Alison,

Como se não bastasse a realidade eu tenho tido alguns sonhos perturbadores, refletores de minha vida. Eu nunca dormi bem mesmo, sempre tive aquelas dificuldades, mas agora forças mais fortes me fazem querer ficar acordada. Quando os olhos pesam, e a visão fica turva e eu já começo a não me sentir mais em minha própria mente, eu adormeço. Sono bom. Bom por um tempo que eu nunca vou saber cronometrar, mas que, impressionantemente, acontece.

Sono bom que é interrompido por uma coisa que marca minha lembrança mais do que tudo. Sonhos são confusos, você nunca se lembra deles inteiros, as faces são distorcidas, as falas são sem sentido, fica tudo como se fosse num passado bem distante, numa outra vida. Sono bom, sonho ruim. Pesadelo.

O carro se aproxima de forma rápida e um milésimo antes da batida ele para, sou capaz de ver tudo, a expressão confusa de Lucas, a cor do carro, os faróis, as árvores, acho que até mesmo posso sentir o vento soprar. E aí o carro volta a se movimentar e quando ele finalmente atinge o corpo já não é mais Lucas, é você.

Sua pele pálida ganha cor de sangue, meus gritos não saem e segundos depois você de despedaça como vidro. Vidro grudento, que corta, machuca. São lembranças vagas quando penso nisso, mesmo que o sonho-pesadelo tenha acontecido essa noite, mas só de tentar forçar a memória eu sinto um arrepio que vem desde a sola do meu pé até o meu ultimo fio de cabelo, que me acende e me faz fechar os olhos, que me dá medo.

Os cacos de vidro rapidamente se unem, e formam alguém que eu nunca queria ter encarado. Formam-se eu mesma. Eu, Lúcia, que nessa metamorfose de gente nos sonhos não sou capaz de fazer nada, só assistir a destruição. Eu vejo todo o meu cabelo castanho, meus olhos da mesma cor, vejo meu corpo pequeno, e sempre carrego aquela expressão vazia, pensava eu que me conhecia bem o suficiente, mas só de olhar para mim mesma naquele sonho-pesadelo percebo que já descobri coisas novas. Sou um arremedo de mim própria. E aquela Lúcia feita de cacos me encara de um jeito como se quisesse me matar, e talvez eu queira mesmo fazer isso, lembro das duas Lúcias se encarando e já não sei com qual mais eu me identifico. Acho que talvez não seja com nenhuma, talvez eu nem tenha um nome, ou corpo, personalidade, talvez eu não exista.

A Lúcia feita de cacos não vive por muito tempo, uma linha enorme de carros idênticos começam a tritura-la. E os cacos ficam mais feios, e mais cortantes, e mais pegajosos, e o arrepio sempre corre por mim, no sonho-pesadelo e em minha doce realidade. E os cacos não esperam, formam novamente um Lucas, que é esmagado, uma Alison e uma Lúcia, de forma continua e assustadora, perturbadora e feia. Tudo tem ficado feio demais, a morte é feia, me perdoe por dizer. Mas é a verdade, tudo isso é encardido, sujo, feio, mal-amado, mal encarado, tudo. Os cacos formam e se desformam, e chega um ponto em que eu desejo que eles morram. Meu medo por aquelas coisas é tão grande que eu sou capaz de desejar que eu mesma morra, de forma verdadeira, eu quero tanto acabar com aquele ciclo de morte que penso que a morte verdadeira pode ser melhor que isso.

Os cacos espirram em mim, Alison. Não no sonho-pesadelo, esqueça ele, os cacos estão espirrando em mim agora, seus cacos, cacos de Lucas, meus cacos, cacos do passado. Tudo é refletivo e feio, me fazem mais feia do que já estou e me imploram para eu perder de vez a minha sanidade, mas eu não vou, claro que não, preciso estar bem acordada agora, não posso dormir, não, não, não, não quero que mandem para lugar que seja mais longe ainda de você, onde quer que você esteja. Os cacos me apunhalam pelas costas, são covardes, gostam de assustar pessoas que já estão assustadas. Os cacos tem olhos grandes, pretos igual besouros e tem patas ásperas que enlouquecem. Mas não vou me deixar enlouquecer, não hoje, não sem você.

Esse sonho me faz pensar, por ventura, se já não estou louca. Mas ainda existe um fio, se você quer saber, existe uma coisa que me faz ficar conectada com algo desse mundo, uma coisa pequena, que está longe, mas que minha mente teima em acreditar que existe. Você. Sim, Alison, você! A pessoa pra quem escrevo essas cartas que na verdade não tem destino nenhum, a pessoa que me tirou da monotomia para depois me entregar de cara novamente a ela, a pessoa que carrega consigo o rosto mais bonito, e que tem uma alma de camaleão. A pessoa que eu queria que fosse minha. Você é o meu fio, sempre que penso em desistir de tudo (mesmo que eu não tenha quase nada), eu penso em você, penso que talvez o destino tenha um plano de nos unir novamente, que eu possa te encontrar por acaso, que talvez você pense em mim também. Penso que te amo muito, de forma incontrolada e destrutiva, e que necessito desse amor, e para consegui-lo preciso estar viva e bem acordada. Penso que quero muito te encontrar, mais do que tudo nessa vida, e isso não vai ser possível se eu estiver louca ou morta.

Eu tenho muito medo, medo de continuar tendo esses sonhos e medo de não te encontrar nunca mais. Tenho medo de que você tenha fugido de mim porque me odeia. Eu não consigo conviver mais com a presença da ausência do seu amor, eu preciso de você, Alison, penso em você a cada minuto para tentar suprir a necessidade, porém não adianta de muita coisa, eu quero te tocar, quero falar com você, te abraçar, te beijar, dizer que eu te amo. Ouça-me, volte. Eu só sou mesmo um caco, estou me esfarelando, comendo pelas bordas como um bicho louco parasita, tem dias que nem lembro que eu existo, as lágrimas já se esgotaram, estou louca de medo, e isso me assusta cada vez mais.

Com saudades, dúvidas, confusão, leveza, mais saudades, felicidades, amor, descobertas, dor, desespero, tentativas, muitas saudades, promessas, arrependimento, marcas e medo,

Lúcia.