Com passos pesados, quase rastejando os pés e se apoiando nas paredes, Maximilien toma rumo à superfície, apenas seguindo as manchas de sangue que via pelo chão das escadas que o guiavam para cima, depois do longo corredor em que a câmara do caixão continuava. A leve iluminação das velas e de uma fraca luz que vinha de fora acabavam revelando as pegadas de sangue que provavelmente eram daquela vampira que saiu correndo, suja com o sangue de Augustin ou do próprio Maximilien e que, ironicamente, indicavam ao caçador um caminho seguro. Mesmo ensanguentado, sabia que devia continuar até se colocar nas ruas. E certamente não demoraria muito para que ele saísse do subterrâneo através de uma abertura de esgoto que daria numa praça deserta. Com os bagunçados cabelos finalmente balançando ao vento diante do último passo que dava para fora, Maximilien se ajoelha enquanto vê o Sol nascer no horizonte urbano, deixando o brilho dourado percorrer seu corpo com aquele calor afável capaz de amenizar a dor. E sentindo os músculos pesarem ao ponto de não conseguir mais se mover, tenta encontrar qualquer sinal da vampira que o deixou vivo, que mesmo tendo feito o mesmo caminho, havia desaparecido sem mais deixar rastros.

"Por que ela não me matou...?", eram os pensamentos de Maximilien antes de apagar por completo.

...

E ela corria. Desorientada, perdida, dormente e com grande pavor, seguia incansavelmente sem rumo. Como num pesadelo, não fazia ideia do que estava acontecendo, como foi parar lá ou ao menos quem era. Vagos vislumbres passavam-se na mente confusa, como cenas que um dia viu e vozes que uma vez ouvira, aparecendo avulsas e desentendidas enquanto ela corre sem parar pelas ruas desertas. Não se recordava dos significados daquelas visões, rostos, cenários e sons, mas podia ver que havia muito, muito sangue. Por um breve instante, paira sobre uma calçada, cessando a corrida ao sentir imensa dor em sua cabeça, precisando segurá-la com ambas as mãos para tentar parar a sensação pulsante da forte pressão sanguínea. "Para! Para! Para!", gritava em seus pensamentos. Emitindo um grunhido voraz de dor, começa a chorar aos berros. Era uma experiência horrível para alguém que havia acabado de acordar de um longo sono... e não sabia nem ao menos que era um vampiro.

A luz do Sol desliza ao horizonte, brilhando levemente sobre a pele pálida da mulher. Queima. Não bastava as dores internas a atormentando, agora nem mesmo a paisagem podia reservar-lhe paz. Não tendo outra escapatória, continua a correr mesmo com a dor e cansaço, para qualquer lugar cujas sombras fornecessem abrigo. Não conseguia raciocinar direito, com seus órgãos sentindo-se inflamados e secos ao ponto de suas veias colarem-se e a luz do Sol parecer torrar a carne, mas talvez como obra do destino, os passos aleatórios da vampira a guiam até a lateral de um edifício que se mantinha contra o leste, bloqueando a luz da manhã. Em um leve alívio momentâneo, o corpo da mulher tropeça ao chão da calçada, vindo a cair sobre o solo de pedra, já com algumas partes de sua pele em carne viva. Sua pressão vem a baixar violentamente, evidenciando-se pela sua respiração dificultada que parecia levar-lhe em breve para a morte.

Mas aquela rua, em específico, não estava deserta. Por mais que muitos ignorassem a presença deles no dia a dia, os moradores de rua daquela bulevar se deparavam com a estranha e repentina mulher que recaía quase morta. Um deles, já acordado há um bom tempo, viria fitá-la de perto, demonstrando preocupação. A vampira, com sua visão turva, não consegue vê-lo direito, mas sentia a presença do mendigo perfeitamente. Conseguia inclusive ouvir os batimentos cardíacos do homem e a pulsação de seu sangue... e ah, como seus instintos gritavam para rasgar a carótida dele. Embebedar-se de sangue humano até não conseguir mais parar... Mas ela resiste. Ela resiste. Renegando qualquer vontade ávida do vício que tomava seu corpo, a vampira morde sua própria língua, ainda incapaz de falar pela garganta inflamada, mas desejando ao máximo que o homem saísse de lá o quanto antes.

