Fugitivo

Parte Dois - Voo Solo


Fugitivo

Parte Dois – Voo Solo

Tadashi Hamada

Eu devia ter me lembrado do conselho que minha mãe me deu, quando ainda estava viva: “Tadashi, não brinque com fogo”. Na época eu prometi que nunca faria isso.

Mas veja só, lá estava eu, no meio de um incêndio.

Eu procurava por Calaghan. Era por isso que eu tinha entrado. Não devia ter feito isso – não depois do Hiro me lançar aquele olhar suplicante de gatinho abandonado. Eu deveria ter atendido ao seu pedido silencioso. Eu devia ter relaxado ao toque da sua mão, e não devia ter saído correndo. Mas agora que eu estava lá, tentaria salvar ao menos...

Uma explosão cortou meu pensamento. Fui lançado fortemente para trás, bati numa parede. Tudo em mim queimava, tudo em mim doía. Não conseguia pensar em nada sem sentir ondas de dor me corroendo.

Isso durou só alguns segundos – na hora eu não sabia dizer se isso era bom ou ruim – e então eu apaguei.

Depois de um tempo – não sei quanto – eu voltei à consciência. O prédio estava completamente destruído, carbonizado e caindo aos pedaços.

“Como eu sobrevivi?”, me perguntei. Olhei para o chão e vi um objeto escuro e deformado, ligeiramente humanoide. De repente, a resposta para a pergunta apareceu:

Eu não sobrevivi. Aquela coisa, ali no chão, provavelmente era meu corpo. Agora eu devia ser um fantasma, espírito, alma, presunto, qualquer que fosse o nome que fosse dado a... Isso.

Depois de um tempo, descobri a denominação exata: Aura. Descobri que, quando as pessoas morrem, a essência delas permanece em terra, enquanto elas forem lembradas pelos entes queridos. E eu era bem forte, o que significava que muitos sentiam minha falta. Como Aura, não tenho forma física, não posso ser visto por nenhuma criatura, esteja ela viva ou morta. Mas posso ser sentido – aparentemente, como uma brisa com cheiro de cookies. E também tenho a habilidade de ir para onde eu quiser.

Desde que morri, tenho acompanhado cada passo que Hiro dá. Nas primeiras semanas, a culpa me corroía – na verdade, ainda corrói, mas na época o sentimento era mais intenso. Ele estava completamente deprimido, não saía do quarto, quase não comia, não saía nem pra tomar banho.

Então ele descobriu o Baymax. Durante semanas os dois, juntamente com meus quatro melhores amigos – agora também amigos de Hiro – transformaram-se em super-heróis, com o intuito de deter um mascarado que se apoderara dos microbôs do meu irmãozinho (aliás, quem diria que o cretino do Calaghan havia sobrevivido ao incêndio!). Nesse período, ele raramente pensava em mim. Sorria muito. Se divertia muito. Nesse período, e os primeiros meses que o seguiram, eu quase desapareci por completo. Era como se Hiro estivesse seguindo em frente (ouvi tia Cass comentar isso várias vezes, pode ter certeza!).

Mas, se ele de fato havia superado minha morte, por que eu estava ali, passado seis meses desde a explosão, contemplando de forma impotente a dor do Hiro?

Ultimamente isso vinha acontecendo com muita frequência. Seu sono era inquieto, ele se remexia muito na cama enquanto dormia. E acordava, no meio da noite. Chorava baixinho até o amanhecer, e então se levantava e forçava um sorriso no rosto.

“Burro!”, me xinguei em determinada noite, enquanto assistia o rosto do Hiro se banhar de lágrimas, e ouvir meu nome saindo de seus lábios em forma de sussurros. “Você não devia ter entrado naquele prédio! Agora é só uma maldita Aura, e seu irmão está um trapo! Burro, burro, burro!”

Me xingar não fazia com que eu me sentisse melhor. Além do mais, a burrada já estava feita. Voltei meus olhos para meu irmão.

Ele tinha caído da cama. Gemeu de dor, e Baymax ativou-se com isso. Identificou que os hormônios de felicidade do Hiro estavam em baixa, e então passou os meus vídeos-teste para que Hiro se animasse um pouco.

Depois de assistir a várias gravações, meu irmão foi vencido pelo sono. Pela primeira vez em muito tempo, parecia completamente em paz. Não se remexia na cama, e carregava até mesmo um resquício de sorriso nos lábios.

Me senti impelido a me aproximar dele. De perto eu podia ver com ainda mais definição a trilha de lágrimas em seu rosto. Desejei com ainda mais intensidade estar vivo. Ou ao menos ter uma forma física, para que pudesse ao menos acariciar sua cabeça, com fazia quando ele era mais novo e tinha pesadelos. Queria, de qualquer forma que fosse, tranquilizá-lo, confirmar o que todos lhe diziam – que eu ainda estava aqui.

Do nada, uma ideia me ocorreu.

