Fábula das Vozes

Trutas Montanhescas


Capítulo 6 - Trutas Montanhescas


Terminou de engolir o naco de carne que tinha na boca antes de tomar fôlego para falar.

— Sua casa tem uma esquina? Isso é estranho.

Ainda não tinha entendido o grau de parentesco do casal daquela casa com Ralof, mas eram gentis. Serviram-na com alimentos quentinhos, novas roupas - dessa vez mais próximas do seu tamanho - e um tanto de preocupação maternal que a deixou sentimental de novo.

— Quer ver o que tem por lá, querida?

E então acompanhou a mulher, ouvindo pouco das muitas palavras que ela dizia. Estava em um confortável estágio letárgico, absorvendo quase nada das palavras ditas. As frases logo se tornaram um zumbido, e só foi notar que estava sonolenta daquela maneira quando Ralof deu um tapa na sua nuca.

— Auch! — Encolheu-se mais com o susto do que com dor de verdade e, quando notou da onde veio o ataque, olhou de cara feia para o nórdico. — Você consegue ser mais incômodo do que dor de barriga!

— Vá dormir, garota. Você precisa de um bom descanso.

Obedeceu-o sem questionar, talvez pela primeira vez desde que o tinha visto - e olha que Ralof era cheio de ordens. Encaminhou-se para a cama destinada a ela, ajeitou o cobertor de pele para que pudesse abraçá-lo - estava acostumada a dormir com seus bonecos de pano - e estava dormindo em questão de poucos segundos.

Passou diversos dias se recuperando mentalmente em Riverwood. Agora que estava em um lugar mais seguro, sem risco de vida iminente, vivenciou o luto corretamente. Acordou chorando ao lembrar-se da família perdida, e foi dormir fazendo o mesmo por quase uma semana. Quando Ralof soube mais sobre o que ela tinha acabado de passar, começou a tratá-la com um pouco mais de gentileza. Não muita, mas as vezes trazia um cobertor a mais durante a noite, ou separava o melhor pedaço de carne da refeição para ela. Comia bastante para passar o tempo. Doces, em sua maioria. O vício nos sweetrolls estava deixando-a mais cheinha, e pouco se importava com isso.

No tempo passado no vilarejo, recebeu diversas lições com o machado. Sabia cortar lenha, no geral, pois nunca vira muita necessidade em outas utilidades. Ralof ensinava-a a brandir corretamente e conseguir aparar investidas agressivas, como girá-lo na direção correta para desarmar o oponente e aos poucos iniciava as lições de ataque. Evoluiu do nível “posso machucar um idoso com problema de juntas” para “talvez eu consiga matar esse idoso maldito”.

E mesmo com essas lições, ainda sobrava tempo na sua vida. Ninguém exigia que fosse caçar ou tricotar para a própria sobrevivência. O fazia para ajudar, mas já havia pessoas para essas funções na cidade. Era uma forasteira.

— Tem certeza que você não é velho demais pra sair por aí na montanha atirando em animais? — Seguia o elfo da floresta de nome estranho, passos atrás o suficiente para fugir caso ele ficasse irritado. — E se um urso aparecer? Não vai conseguir correr sem ficar ofegante.

O som do suspiro de cansaço de Faendal foi bem audível, quase como se ele estivesse se esforçando para isso. Fora tal ruído, nada mais falou. Leaaha continuou seguindo ele, já acostumada com caminhadas em relevos montanhosos.

— Olha, um coelho. Consegue ver? Ali, óh. — Esticou o dedo para a frente, onde o roedor aventurava-se com alguma plantinha de nome desconhecido. Estava bem na cara, mas talvez ele tivesse a visão ruim típica dos idosos.

Quando questionara à Ralof porque deixavam um vovô caçar carne para alimentar o vilarejo, o nórdico ficara perdido. Teve que explicar com detalhes físicos a aparência do Bosmer, e o que recebeu do homem foi uma risada longa. “O cabelo branco dele é coisa de elfos, garota. Ele não é um vovô.” Como pouco convivera com aqueles seres de orelha pontuda, não sabia se era verdade. Fazia sentido, já que ele não andava curvado tampouco era cheio de rugas, mas Leaaha continuava desconfiada.

Foi só após dias e dias aturando as chatices da garota que Faendal finalmente permitiu que ela se unisse à ele durante uma das caças. Arrumou as luvas necessárias com o mesmo, prendeu os vastos e armados cachos com uma fita e colocou a bota mais confortável que tinha no seu novo estoque de roupas. Estava pronta.

— … e eu nunca sei como me aproximar dela, sabe? Camilla é sempre tão… Cheia de vida! Não tenho muito como disputar com ele. Entende?