E é isso que ele faz. Em silêncio, o morador de rua sai de cena, parecendo deixar a mulher ali, jogada para a morte. E talvez era isso mesmo que ela queria, para encontrar paz no meio de tanta dor. Já aceitando seu fim ao fechar os olhos, a vampira nem ao menos percebe que o mendigo voltava, trazendo uma mulher consigo, que com um olhar tão genuíno de compaixão, atenta-se a aproximar da caída, fitando o corpo queimado e procurando meios de levá-la.

— Vamos, vamos, querida... Pessoas como nós não são bem-vindas na luz do dia... — Diz a mulher enquanto toca no ombro da jovem, sendo as últimas palavras que esta escuta antes de ser carregada no colo.

...

O dia amanhece e a movimentação dos civis retoma rapidamente a rotina de Paris. Homens e mulheres se locomovendo ao trabalho, crianças indo para as escolas, carroças e bicicletas tomando as ruas e estabelecimentos abrindo. Estranho era, entretanto, a quantidade significativamente menor de trabalhadores a cada dia. As greves e paralisões não deixavam de aumentar por toda a cidade, fazendo fábricas permanecerem fechadas e desagradando ainda mais os figurões dos primeiros distritos. O Hôtel de Ville já estava em funcionamento com os políticos adentrando após os primeiros funcionários e, para a surpresa de Lumiére, que batia na porta do escritório de Roger Valentin ao chegar, notava que o Valete da Ordem Croupier não se encontrava por lá como de costume. Nem sequer estava a caminho, ao invés disso, pairava de pé no quarto de uma de suas casas no 1° Distrito, vestindo-se enquanto Louis, ainda despido, estava sentado do outro lado da cama, admirando a grande janela do cômodo a partir das frestas das cortinas.

— Parece que chegarei atrasado... — Dizia Valentin olhando para seu relógio de pulso enquanto vestia a blusa branca: — Já me prova que isso foi um erro.

Louis permanece calado, ainda olhando afora, contemplando a paisagem urbana. Foi uma longa noite, que começou no escritório e acabou na casa do próprio chefe. Inegavelmente, ambos se adoçaram de prazer um com o outro até a madrugada.

— E então? ...O que você realmente está querendo? — Valentin encosta em uma das paredes, de braços cruzados: — Percebi essa noite que não foi sua primeira vez... É muito bom no que faz. Mas já que me tentou para negociar, por que não vai direto ao ponto?

Esboçando um leve sorriso, Louis vira um pouco a cabeça para olhar o albino:

— ...Não sou tão interesseiro como pensas... mas já que insiste, Valete de Ouros... já faz um bom tempo que penso em conversar com alguns figurões que você tem contato. Haussmann, Mac-Mahon, Thiers... ou quem sabe seu pai...

— Então você sabe... — Valentin permanece sério, mesmo que surpreso:— Bom, posso pensar no caso. Certamente é mais complicado que um simples aumento. Mas... não pense que uma única noite será o suficiente.

— E o que você tem em mente? — Louis se deita novamente na cama, alongando seu corpo esbelto. Para Valentin, lembrava o Adão de Michelangelo, tanto pela silhueta quanto pela visão nua do belo homem. Piscando para tomar seriedade novamente, o Valete responde com ávida tensão:

— O "Ás" que Napoleão III esconde na manga. Eu quero saber quem é.

— ...Desconheço.

Valentin suspira.

— Claro, é de conhecimeto apenas dos Trois Royaux. Por protocolo, eu não deveria estar lhe contando, mas isso fica entre nós.

