Fábulas de Sangue

Chapeleiro Maluco


Uma vez, há muito tempo, aquela taverna era alegre e festiva. Quem entrava bebia até cair e ria até a barriga doer. Havia bardos usando de seus alaúdes e de suas vozes aveludadas para criar canções animadas e canções de fazer chorar. Os amigos surgiam para uma conversa trivial diante do balcão de carvalho. Numa noite de sorte, uma graciosa dama poderia entrar e flertar com um cavalheiro interessante como o Chapeleiro Maluco.

Depois que o Adversário varreu suas terras com fogo e chacinou dezenas de seus amigos e amores, não sobrara conversa boa. A música morreu junto com seus compositores. E as tavernas, todas elas, eram obscuras, cheirando a morte e perigo.

Ele só permanecia naquela terra desolada, tomada por bestas abissais, porque não conhecia os portais para sair dali.

Rezava a lenda, que na terra dos mundanos, onde uma pequena parcela das fábulas exiladas conseguiu se instalar, elas se adaptaram criando uma comunidade vivível. Nessa sociedade, inclusive, e isso o Chapeleiro achou o auge da falácia, o Lobo Mau era o homem da lei.

Seja como fosse, o pequeno homem de cartola grande e esfarrapada tinha esperança de nunca mais precisar estar naquelas tavernas.

Bebericou sua bebida de ervas, sentindo-se zonzo. O taverneiro, um sujeito desdentado e feroz, que assassinara o antigo proprietário para tomar seu lugar, enfiava o dedo no nariz e passava-o no mesmo pano que usava para enxugar os copos.

Adorável. Gostaria de ter seu fiel companheiro, o Coelho, ali, lhe fazendo rir ao contar qualquer piadinha indecente sobre aquele homem asqueroso. Nunca mais teria o Coelho. O Adversário matara esse amigo.

A porta do estabelecimento abriu-se num rangido. O Chapeleiro empertigou-se em seu banco, eufórico e ressabiado. Uma figura esguia, de longa capa preta e capuz largo, adentrou sem fazer ruídos com os seus passos. Aproximou-se do balcão e fez um sinal ao taverneiro. O homem pareceu temeroso ao simples aceno. Então a figura virou-se e foi para sua direção.

Era seu contato.

— Posso me sentar? — perguntou, indicando o banco vago ao lado dele. Percebeu que tinha voz de mulher.

— Deve. — o pequeno homem mexeu nervosamente na aba de sua cartola.

— Trouxe o acordado? — perguntou ela através do capuz. Ele não podia ver seu rosto. Além de fétido e suspeito, aquele estabelecimento ficara horrendamente escuro.

— Obviamente. — com os dedos trêmulos, o Chapeleiro pegou o saquinho de couro preso ao cinto e passou para ela. Viu dedos longos numa luva azul pegando-o em cima do balcão.

Tinha algo familiar naquela fábula.

— Está tudo certinho. — disse com dignidade enquanto a outra soltava o laço e abria para conferir o conteúdo. — Agora quero a minha parte. — disse insolentemente.

Era uma mulher. Só uma mulher. Uma mulher não iria assustá-lo. Podia ver claramente através da capa como seu corpo era pequeno e delicado.

Queria mais que tudo sua parte no acordo. Ele lhe entregava aquilo e agora a contraparte teria de lhe enviar para o portal de saída daquela terra maldita! Chega de incêndios, de ameaças, de sangue... Queria conferir com seus próprios olhos se o sarnento Lobo Mau era xerife de qualquer coisa.

— Aprovamos seu empenho.

— Tá, e o portal? — Chapeleiro revirou os olhos.

— Existem muitos portais. — a voz lhe soou inegavelmente conhecida agora. Nem parecia mais de mulher. Era uma voz de garota.

— Escute aqui: tá tentando me ameaçar, coisinha? — vociferou o pequeno homem na sua cartola. Mirou seus olhos verdes, injetados pelo mercúrio, para a escuridão daquele capuz, atropelando as palavras e lançando perdigotos. — Vou te falar quem vai ameaçar quem, mulher estúpida! Coloquei uma magia nesse dedal de merda, se tentar me sacanear te sacaneio em dobro. Me leve para a porra do portal!

— É como disse, Sr. Chapeleiro. Como combinamos. Levarei o senhor para o portal.

— Assim está melhor. — ele relaxou na cadeira vendo que sua intimidação tinha surtido efeito na garota.

— Quer ir já?

— Imediatamente.

— Como queria. — ela levantou suavemente, farfalhando sua capa com elegância, e arrancou um punhal de lâmina prateada, muito brilhante, de dentro da veste.

O Chapeleiro Maluco só teve tempo de arregalar os olhos. Não chegou a gritar, nem conseguiu se esquivar. As estocadas em seu estômago vieram repentinas e potentes. Mergulhando-o por dentro sem piedade.

— Vadia... — tentou berrar. O que saiu foi um patético grunhido enquanto se debatia em dor.

Ela continuou perfurando.

— Aqui está seu portal de morte. — disse assombrosamente.

O homenzinho caiu no chão, para de trás de seu banco, nocauteado e rodeado num mar crescente de vermelhidão. Sua agressora finalmente parou, limpando o punhal na calça dele e ocultando de volta no tecido negro.

— Porque...? — arquejou o moribundo.

— Porque não? — ouviu-a dizendo quase sapeca. Neste instante, seu último instante, teve um lampejo e descobriu de quem era aquela voz, aquele corpo e aquela raiva. — Só acho curioso — ela tocava no saquinho de couro — porque não sinto magia nenhuma aqui.

Ele ainda respirava quando ela agachou-se sobre seu corpo e pegou algo em sua cartola. Era sua carta que ficava presa por uma fita.

— Bon voyage. — desejou de modo agourento, erguendo-se e partindo. Sumindo de seu campo cada vez mais limitado de visão.

— A... Alice... — foi o que o Chapeleiro grunhiu. Então morreu.