O crepúsculo partira havia horas, portanto as planícies ao redor da propriedade encontravam-se em plena escuridão. Dentro dos chalés e galpões, alguns lampiões quebravam a noite com pequenos focos alaranjados, mas estes eram cada vez menores. As fábulas costumavam dormir cedo e acordar mais cedo ainda na Fazenda

A Rosa Vermelha pertencente à Woodland vivera uma vida libertina, trocando o dia pela noite e praticando golpes, empolgantes e perigosos, com João das Lorotas. Hoje nem se parecia com a garota daqueles tempos. Aquela comunidade estava em sua responsabilidade, e responsabilidade era algo que não fazia parte da irmã mais nova de Branca de Neve... há até pouco tempo.

Ao lado de Rosa, Reynard, a raposa, lhe servia de companhia em sua vigília diante da porteira. Estavam sentados sobre um tronco morto e ressequido, discutindo o então fato misterioso que era o motivo da visita da vice-prefeita. Não havia ninguém mais confiável que a raposa, um fiel resistente da Revolução dos Bichos*, de forma que a moça ruiva o selecionara para ser seu secretário na Fazenda. E confidente também.

Rosa estava prestes a acender um cigarro quando duas esferas de luzes despontaram do fim da estrada. Os faróis do veículo cresceram mais, flutuando em direção à porteira. Rosa deu um pulo de onde estava sentada, guardou novamente o cigarro no bolso e foi abrir a passagem para os visitantes noturnos.

A típica caminhonete vermelha que a prefeitura dispunha para chegar até a Fazenda, reduziu a velocidade e entrou. O automóvel estacionou deslizando nos cascalhos e desligou o motor.

— Olá irmãzinha! — exclamou Rosa observando Branca de Neve sair do banco do passageiro e fechar a porta.

— Oi, Rosa. — disse ela monocordiamente. Exibia um semblante vincado de preocupação, embora isso jamais abalasse sua beleza real.

— Rosa. — cumprimentou o motorista abandonando seu posto. Era o Lorde Fera.

— E aí, Fera? — perguntou, e antes que ele pudesse responder Branca ordenou:

— Lorde Fera, vou conversar com minha irmã. Se incomoda em esperar no carro?

— Eu... — ele coçou o queixo, pensativo.

— Reynard, leve nosso visitante para minha casa. Sobraram muitos bolinhos de limão do nosso café. Acomode-o e sirva-o.

Reynard concordou e o motorista pareceu satisfeito por não ter de ficar esperando lá fora, na pacata e entediante noite. Uma vez sozinhas as irmãs puderem conversar abertamente:

— Ele tá sabendo do motivo de ter vindo? — Rosa questionou.

— Não, dei um pretexto qualquer. Obrigada por despachá-lo. Lorde Fera não é tão burro quanto aparenta.

— Tudo bem, Reynard é tão raposa quanto aparenta. Será uma boa companhia enquanto investigamos. Estão escondendo o fato de quem? O seu marido?

— Sim, é do seu ex-amante. — revidou Branca. — E também uma ordem de Bigby.

A paz fora selada entre elas há mais de um ano, mas certas manias e provocações não se iam tão facilmente. Rosa ergueu o lampião na mão direita e começaram a caminhar entre os pátios desertos da Fazenda. Enquanto andavam, algumas fábulas apareceram na janela de suas casas, porém as duas prosseguiram entre as sombras, sem interrupções.

— Onde está isso?

Perguntou Branca, impaciente, após vários minutos de caminhada e um distanciamento considerável das principais ruas.

— Calma, Branquinha. Eu já vou te mostrar. Quem descobriu foi o bode Billy Goats Gruff. Chamou seu amigo para um passeio vespertino e se deparou com algo interessante...

Rosa entrou numa ruela barrenta, em que a maioria dos galpões estavam desocupados. Todos, exceto um. O último. Jogou o facho de luz na direção da entrada e um jardim bem podado acompanhado da fachada impecavelmente pintada evidenciou-se. Das janelas somente a penumbra as cumprimentava.

— É aqui? — murmurou Branca.

Rosa não respondeu. No lugar disso, abriu a porta corrediça suavemente para elas poderem entrar. O recinto foi parcialmente iluminado. Uma cama de palha nova, móveis de madeira polidos e roupas dobradas caprichosamente foi o que seus olhos alcançaram. O lugar cheirava a produtos de limpeza. Nada de teias de aranha, poeira ou desordem. Era assim que ele vivia. Trabalhava sem cessar para perfeição.

— Tá legal. Você vai me deixar fazendo perguntas até quando? Que lugar é esse?

— Venha. — Rosa não lhe respondeu novamente, percebendo estar irritando a irmã. Mas ela se divertia nesse negócio de suspense! E de irritar Branca.

Pediu para Branca segurar a luz enquanto movia uma arca aos pés da cama de palha. O móvel era pesado e Rosa magra, mas seus braços esguios, porém musculosos, trabalharam sem esforço para removê-lo. Ao terminar, um buraco negro, do tamanho de um pneu de carro, revelou-se.

— Uma passagem? — arriscou Branca se detendo na borda do buraco e esticando o braço do lampião em direção ao desconhecido. Não era possível enxergar nada além.

— Uma passagem. — concordou a ruiva.

— Quem achou isso? O bode? Como?

— É como eu disse, Billy veio chamar o amigo, só que no lugar dele encontrou essa arca empurrada e esse fosso totalmente fora dos padrões arquitetônicos da Fazenda.

Branca ignorou a piadinha, tão sisuda que parecia ter um cabo de vassoura atravessado entre as pernas.

— Não sabia desse buraco?

— Nem eu nem Reynard, que já está aqui há muito mais tempo.

— Para onde isso deve dar...?

— Eu fui verificar, aparentemente lugar nenhum.

— Você verificou? Como foi agindo assim sem minha autorização?

— Ei, eu sou a chefa desse lugar! Não preciso da sua autorização pra me locomover aqui, irmãzinha. Bigby não detém nenhuma jurisdição no meu pedaço. Não pode nem vir até aqui.

— Chega de gracinhas, Rosa. Porque ligou para mim? De quem é esse abrigo?

— Aí está uma pergunta verdadeiramente proveitosa! Essa é a residência do Formiga. Tive uma intuição que isso poderia ter a ver com a Cigarra.

— Quero interrogar o Formiga!

— Pois então, Billy não o encontrou.