— D'accord.

— Desde 1804, quando a Ordem foi renovada, ficou a cargo do imperador ter um "membro fantoche" a cada geração dentre os Treze de Paris. Um caçador cuja força e habilidade seria capaz de não apenas rivalizar contra o Rei, a Dama e o Valete, mas também executá-los, caso algum deles traísse o Estado ou somente desobedecesse as ordens do imperador. Este seria o "Ás" da Ordem Croupier... e pode ser qualquer um de vocês.

— Hm, não me surpreende vindo de Napoleão... — Louis se pega pensativo: — Mas e se fosse eu? Não seria presunção de sua parte compartilhar seus pensamentos comigo?

— Tenho certeza que não é. Conheço sua origem na baixa burguesia agrária da Aquitânia. Nunca teve contato com Luís Bonaparte. E se me permite dizer, você está longe de competir forças comigo, quem dirá contra Nikola.

Louis permanece com um olhar sério e indiferente. Valentin acredita que havia o aborrecido, complementando-se:

— Seu histórico na Ordem é espetacular. Tem um dos maiores números de casos bem sucedidos. Mas em questão de aptidão, ainda há muitos na sua frente.

— ...Então você quer que eu investigue os outros nove dentro da Ordem...

— A começar por aqueles que ainda estão em Paris, apesar de que suspeito muito dos que se voluntariaram para a guerra...

— Bom, posso descobrir mais sobre Maximilien.

— Ótimo. Cada um com sua parte do acordo. O que me diz?

Louis contempla mais uma vez a janela antes de firmar a proposta:

— D'accord.

...

— Não foi muito longe daqui. Seu Jorge a encontrou já nesse estado. Me chamou assim que a viu.

— E você tinha que trazê-la justo para cá? Nem sabemos quem é!

Ouvindo duas vozes, deitada em um sofá, a vampira se recuperava gradativamente. A visão não estava mais turva e seus músculos voltavam a se mexer. Conseguia escutar duas mulheres discutindo desde que adentrara no local, uma voz sendo a daquela que a resgatou e uma outra desconhecida.

— Ora, pois bem, eu não podia deixá-la por lá. Você conhece nossa política. — Repondia a mulher que aparentava estar na meia-idade, com longos cabelos castanhos e encaracolados, de vestidos simples de dona de casa. Seu olhar calmo ainda em seu rosto.

— Bom, aproveitemos para perguntar agora, afinal parece que ela já está bem, não? — A desconhecida se vira, notando que a convidada olhava para elas e ouvia a conversa. Era uma moça no final de seus vinte anos, bem maquiada, de curtos cabelos negros e que usava um vestido grisette de decote avantajado. De braços cruzados, se mantém de pé rente à outra no sofá. Quanto à recém-chegada, olhava para as duas mulheres sem saber o que dizer.

— Minha nossa... já se curou tão rápido?! Certamente não é comum... — A mais velha se impressiona com a melhora da vampira, cujas queimaduras haviam cicatrizado. Antes que esta tocasse na pele da outra, uma nova figura aparece no local, chamando a atenção desta: — Oh, Luciene, acabamos acordando-te?

Luciene, tão pálida quanto a convidada, adentra o cômodo descendo as escadas do andar de cima. Tinha cabelos louros bem claros, ondulados na altura dos ombros e cílios longos que a davam um toque de feminilidade junto à sua postura deveras tímida. Vestia um pijama branco. Seu diferencial era a altura e o contraste das costas largas com o corpo bem magro que, mesmo sendo bem mais jovem que as outras, fazia dela a mais alta e esguia.

— E-eu... só quis v-ver o que... — Gaguejando como normalmente falava, Luciene estranha a novata por lá: — Quem é?

— É o que estamos querendo saber. — Responde a impaciente, ainda encarando a vampira, seguida por uma aproximação da mulher mais velha, que se senta no sofá perguntando:

— O seu nome... pode nos dizer qual é?

