Gargamanto — Interativa

Maywood, 24 de Julho de 2016


É uma coincidência surpreendente e uma brincadeira de mau gosto do destino que não façam nem dois minutos desde o momento em que Ravic guardou o último dos relatórios na gaveta de sua escrivaninha quando Aimée Stewart entra em desespero pela porta de seu quarto, sem nem se preocupar em bater. Ela tem os olhos assustados, e os lábios trêmulos, e a forma como tudo na postura dela grita “perigo” faz com que Ravic entre imediatamente em estado de alerta.

Aimée, em geral, é uma garota tranquila. Pé firme e racional, talvez pela forma como foi criada pelo pai, são raras as situações em que perde a calma. Ravic nunca teve qualquer tipo de problema com ela, não que consiga lembrar — e considerando o caos que a vida dele se tornou desde a Colisão e o desaparecimento dos pais, isso é um feito surpreendente.

— O que aconteceu? — ele pergunta, sem ao menos perceber a forma como inconscientemente desliza para a postura de seu alter-ego, Gavião.

Aimée, já acostumada com a convivência entre heróis, nem se dá conta do fato.

— É o Bastian. — ela diz, e por um segundo Ravic poderia jurar que seu coração parou de bater. — Ele está em apuros.

[São exatos três minutos e vinte e oito segundos desde o momento em que Aimée entra pela porta do quarto, até momento em que Ravic, com o auxílio de Raio Azul e Aquário, sai do esconderijo de Maywood em direção à Nova Iorque.]

Há um colibri escondido na caixa torácica de Dylan, ocupando o espaço onde deveria estar o coração, e nada pode convencê-lo do contrário. Não fosse pelo fato de confiar em Ravic — e ele confia em Ravic, ele realmente o faz —, ele sabe que teria deixado tudo para trás no momento em que as palavras “Outros” e “Bastian” deixaram os lábios de Aimée.

Não é que ele seja super protetor, ou mesmo impulsivo — ele não é, não de verdade. O que acontece é que Bastian tem o péssimo hábito de se meter em confusão, e, honestamente, Dylan deveria saber, deveria ter previsto que algo assim aconteceria; faz semanas desde a última vez em que o irmão recebeu uma missão oficial, entregue a ele pela própria Oblivion, e Bastian tende a ficar agitado quando sente que poderia estar fazendo algo mais produtivo — o que é quase sempre.

Se ao menos Bastian o tivesse alertado. Se tivesse avisado, se tivesse dito o que pretendia fazer… Apesar de entender o lado dele — a probabilidade de conseguir deixar o posto em Maywood diminuiria de forma diretamente proporcional ao número de pessoas que ficassem sabendo —, Dylan não consegue deixar de se frustrar. Foi ainda por um acaso que Aimée — Aimée, que não tem poderes, que não tem um anel mágico ou habilidades especiais, e nem mesmo pode ser considerada uma lutadora acima da média — acabou descobrindo sobre a localização de Bastian por meio de câmeras hackeadas próximas a um supermercado na área do Limbo, e então imediatamente reportou a situação à Ravic.

Dylan vai ter que agradecê-la. Em algum momento. Preferencialmente após arrastar Bastian de volta para Maywood, ou o mais distante dos Outros que Dylan puder — o que vier primeiro. Mas agora, se os únicos pensamentos que ocupam a mente dele são sobre manter o irmão a salvo — bem. Ninguém pode exatamente culpá-lo por isso.

[Droga, Beastie. No que você foi se meter agora?]

Ela não é forte como Oblivion, rápida como Dylan, ou mesmo determinada como Aquário. Não tem o pensamento rápido de Bastian, a concentração de Ravic, e não chegaria aos pés de heróis como o Faraó e Xamã. São habilidades que estão completamente fora de sua liga, sua área de alcance, e Aimée acreditava estar conformada com sua realidade — mas, ainda assim…

As mãos dela tremem sobre as teclas cinzentas do teclado. No fim, é tudo que Aimée pode fazer: observar. Observar, rezar, e torcer para que, no fim, tudo dê certo.

