A garganta de Will estava seca, o que acontecia quando ele estava nervoso demais.

Passou os olhos pelo texto no celular mais uma vez. Trinta e duas linhas, tinha contado. Trinta e duas linhas escritas três dias atrás e editadas tantas vezes que Will já sabia exatamente a ordem de cada palavra

Talvez ele não devesse fazer aquilo.

Mas, que droga, já tinha dezessete anos. Logo, se tudo desse certo, começaria a terapia hormonal. Sua mãe iria reparar quando começasse a crescer pêlos em seu rosto, ou quando sua voz ficasse mais grossa. Teria de contar mais cedo ou mais tarde.

Aquilo era difícil. Will queria fugir daquela conversa. Mal sabia como teve coragem de olhar para o próprio pai e dizer “eu sou trans”.

Provavelmente porque a conversar com Apolo era muito mais fácil do que conversar com Naomi Solace. Já vivia com o pai, a mãe estava em outro estado e só a encontrava cara a cara a cada dois ou três meses.

Ajudava que Apolo sempre foi muito mais compreensível, também. Apesar de ele não concordar muito com a escolha de nome de Will — aparentemente Apolo achava que Will tinha muito mais cara de Arthur do que de Will — e de errar os pronomes do filho às vezes, por pura desatenção, Apolo não tinha nada ofensivo a dizer sobre o fato de Will ser, na verdade, um garoto.

Naomi nunca foi muito compreensiva. Ela sempre teve um ar mais autoritário. A relação entre ela e Will piorou muito depois que passaram a viver em casas diferentes.

— Ei.

Will virou o rosto para o lado, de repente lembrando que Nico estava ali.

Assim que se moveu, percebeu que estava segurando a mão do namorado com força.

Afrouxou o aperto, sem se soltar de Nico. O toque dele trazia conforto para Will.

— Você não precisa fazer isso se não quiser.

Will não respondeu. Não sabia o que falar. Na verdade, não sabia nem ao menos o que sentir.

Olhou para suas mãos unidas. As unhas de Nico estavam pintadas de preto. Mesmo com o esmalte já descascando, Will precisava admitir que preto combinava muito com Nico. Ele deveria saber isso também, já que só se vestia de preto — Will não tinha nada contra, aliás, amava ver Nico naquela jaqueta de couro ou naqueles jeans pretos rasgados que Nico vivia usando.

— Eu quero fazer isso. — Will murmurou, baixinho. — Eu preciso fazer isso.

Com a mão que não estava segurando Nico, Will largou o celular lentamente em cima da cama, agindo como se fosse uma bomba e não apenas um aparelho eletrônico qualquer.

Aquilo era ridículo. Os dois estavam sentados na cama do quarto de Nico, lado a lado, há quase vinte minutos com o único objetivo de Will conseguir criar coragem para sair do armário para a própria mãe.

Will suspirou. Estava calor. Muito calor. Sempre gostou do verão, mas, desde que começou a usar binder, deixou de ser a sua estação favorita. Calor demais fazia o binder ficar mais insuportável.

Nico apertou a mão de Will levemente e disse:

— Você tem certeza que não quer contar pessoalmente?

Will negou com um aceno, olhando para os pôsteres de bandas de rock na parede. Encarou o pôster do Bikini Kill enquanto disse:

— Eu tenho medo de ela surtar e, sei lá, gritar comigo. Eu odeio quando gritam comigo.

Nico não respondeu. Ele sabia do histórico de Naomi com gritos. Eles já haviam tido aquela conversa.

Will voltou a olhar para a mão de Nico, mas dessa vez para o pulso dele, para a pulseira de pano com as cores da bandeira agênero.

— Você pode… — Will limpou a garganta — Pode mandar a mensagem para mim?

O quê? Will.

Will encarou Nico.

— Eu não sei se eu consigo. É só mandar.

Nico abriu a boca, mas não disse nada.

Will pegou o celular mais uma vez e, lentamente, entregou para Nico.

Nico encarou a tela do celular por alguns segundos.

— Você tem certeza disso?

Will confirmou com a cabeça.

— Você não precisa contar agora se não quiser.