E a ela, que todas esperavam resposta, se vê pensando, com um olhar cabisbaixo demonstrando dúvida. Parecia uma pergunta tão simples, quase que na ponta da língua, mas que escapava tão facilmente... Nas vozes avulsas que havia experienciado mais cedo, a esquecida conseguira captar algumas sílabas em comum que nas memórias pareciam lhe chamar. Balbuciando uma delas ao repetir, finalmente emite uma palavra:

— Char... — Se lembrando como uma epifania a inaugurar tais pensamentos, teria em mente o rosto de Maximilien, a primeira pessoa que fez contato desde que acordara. Se lembrava de, ainda no caixão, ter escutado algumas palavras vindas dos dois homens que lutaram naquela câmara. Lembrava o nome deles tão perfeitamente quanto o nome que Augustin usou para se referir a ela no ritual, completando em seguida o nome que achava tão belo: — Charlotte.

As outras três se entreolham e voltam a fitá-la.

— Charlotte... do quê? — Indaga a de cabelos pretos antes de ser interrompida pela outra:

— Prazer, Charlotte, sou Marjorie. — Ainda no sofá, esta se apresenta com um sorriso para ganhar confiança: — Não precisa nos contar nada que não queira... mas queremos te ajudar. O que aconteceu contigo? E de onde você veio?

Se sentindo perdida a cada pergunta, a jovem Charlotte queria muito respondê-las adequadamente, mas se rendia pelo desconhecimento:

— Eu... eu realmente não me lembro...

— Pff, me desculpe, mas isso já não é muito suspeito, Marjorie? — A de cabelos pretos volta a reclamar, colocando as mãos na cintura enquanto dá as costas brevemente.

— Calma, Natalie... eu já vi isso acontecer com vampiros que passam por sede extrema. É mais normal do que imagina.

— Vampiro...? Certeza tens de que... é isso que eu sou? — Charlotte sabia que não estava em posição de duvidar do que contassem, mas procurava apenas saber mais da situação, sem que precisasse pensar muito.

— Bom, não é a toa que quase morreu na luz do Sol. Aliás, eu sei reconhecer de longe, querida, essas duas chatas com quem eu convivo também são. — Olha para Natalie e Luciene.

— P-pardon? — Luciene arranja um banco para se sentar próxima ao sofá, enquanto mantém o corpo envolto por um lençol para se esquentar do frio da manhã.

— ...Imagino que a senhora também seja...? — Charlotte indaga Marjorie.

— Na verdade, não. Digamos que sou um pouco diferente.

— Tá, vamos direto ao ponto. Como você pretende ajudar essa daí? — Natalie encosta-se na parede. — Tem algo nos seus livros que, sei lá, traz memórias de volta?

— Posso procurar, mas estou pensando em levá-la para Cassandra. — Marjorie se levanta.

— Hm, então é melhor que ela vista algo que não seja esses trapos sujos de sangue... e tome um banho, porque pelo amor... Está fedendo!

— Bom, já que deu a ideia, esquente a água para ela, por favor, Natalie. E aproveite para emprestar um de seus vestidos. Quanto a Luciene, me ajude a preparar algo para Charlotte. Deve estar faminta, não só de sangue.

— C-Certo. — Luciene em sua deixa, cumprimenta timidamente Charlotte com um leve gesto, para logo seguir Marjorie na cozinha.

Quanto a Natalie, bufando, rapidamente se desloca para a caldeira, atendendo as ordens da mais velha. Charlotte fica sozinha e quieta na sala como um cão esperando seu dono, até que Natalie retorna e chama a convidada para ir com ela ao andar de cima.