Certa noite, há alguns anos, tia Cass nos forçou a assistir um filme onde uma mulher perdia seu marido, mas o fantasma deste se comunicava com ela através dos sonhos. O filme era bem ruim, mas a ideia era válida. Bem, na pior das hipóteses eu não conseguiria e ficaria frustrado. Mas na melhor...

Cheguei um pouco mais perto. Tentei me visualizar dentro da mente de Hiro, dentro de seus sonhos. De início, nada aconteceu. Mas logo senti que estava sendo sugado por um vórtice invisível. Por um instante, tudo foi escuridão e vertigem.

Mas então eu parei de girar. Quando me dei por conta, tinha novamente meu corpo, e Hiro estava deitado a poucos metros. “Funcionou”, comemorei. Vida longa ao diretor daquele filme! Mas o mundo ao meu redor estava completamente em branco. Talvez fosse como um quadro em branco, no qual eu podia pintar. Resolvi testar mais essa teoria.

Imaginei que estávamos no parque central. Imediatamente, ele se ergueu ao meu redor. Passei mais alguns momentos montando o cenário perfeito: nós dois, sozinhos no parque. Eu estava montado em minha motocicleta, e Hiro estava deitado em uma toalha de piquenique, com uma cesta de vime ao seu lado.

Chamei seu nome. Ele se levantou, olhou para mim por alguns segundos, e então veio correndo até mim. Pôs o capacete que lhe ofereci e sentou-se atrás de mim, abraçando minha cintura.

Dei partida na moto. Só que, ao invés de se mover para frente, ela levantou voo. Dei uma risada de júbilo. O toque do Hiro, o frio na barriga ao começar a voar, o vento passando por nós... Tudo aquilo era tão realista! Se a situação não fosse tão surreal, eu poderia jurar que ainda estava vivo, passeando pela cidade na minha motocicleta voadora. Demos a volta na cidade.

Graças à estranha mecânica dos sonhos, tudo estava vazio. Quando pousamos de volta no parque, rapidamente nos sentamos na toalha xadrez.

— Senti sua falta, Tadashi. — Hiro soltou. Em seus lábios havia um sorriso triste. Sorri, bagunçando seus cabelos.

— Também estava com saudades, cabeção. — eu disse, rindo. Realmente, eu sentia saudades do meu irmão, o garoto hiperativo e esquentadinho, que não dava as caras há meses.

— Tem sido difícil... — murmurou, mais para si mesmo. — Todo mundo diz que eu preciso superar... Que você continua vivo na lembrança... — continuou. Sua voz já estava embargada, e as lágrimas despontavam de seus olhos.

Ele estava prestes a chorar. Em um sonho. Lhe abracei justamente quando ele desabou.

—Ei, chora não... — murmurei, segurando seu queixo, e colhendo com o polegar as lágrimas que desciam incessantemente. — Por mais louco que pareça, eu ainda estou por aí... Você não pode me ver, mas eu te vejo. Não saio do seu lado. Acompanho seu progresso, sinto sua dor... Uma parte de mim se quebra toda vez que o vejo chorar.

— E o que você espera que eu faça? — soluçou, com amargura — Eu deveria seguir em frente? Superar a perda? Parar de pensar em você? — perguntou — Eu não consigo, Tadashi. Mais do que isso, eu não quero.

Tentei revidar, mas não encontrei argumentos.

Pela primeira vez desde que morri, me questionei: e se fosse o contrário? E se eu estivesse vivo, mas Hiro não? Eu não estaria na mesma situação que ele, se não pior?

Claro que eu estaria. Eu era tão dependente dele quanto ele de mim. Era como se houvesse um fio nos unindo, e de repente esse fio fosse rompido. Por isso, não falei nada. Só o mantive abraçado a mim.

Subitamente, o sonho tremeluziu. De alguma forma eu sabia que Hiro estava prestes a acordar. E algo me dizia que, depois que isso acontecesse, eu não conseguiria mais me comunicar com ele.

Segurei seus ombros, enquanto começava a falar o que eu precisava.

— Nós não temos mais muito tempo aqui, Hiro. Mas eu preciso lhe pedir uma coisa. Promete que vai seguir minhas orientações? — Ele assentiu, atordoado. — Pense em mim, mas só se isso não lhe causar dor. Tente não se lembrar do incêndio, mas de tudo que vivemos antes dele. Lembre-se de como trabalhamos duro nos seus microbôs. Lembre-se de como eu te salvei de tantas encrencas. Veja, talvez, meus projetos antigos, pode até se espelhar neles, se quiser. — As lágrimas desciam pelo meu rosto enquanto eu falava. Ao mesmo tempo, minha voz parecia estar cada vez mais distante, e o mundo ao meu redor desaparecia.

Olhei bem para Hiro. Lhe dei um beijo no rosto, antes de concluir meu pensamento:

— Acorde, e dê um jeito de ser verdadeiramente feliz. Nem que para isso você precise me apagar de sua mente! Eu te ajudei em seus primeiros passos...

A claridade me cegou. A última coisa que lembrei de ver foi o rosto de meu irmão. Ao longe, minhas últimas palavras ainda ressoavam.

“...Mas agora já é tempo de você erguer voo solo.”

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.