— Eu quero. Só não consigo. Manda por mim.

Nico mordeu o lábio, hesitante.

— Tem certeza disso?

Will apertou seus dedos contra os de Nico, em suas mãos ainda entrelaçadas.

— Tenho.

Nico engoliu em seco.

— Mesmo?

— Sim.

Will assistiu quando Nico, lentamente, voltou a atenção para o celular e deu um clique na tela.

Algo tão simples, mas que fez Will sentir tanta coisa.

— Pronto. — Nico devolveu o celular para Will, como se estivesse se livrando de algo. — Meu Deus.

— Meu Deus. — Will repetiu.

— O que você está sentindo?

— Nervosismo, pânico, empolgação. Meu Deus.

Nico deu uma risada nervosa.

— Vai dar tudo certo.

— Ou talvez não.

— Vai dar. — Nico garantiu.

Will largou o celular de qualquer jeito na cama e finalmente soltou a mão de Nico apenas para o puxar para um abraço.

Eles acabaram deitados na cama, em um abraço meio estranho. Will escondeu o rosto na curva do pescoço de Nico. Não queria pensar em qual seria a resposta de Naomi. Não queria pensar em nada sobre aquilo. Estava emocionalmente exausto daquele assunto. Sentiu um dos dedos de Nico se enrolar em um dos cachinhos de seu cabelo — Nico fazia muito isso.

Will sentia uma coisa muito boa dentro de si quando estava com Nico. Era tão reconfortante namorar alguém que também era trans. Mesmo que Nico fosse não-binário e Will binário, Nico sabia como era estar naquela situação de precisar contar qual é seu gênero para os próprios pais. Nico o entendia.

E Nico não o entendia apenas em questões sobre gênero, mas sobre tudo. E, quando não o compreendia, se esforçava para compreender. Desde coisas básicas sobre porquê Will pretendia fazer formação para ser pediatra até coisas um pouco mais complexas como o motivo de Will decidir se tornar vegano.

Era tão bom que parecia algo que acontecia apenas em seus sonhos.

Nico soltou o cabelo de Will e se afastou apenas alguns centímetros dele. O suficiente para poder olhar em seus olhos e perguntar:

— Tudo bem?

Will apenas assentiu, sem muita certeza do que poderia responder com sinceridade.

Ele se perguntou se Naomi já havia respondido a mensagem, mas o celular estava silencioso há alguns minutos, então sem sinal de qualquer resposta.

Will tocou suavemente o rosto de Nico com os dedos, fazendo um carinho leve na bochecha dele. O rosto de Nico era uma das coisas mais lindas que Will já tinha visto.

— Você não está de lápis de olho hoje. — Will observou.

Nico pareceu surpreso com a repentina troca de assunto, mas depois deu um pequeno sorriso, provavelmente entendendo que Will não queria falar sobre Naomi naquele momento.

— É difícil de tirar depois. — Nico murmurou e, desviando o olhar de Will, completou: — E todo mundo me olha estranho na escola quando eu uso maquiagem.

Will se aproximou do namorado e deu um beijo rápido em seus lábios.

— Me diga quem te olha estranho. — sussurrou, próximo de Nico. — Que eu vou bater em todos.

Nico riu, sabendo que era muito capaz de Will fazer aquilo mesmo, mas que também odiava brigas.

— Eu vou fazer uma lista de nomes, então. — Nico respondeu.

Will sorriu, mesmo que se sentisse triste. Ele queria que as pessoas não fossem tão desagradáveis e que deixassem seu namorado em paz, mas não podia fazer muito sobre isso. Só esperava conseguir apoiar Nico o suficiente para que ele não parasse de fazer coisas que gostava só porque algumas pessoas não sabiam lidar com quem não atende às normas de binarismo de gênero impostas.

Nico se mexeu na cama, passando um dos braços para trás da cabeça de Will e voltando a enrolar os dedos nos cachinhos do cabelo dele.

Will sorriu novamente, mas não se sentia nem um pouco triste. Dessa vez sorriu por se sentir tão feliz com o conforto que Nico causava em pequenos gestos.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.