Já em seu quarto, a morena separa umas roupas que já não usava há tempos e, mesmo não vendo com bons olhos a chegada de Charlotte, preocupava-se que a vampira pelo menos estivesse adequada ao sair na rua. Separando duas peças de vestido, uma azul e uma vermelha, as coloca à frente da jovem para ter uma noção de como ficaria.

— Um tom azulado cai bem... e minha nossa, magricela desse jeito, qualquer vestido ficará folgado! Seria melhor pedir uma das peças de Luciene se você não fosse tão baixa.

Charlotte continua muda e parada de pé no meio do quarto, apenas observando o cômodo com curiosidade, notando as várias agulhas, linhas e tecidos que Natalie tinha acima de sua mesa e estantes, além de um estranho aparelho metálico em formato de ferradura vertical, que possuía rodas e pequenas engrenagens.

— Pelo menos você parece uma boneca... — Elogiando a beleza da outra momentaneamente, Natalie também não perde tempo para caçoar: — É tão imóvel como uma.

— Ahm... pardon, mas o que seria isso? — Charlotte aponta para o aparelho acima da mesa que chamava sua atenção. Natalie estranha o fato dela não saber:

— Oras, é uma máquina de costura! Não vais me dizer que nunca viu?

— Bem...

— Não me surpreende que sejas tão brega. Thimmonier a criou há quase sessenta anos! Essa coisa revolucionou a moda com melhor manejo de tecidos e roupas mais bem trabalhadas. Sem contar com o menor custo de produção... Antigamente, só as mais ricas tinham bons vestidos... — Era notável o interesse que Natalie tinha acerca do assunto, demonstrando certa paixão e passividade até agora não vistas por Charlotte. Tomando para si uma toalha de banho, Natalie finalmente separa todo o visual da vampira, a entregando em suas mãos, esta que se expressa quase como uma forma de validar a vocação da morena:

— Entraja-se muito bem, se me permite dizer, Senhorita Natalie. Sinto-me grata por vossa gentileza em compartilhar-me suas roupagens.

— Hmpf, tá longe de ser por você, amiguinha. E não precisa ser tão formal... Você veio de onde? Do século passado? — Continua com a língua afiada, mesmo que no fundo agradecida: — Agora vá logo antes que esse seu cheiro impregne-se no meu quarto.

Descendo ao banheiro no andar de baixo, Charlotte rapidamente encontra Luciene passando pelos corredores emitindo um sorriso que era retribuído. Mas apressando seus passos, finalmente a vampira adentra o cômodo e tranca a porta. Sentia um palpitar de confusão instalar-se novamente em sua cabeça, como pensamentos intrusivos proporcionando aflição. Desmoronando já dentro do banheiro, Charlotte se abaixa ainda encostada na madeira da porta, até sentar-se no chão gélido, onde ficaria em posição fetal. Evitava chorar, tanto para que não a escutassem quanto por sentir que não devia. Sentia-se artificial, como alguém sem vida, sem uma alma. Havia acordado num mundo que não conhecia, presenciando sangue e dor, carregando o fardo de não ter memória alguma de seu passado e então, ser aparentemente acolhida por pessoas tão bondosas que talvez nem mereciam lidar com um peso morto como ela... Em seu primeiro momento sozinha agora, desde que retomara a sanidade, era capaz de finalmente processar aquilo tudo, mas se segurando para não deixar a consumir. Enquanto algumas pequenas gotas vazavam silenciosamente dos olhos lacrimejados, Charlotte vai se despindo e se preparando para entrar na banheira. Olhando ao espelho, já nua, nota como sua face estava realmente suja de sangue, com os lábios, bochechas e queixo melados num tom avermelhado. E sabia de quem era. Lembrava-se não apenas do que ouvira naquele ritual que a acordou, mas também do sabor tão doce, azedo e picantemente prazeroso que havia experimentado do sangue que a trouxe de volta. O sangue de Maximilien. Um homem que ela não fazia ideia de quem era, mas que apenas o seu nome já era capaz de lhe trazer pensamentos nebulosos. De qualquer forma, contemplando aquele rosto cansado no espelho, de olhos inchados, bochechas afundadas, pele ressecada e lábios rachados, sentindo-se tão feia pelas condições que o destino lhe impôs, Charlotte apenas adentra a banheira procurando esquecer tudo aquilo, deixando que a água levasse embora todas as mágoas do coração aflito.