Leaaha começava a se arrepender de ter insistido tanto naquilo. Não aguentava mais ouvir lamentos sobre a vida amorosa do pobre elfo, e pior ainda: ele queria conselhos. Dela. Com certeza era um usuário de skooma, não conseguia enxergar outra possibilidade.

— Hm, que tal… Um favo de mel? Isso amolece o coração de qualquer uma!

É claro que com a falta de experiência em relacionamentos amorosos, Leaaha iria chutar coisas que ela gostaria que fizessem. Faendal fez uma careta.

— Favo de mel? Isso meleca e é desagradável. Estava pensando em… Flores. Poesia.

— UGH, que terrível! O que ela vai fazer com esses dois? Pelo menos favo de mel é doce. OLHA SÓ, UMA TRUTA!

Faendal fitou Leaaha por breves segundos, o rosto tomado em uma espécie de remorso e decepção, mas deixou-a seguir a frente. Precisava admitir que poderia ter fingido enxergar um animal que morava nas montanhas e não um peixe, mas o calor do momento deixou-a nervosa. Toda vez que ele tentava tocar no assunto de novo, Leaaha inventava algum problema. “Acho que uma abelha entrou no meu ouvido, não consigo te ouvir”, “Namorar? Beijar? Hm… São termos élficos? Nunca ouvi sobre lá em Cyrodiil” e uma série de tossidas e gemidos de dor que eram, sinceramente, sua forma favorita de evitar assuntos desagradáveis. As vezes arrotava também. Tudo sobre controle.

Após uma consideração caminhada, iniciaram a parte divertida: arquearia. Leaaha trazia dois coelhos pendurados nas vestes e tinha conseguido recuperar quase todas as flechas feitas por Alvor. Estava competindo mentalmente com Faendal, mesmo que ele não soubesse disso.

Agachou-se atrás de uma pedra, tentando ficar equilibrada em um ponto estratégico. Mirava um faisão, os olhos semicerrados para focalizar a visão, a respiração controlada o máximo possível evitando qualquer erro na pontaria. Soltou a flecha e ouviu-a cortar o ar até atingir a carne da ave a sua frente.

Aproximou-se aos pulos, empurrou a vegetação em volta do animal abatido e fez uma careta de decepção.

— Aaaaaah. O que uma galinha tá fazendo aqui? Pufff. Sem graça. — Sentia-se tão foda por ter abatido um faisão para descobrir que era uma galinha gorda? Bom, ao menos teriam o que comer de qualquer maneira. Retirou a adaga do bolso e abaixou-se para cortar pedaços para enfiar na bolsa. Antes mesmo que pudesse encostar a lâmina nas penas, entretanto, ouviu o conhecido zumbido de uma flecha sendo disparada e pode vê-la se fincando na terra ao seu lado. Deu um salto no lugar e olhou pra trás, assustada.

— Mas que caralho??? — Tentou fazer sua cara mais braba na direção dele, que logo mudaria para uma zombação sobre ele ser um vovô cego de novo, mas Faendal colocou outra flecha no arco e apontou pra ela. Leaaha ficou paralisada, confusa com o que estava acontecendo, e só saiu do lugar quando viu ele soltar o exemplar no ar.

What the actual fuck??? Mergulho para o lado e conseguiu fugir de mais duas flechas antes de retirar em disparada pela floresta, saltando de pedra em pedra. O elfo seguia-a com ímpeto. Não sabia que piadas sobre idade eram tão ofensivas assim em Skyrim.

— MORRAAAAAAAAAA!

Ficou mais assustada ainda com a quantidade de raiva em sua voz e acelerou o passo. Será que tinha passado dos limites ao não querer ouvir as decepções de vida que ele acumulara? Por Talos, que loucura! Uma sorte estar com boas botas e ter equilíbrio considerável, caso contrário já teria virado espetinho.

Estava aproximando-se do vilarejo e sentindo-se mais tranquila com tal fato quando viu outra pessoa correndo em sua direção com raiva aparente. Era o… O concorrente amoroso de Faendal? O que suspirava por Camila também? Sven? Visualizou a própria o acompanhando, ambos com facas em mãos, e foi diminuindo o ritmo da corrida.

— G-gente? — Agora dava passos para trás, assustada.

— EU TEREI A SUA CABEÇA!!!

Queria dizer que conseguiu raciocinar o momento, resolver tudo em uma conversa normal sem conflitos físicos, mas no momento em que viu a velhota da tecelagem gritando aquelas palavras e brandindo uma adaga cega, correu. Pensou um breve “puta que pariu” e saiu correndo pro lado do rio. Que loucura era aquela? Inventaram algum boato sobre a mesma no período em que passou longe? Isso não justificava a atitude de Faendal. Seria uma praga? Magia?!?

