Gasoline

I'm lookin' at myself again


I'm starin' into the abyss

Aconteceu pela primeira vez numa noite parecida com aquela, embora num cenário completamente diferente. Passara a noite toda treinando, tentando sentir as batidas normais de seu próprio coração, tentando lembrar a si mesmo que o Soldado Invernal não se preocupava com coisas mundanas desse tipo - sequer pensava em tentar controlar qualquer um de seus impulsos, pois todos eles eram meticulosamente planejados pela HYDRA.

Por toda a semana, podia sentir como Ele se esgueirava pelos recantos de sua mente, tentando entrar, tentando manipulá-lo e afastá-lo dos demais, como realmente deveria. Não podia continuar prolongando sua estadia, quando sequer confiava em si mesmo. Os habitantes de Wakanda eram hospitaleiros, mas estava habituado à solidão, ao silêncio, como fizera em Bucareste. Pela primeira vez, tinha alguma liberdade e a sensação era melhor do que qualquer coisa que pudessem fazer por ele.

Ali, no entanto, não havia liberdade completa, mas acolhimento e, principalmente, um tratamento que acabava de chegar ao fim. Estava livre dos efeitos dos gatilhos de Zemo, mas não das lembranças, do horror e do desespero daqueles que, um dia, o olharam nos olhos em completo pânico, conscientes de que suas vidas chegavam ao fim; mas também de si mesmo. Agora, era como se fosse capaz de sentir toda a fria sujeira feita por suas próprias mãos. Havia noites em que acordava de seus pesadelos com a impressão de que sangue, quente, vermelho e vivo, escorria de seus dedos, ultrapassando o travesseiro para escorrer pesado até o chão.

No espelho do banheiro da sala de treinamentos, via muito mais as feições do Soldado do que de James. As olheiras das noites mal dormidas assombravam seu rosto de cabelos compridos e barba mal feita e mesmo os banhos frios que tomava, buscando relaxar - como Shuri havia mandado fazer -, não funcionavam mais. O estopim fora quando se pegara encarando o pescoço da princesa, pensando como seria fácil fazer os batimentos cardíacos pararem sob dedos pesados de metal.

Num impulso, tentou apagar o Soldado do espelho ao menos, quebrando-o em milhares de pedaços com um soco que deixou sua mão ferida, os cacos de vidro cortando fundo a pele, fincando sem piedade. Não se importava com a dor, ajudava a dar perspectiva e fazê-lo se concentrar, mas a respiração continuava ofegante e sem ritmo. Ignorando a coloração vermelha dos nós de seus dedos, voltou a pressionar o peito, novamente tateando as batidas do próprio coração. Os exames diziam estar tudo certo, mas nada parecia no lugar quando aquela pressão se instalava entre seus ossos, o impedindo de, simplesmente, ser quem realmente era. O Soldado era cruel naquelas pequenas coisas.

Foi quando ouviu, em puro reflexo fabricado, a porta ser fechada com discrição e os passos suaves se aproximarem. Reagiu também da única forma como sabia, instintivamente. Seus dedos voaram ao pescoço de quem se aproximava sorrateiramente, já próxima o bastante para alcançá-lo com o braço estendido, e a empurrou para a parede de um dos boxes, prensando-a meramente com o peso de seu braço.

Então, ele examinou o rosto, registrando primeiro os cabelos ruivos compridos, depois as feições surpresas pela recepção. Estreitando os olhos, no entanto, estranhou a falta de medo de verdade nas expressões bem marcadas da garota. Vendo-a ofegar mas evitando se mover, como que para não assustá-lo, sentiu o líquido correr mais rápido sob a pele quente, os dedos sujos de sangue e vidro manchando o colo alvo e limpo.

— Eu… - Ela tentou sussurrar, mesmo sob o aperto. - Posso sentir você.

I'm lookin' at myself again