...

Caminhavam pelas ruas do 13° Distrito, Marjorie e Charlotte, após um longo percurso já quase no Sol do meio-dia. A vampira usava um elegante guarda-sol aberto acima de sua cabeça, dado por Luciene, cuja sombra era o suficiente para proteger-se dos raios solares, mesclada com as vestimentas que cobriam todo o corpo de Charlotte. Esta usava um vestido de passeio, de saia longa azul até as canelas, que eram complementadas com botas pretas. Em sua cintura, um cinto corset igualmente azul, enquanto que no superior, a blusa branca de mangas engageantes cobria dos ombros até os braços, finalizados por luvas que mantinham as mãos da mulher seguras do Sol. Charlotte ainda usava um chapéu bonett que a garantia mais sombra ao rosto, além de ser um acessório bonito para seus cabelos castanhos agora presos num coque. Devia tudo isso aos esforços de Natalie.

— Vamos, querida, você pode andar mais rápido que isso. — Marjorie se vira para trás, vendo Charlotte se locomovendo até agora em pequenos passos, talvez pelo medo de se queimar.

— Estou... indo... — Ofegante, a mulher evita admitir que na verdade andava lenta pela exaustão que sentia do trajeto, além do calor que as roupas mais fechadas proporcionavam.

— Estamos já chegando. A Cassandra é por aqui. Há bastante sombra.

— Eu... lembro-me de tu ter dito que criaturas como nós não podem andar sob a luz... mas... você está indo muito bem. — Charlotte continua seguindo, notando que Marjorie não estava nem um pouco protegida do Sol. Pelo contrário, usava um vestido promenade de cor alaranjada, com várias aberturas para os ombros, costas e mãos. Marjorie ri e responde:

— Bom, há outros significados para "luz"...

E finalmente, esta adentra um beco coberto por vinhas, que as levam para uma porta de carvalho numa das paredes.

— É aqui. — Afirma Marjorie, começando a bater na porta.

Por um instante, nenhuma resposta, até que bate novamente.

— Só um minuto! — Uma voz feminina vem de dentro, aparentemente deixando algumas moedas caírem ao esbarrar em algo, deduzível pelo som de pequenos metais atingindo o solo consecutivamente após um leve estrondo. Charlotte estranha o local deserto. Olhando para os lados, percebia que não havia ninguém naquele beco além delas. A porta se abre após a proprietária destrancar várias trancas e surgir com um sorriso maroto:

— Ah, querida Marjorie, como senti sua falta! Gostaria de ver seu futuro no amor de novo? — Era uma mulher bem madura de etnia romani, com sedosos cabelos negros presos por uma fita rubra e seu batom igualmente vermelho sendo realçado pelo tom de pele mais escuro. Usava grandes brincos chamativos e vários cordões nos braços e pescoço onde pendurava-se moedas. O mais notório para Charlotte eram as vestimentas. Tecidos largos se sobrepondo no longo vestido de cigana em cores vibrantes que tornavam a figura daquela mulher numa extravagante beleza aos olhos da vampira.

— Hm... na verdade, não. — Marjorie responde um pouco sem graça, até que aponta para Charlotte: — Estou querendo saber sobre essa aqui. Perdeu as memórias.

— Prazer. — Charlotte estende a mão, seguida pelas apresentações de Marjorie.

— Charlotte, esta é Angelika Moldovan, também conhecida como "Cassandra". Angelika, esta é...

