era linda, etérea. Seus cabelos loiro-claríssimos estavam presos em um coque elegante, os olhos azuis eram frios e penetrantes, ela tinha um ar da realeza que parecia ter nascido com ela. O espartilho apertado delineava seus seios e sua cintura, e a cor escura ficava muito bem em sua pele clara.

Ela se parecia com uma feiticeira das águas.

— Tudo isso... Você ter se voluntariado para “ajudar” Cinderela a conseguir o que queria, ter sido a “fada madrinha dela”... Foi só para que ela entrasse no castelo e pudesse procurar Branca de Neve para você, não é? — ele perguntou. — Só para ver se o príncipe a mantêm lá.

Lilith ficou tensa.

— Eu não entendo o que isso tem a ver com você, caçador. — retorquiu, mal-humorada. Um trovão soou lá fora e aquilo deixou bem óbvio que a rainha não tinha gostado nem um pouco de ele ter feito a pergunta. E também deixou bem óbvio a sua resposta.

O caçador saiu de perto da parede e foi para perto da rainha. Parou em frente ao seu trono, a encarando sem medo algum. Não iria afrontá-la, queria apenas entendê-la. Ela era mais complicada do que qualquer outra mulher que ele já tinha conhecido. Ela era um enigma e seria fascinante, se ele se interessasse por enigmas.

E por mulheres loiras e malvadas. No entanto, ele preferia as ruivas.

Principalmente as que o achavam irritante.

— Eu estou apenas tentando te entender... — ele fez uma pausa. — Você é confusa demais. Para quê quer achar Branca de Neve? Se ela estiver com o príncipe, sem dúvida estará naquele caixão de vidro. Ela ainda estará amaldiçoada e eu duvido que vá acordar. Um beijo do amor verdadeiro a tiraria da maldição, mas o príncipe não a ama. Não de verdade. — o caçador franziu a testa. — É como se ela estivesse morta. É perfeito para você. Porque quer achá-la? Quer trazê-la para o seu reino e poder se orgulhar todos os dias por conseguir ter feito o que queria?

A rainha fechou os punhos.

— Aquele príncipe mimado não a merece ter no mesmo castelo que ele. Ele não merece sequer olhá-la. — ela resmungou. — Eu não a traria aqui para me orgulhar. Eu não a queria morta.

O caçador riu.

— Você tem certeza? Porque não é bem o que me pareceu, no pouco tempo que eu passei aqui com vocês. — retorquiu. — Vejamos, primeiro, você quase a sufocou com espartilhos apertados. — ele ergueu um dedo. — Depois, você dá a ela um pente envenenado. Que, segundo você mesma diz, não sabia que estava envenenado. Enfim. — ele ergueu outro dedo. — Então, você me contratou para arrancar o coração dela...

— Coisa que teria facilitado tudo. Se você simplesmente tivesse me trazido o coração dela, nada disso estaria acontecendo! — ela esbravejou e mais alguns trovões soaram, seguidos de raios. O lugar pareceu ficar ainda mais frio. — Ao invés disso, você preferiu dormir com ela!

Ele sorriu desdenhoso.

— Então tudo isso foi porque eu dormi com ela? Ficou enciumada, majestade? Lamento lhe dizer, mas meu coração pertence a outra. — ele riu baixo.

Ela murmurou algo nada digno de uma rainha e então, de repente, seu rosto pareceu muito cansado. Seus olhos estavam tomados pela tristeza e ela parecia estar prestes a se quebrar. A bela rainha de gelo estava prestes a derreter.

Aquela visão o perturbou.

— Isso não tem nada a ver com você, nada. — ela respondeu, cansada. — Eu não queria Branca de Neve morta.

— Imagino. Talvez só a quisesse adormecida para sempre, não é mesmo? Foi por isso que pediu a sua bisa que desse a maçã para ela? Você não a queria morta, para não ter que viver com o peso da culpa, mas também não a queria por perto? — perguntou o caçador. Ainda não tinha conseguido entendê-la. Ali estava uma mulher cheia de conflitos e contradições. Dentro dela, havia coisas que sequer ela entendia. — Se é assim, porque não apenas a deixa lá com o príncipe mimado, digo, encantado?

Mais trovões soaram. Ela estava ficando irritada.

— Sabe... — ela o olhou fixamente. — Você não entendeu direito as minhas ordens, naquele dia. Eu não lhe disse que a queria morta. Disse que queria o coração dela.

O caçador se sentou no chão, cansado de tentar entendê-la. Pela última vez, perguntou:

— Porque quer tanto a trazer para cá?

A rainha fechou os olhos e escondeu o rosto nas mãos por breves instantes. A chuva se acalmou um pouco e o vento diminuiu.

— Aquele maldito príncipe não merece tê-la perto dele. E eu preciso vê-la. — ela levantou os olhos e eles brilhavam, como se ela estivesse a beira do choro. — Tenho que testar uma coisa.

— Vai tentar arrancar o coração dela de novo? — ele perguntou, tombando a cabeça.

A rainha suspirou. Estava exausta, irritada e esgotada emocionalmente. A última coisa da qual precisava era um caçador enxerido lhe enchendo de perguntas que ela não queria responder nem para si própria. Ela passou a mão pelos braços do trono e se empertigou, tentando se recompor. Era hora de enterrar os sentimentos bem fundos dentro de si e só liberá-los quando estivesse sozinha.

— Você tem apenas mais duas horas até se transformar em um rato de novo. — disse Lilith, com a voz firme. — Se quiser estar de volta para a sua Cinderela antes de isso acontecer, sugiro que parta logo daqui. — ela se levantou e o olhou de cima. — Entregue o sapatinho a ela. E assim que ela achar algo, me avise. Ou as coisas não vão terminar bem. Nem pra você, nem para ela.

O caçador se levantou.

Desistiu de tentar entendê-la e apenas assentiu, já lhe virando as costas. Ouviu-a suspirar de leve, mas não parou. Continuou andando. A maldita rainha de gelo tinha razão. Ele tinha que voltar logo para o reino e lá para as três da manhã ainda tinha que ajudar Cinderela com as buscas no castelo. Quanto antes estivesse de volta, melhor. E se continuasse conversando com a rainha, apenas perderia seu tempo.

Ouviu-a se sentar no trono novamente. Ia saindo pela porta, quando ela falou de novo.

— Você realmente nunca entendeu a minha ordem ou os meus motivos. — disse ela. Seu tom de voz era baixo, mas o suficiente para que ele escutasse. Ela sabia daquilo.

Ele não se virou para trás. Continuou andando, mas mais devagar.

— Eu nunca quis Branca de Neve morta. — a rainha continuou.

Novamente, ele a ignorou. Ele tinha desistido e aquilo já não era mais problema dele. A rainha que lidasse com suas crises existenciais, ele já estava farto daquilo. Só lhe rendera uma excruciante dor de cabeça.

Uma coisa ele tinha aprendido, não devia se meter com rainhas de gelo ou princesas belas e selvagens. Não iria acabar bem.

A rainha respirou fundo, sabendo que ele ainda a estava ouvindo.

— Eu nunca a quis morta. — repetiu, com mais firmeza e clareza. — Eu só queria o coração dela.

O caçador parou, congelado no lugar. Ficou absorvendo as palavras da rainha, repetindo-as em sua mente.

Eu só queria o coração dela.

E então, finalmente, o caçador entendeu.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.