[Na tela do computador, a figura de Bastian se encolhe um pouco mais, tentando se fazer imperceptível, e o coração de Aimée parece pesar mil toneladas dentro do peito. Ela nunca se sentiu tão impotente, tão incapaz de ajudar alguém, em toda sua vida.]

É por acaso — acaso, e talvez algumas rosquinhas estocadas em um freezer na cozinha — que Kyle ainda está acordado quando Anastasia Banner atravessa a sala a passos apressados, falando em tom urgente com um telefone na mão. A garota está agitada, recolhendo itens rapidamente enquanto discute com quem quer que esteja do outro lado da linha, e distraída o bastante para não perceber que Kyle a está observando.

Kyle não é bisbilhoteiro — não costuma ser, pelo menos —, mas não há maneira alguma, em universo, mundo algum, que ele deixaria uma garota tão bela quanto Anastasia lidar com um problema sozinha — não quando é provável que ele possa ajudá-la, de qualquer maneira.

Agora, não o leve a mal, Kyle não é arrogante — ou talvez ele seja, mas só um pouquinho —, e não é como se acreditasse que Anastasia não consegue lutar; ele sabe que a garota é mais do que capaz de se defender sozinha. O verdadeiro problema está no fato de que, com todo o caos que vem acontecendo, heróis desaparecendo a torto e a direito, é praticamente suicídio sair por aí desacompanhado, e, a despeito de todas as possíveis falhas de caráter que possa ter, Kyle é forte. Possivelmente um dos mais fortes do grupo, junto com Lorride, Nashira e talvez o garoto do espaço — Kyle não saberia dizer porque não o conhece, mas Chandrasekhar se tornou bastante popular entre os heróis desde que o pai, Star Lord¹, ficou sabendo da Crise e resolveu voltar ao planeta natal para ajudar. Não que qualquer uma dessas informações tenha qualquer relevância.

— Hey, Anya — Kyle a chama, e se há um quê de flerte em sua voz, Anastasia já o conhece há tempo o suficiente para ignorar se a situação for problemática o suficiente, ou entrar na brincadeira se estiver no clima (não que Kyle esteja brincando; ele só tem uma péssima sorte no amor, e uma reputação um tanto quanto… Bem. Os detalhes não importam.)

— Agora não, Kyle.

É o tom de Anya, muito mais do que sua linguagem corporal, que faz com que Kyle perceba que, o que quer que seja, provavelmente é mais do que problemático. E só há uma pessoa que pode fazer com que o lado descontraído, divertido e gentil de Anya seja colocado de lado em favor da heroína Fortalesa.

— Aconteceu alguma coisa com a Tessa?

Anastasia confia em Kyle. O garoto Maximoff pode ser um pouco infantil de vez em quando, mas ela sabe diferenciar pessoas bem intencionadas daquelas que procuram vantagem, e não há um osso malicioso no corpo de Kyle — não nesse sentido. Talvez por isso seja fácil confiar nele, aceitar o ar brincalhão e os sorrisos de lado, a facilidade com que Kyle inicia uma conversa e tenta bancar o herói; ainda mais em tempos tão difíceis, onde sua fé é uma das poucas coisas que Anya ainda mantém.

Faz quase duas semanas desde a última vez que algum dos Vingadores contatou o Posto — e Tessa provavelmente só estava tentando ajudar, tentando sair da concha como Anya vem tentando convencê-la a fazer há tempos, mas Anya daria tudo para voltar no tempo e impedi-la de sair. Apesar de relativamente segura sob a proteção do Homem-Aranha, Nova Iorque é uma cidade estranha, perigosa, um risco que Anya não está disposta a tomar quando se trata das pessoas com quem se importa, seus amigos, e, em especial, Tessa — Tessa, que é tão frágil, tão insegura, que parece poder quebrar ao menor dos toques.

Talvez seja isso que a incentive a aceitar a decisão impulsiva de voltar-se para Kyle e, com a expressão mais controlada que pode, dizer:

— Sim. Preciso de sua ajuda. Em quanto tempo você acha que poderia encontrar Chandrasekhar para mim?

A resposta de Kyle é um sorriso esguio que, assim como ele, desaparece em um borrão azulado num piscar de olhos.

[Um pouco a mais de precaução nunca matou ninguém.]

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.