O corpo estava quente devido a correria, e confiante de que tinha uma boa dianteira, arriscou olhar para trás. A visão de praticamente todos os cidadãos do vilarejo agrupados correndo atrás dela fez com que perdesse o passo, desacreditada.. Ralof. ATÉ RALOF?!? Quis voltar só para enfiar a cabeça dele dentro do lago e fazer ele morrer engasgado com um peixinho, mas antes que pudesse pensar no que fazer sentiu alguém puxando-a pelo braço.

— Em nome da província de Whiterun, eu ordeno que pare!

Não conseguia mais se mover, de qualquer maneira, então ficou apenas ali, tremendo, observando todos os camponeses do vilarejo repentinamente pararem a caçada cruel.

— Você cometeu um crime contra a sociedade de Skyrim. Deseja pagar pelos seus crimes, ou vir pacificamente para sua cela?

Abriu a boca e fechou-a várias vezes, confusa. Tentou repassar suas atitudes dos últimos dias, mas ao menos que comer pra caralho tenha se tornado um crime, não tinha ideia do que ele estava falando. O aperto em seu braço aumentou, fazendo crescer também a tensão que sentia.

— Responda, criminosa. Cinco moedas ou prisão?

Enfiou a mão na bolsa que levava pendurada ao lado do corpo, torcendo para ter guardado as moedas que ganhou de Ralof para comprar barras de ferro. Tremia o suficiente para fazer ruído com os metais se batendo e teve que segurar o riso diante o som. Contou-as entre os dedos e depositou na mão do guarda, ainda tremendo. Como em Oblivion ele tinha ido parar ali? Nunca vira um guarda pela região antes! Teria o ataque em Helgen atraído ele?

— Muito bem. Estaremos de olho.

Após a ameaça básica, soltou o braço de Leaaha, permaneceu no local por alguns segundos. Todos os loucos que a seguiam aos poucos foram dispersando, fazendo comentários sobre a situação. Ouviu diversas frases, mas captou bem o que tinha acontecido agora.

A… A galinha? Sério?

Como aquilo tinha acontecido? Como todos tomaram conhecimento do seu ato nas montanhas? Pior, por que ficaram tão… Tão… Tão putos? Era um costume de skyrim, juramentar alguém de morte tão facilmente assim? Abriu a boca, prestes a questioná-los, pensou duas vezes. Agora estava com medo de irritá-los, e decidiu passar os próximos dias de forma quieta e fora das atenções. Era mais seguro assim.



Por mais que quisesse aceitar que foram apenas estranhos costumes e crenças que não estava acostumada, precisava admitir que era um tanto ofensivo ter um amigo tentando te matar. Queria voltar a falar normal com Ralof, mas, bem… Estava magoada. Ele nem mesmo reparou isso, bruto como era, mas estava usando seu tempo por ali para treinar sua metalurgia, ao invés de machadadas.

Estava ao lado da forja, observando a maneira que Alvor mexia no fogo, quando os parentes de Ralof aproximaram-se e chamaram-na para conversar. Suspirou, já não gostando do tom, e desceu ao encontro deles.

— Leaaha… Antes de tudo, não fique ofendida, certo? — A voz dela era agradável, mas mesmo assim Lea já sentia que más notícias estavam chegando. — Tentamos convencer o Ralof, mas ele falou que está partindo ao encontro de Ulfric. Queríamos, bem… Alguém que pudesse falar com o Jarl. Sobre os dragões, sobre o ataque, sobre tudo. Precisamos de proteção.

E ela, é claro, era a única fora Ralof que tinha vivenciado o fato e estava ali. Engoliu em seco, imaginando ter que abandonar o seu novo estranho lar - mesmo que tentassem matá-la por causa de galinhas - e sentiu um aperto no peito.

— Não podem mandar um mensageiro, uma carta… Algo do tipo?

Mesmo tentando argumentar, já imaginava que iria perder. Sinceramente: sabia que aquilo era necessário. Tinha pensado nisso desde que chegara ali, mas temia perguntar e ser escolhida pro cargo.

— Precisamos que acreditem na gente, Leaaha. Sinto muito. É nossa melhor opção. Por favor, por favor, se se importa com a gente, faça isso.

E foi assim, com muita chantagem emocional e um apelo ao seu senso de moral e justiça, Leaaha foi despachada. Pode passar a noite por ali, mas pouco dormiu devido o nervosismo. Encheram-na de presentes e itens para a viagem no dia seguinte - até mesmo Faendal decidiu presenteá-la com um arco novo, polido. Queria sentir que aquilo era bondade no coração, mas enxergou de outra maneira. Estavam expulsando-a dali. Não iria voltar. Eram presentes de despedida, não ajudas para a viagem que duraria um dia.

Suspirou, tentou não chorar e partiu.



Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.