— Oh, sim, a caríssima Charlie... Já estávamos aguardando por ti, meu bem. — A mulher se aproxima da tímida vampira agarrando a mão que cumprimentava, analisando-a dos pés à cabeça, até que abre espaço para as convidadas passarem: — Por favor, entrem, temos muito o que conversar.

...

Já eram quatro da tarde quando Maximilien finalmente abre os olhos num leito do Hospital de Saint Louis, 10° Distrito. Sentia sua boca seca e uma terrível dor de cabeça. Ao mexer os músculos dos membros dormentes, nota grande agonia em locais enfaixados como o braço esquerdo, a coxa direita e o quadril. Resolve permanecer deitado naquela cama evitando a dor. Olha para o lado esquerdo, a janela do quarto estava aberta, banhando o recinto com luz do Sol da tarde. Olhando ao direito, encontra a figura de um elegante senhor grisalho, sentado em uma cadeira próxima usando um monóculo no olho esquerdo e um chique casaco fraque que complementava seu terno. Era ninguém menos que seu mentor e chefe, Nikola Ludwig Ossenfelder, o famoso "Rei de Copas" da Ordem Croupier:

— Guten Tag, Maximilien... Estava me perguntando quando que finalmente iria acordar. Se é que iria...

Com dificuldade, Maximilien se senta na cabeceira do leito para ver o chefe de forma melhor. Tentando se situar mentalmente, tão confuso quanto um alcoólatra em ressaca, o caçador fica virado para Nikola sem falar nada, encarando o chão, depois o teto, as paredes... apenas tentando recordar cada fato que presenciara na última noite. Enquanto isso, Nikola se levanta com a bengala e pede para uma enfermeira no corredor chamar o Doutor Simon para o quarto.

— Como eu cheguei aqui? ...Antes eu estava... — Maximilien permanece com a mão na testa. Nikola se aproxima e retorna a sentar na cadeira para responder-lhe:

— Um vigia do 5° Distrito o encontrou numa rua próxima ao Panthéon. Pensou ser um bêbado qualquer até ver seu distintivo. Ele chamou uns policiais que o trouxeram para cá.

Maximilien suspira ainda processando os fatos e então pensa alto:

— Não havia apenas quatro...

— Hm?

— Foram sete vampiros... que matei esta noite...

— Sete? — Nikola ergue uma sobrancelha. O comum dentre os casos de vampiros em Paris era de uma a duas ameaças neutralizadas por mês. Sete aparecerem na mesma noite e serem eliminados por um único caçador era um feito inacreditável: — Se tratando de ti, eu não duvido... ensinei-lhe muito bem as técnicas de caça. Mas isso só prova que os monstros estão se organizando... se escondendo nas sombras parecendo poucos, quando talvez são muitos.

— Eu encontrei algumas coisas estranhas por lá... Um dos vampiros era capaz de... criar uma lâmina com o próprio sangue. Você já viu coisa parecida?

— Bom, em toda minha experiência, enfrentei alguns vampiros que causaram bastante estrago por vias... sobrenaturais. Não sei exatamente como funciona, mas entre as lendas que circulam no meio deles, dizem que vampiros que bebem sangue de bruxas têm uma pequena chance de desenvolver "dons". A maioria que tenta, acaba morto ou nada ganha. Falam que seria necessário um verdadeiro massacre para fazer valer. E se matar uma bruxa é difícil, imagine várias...

Moreau acaba se lembrando do ritual que Augustin estava a fazer e consequentemente, da mulher no caixão. Se mostra relutante em falar sobre a vampira para Nikola, por mais importante que fosse dar a ele os fatos. Pela sua sorte, Doutor Simon chega no quarto, encostando-se no vão da porta. Um médico loiro, de belo rosto e vibrantes olhos verdes, com as mãos nos bolsos da veste beje. Era um pouco mais velho que Maximilien e tinha feições de um típico holandês. Aclamado doutor daquele hospital, muitos não sabiam que Simon era também um dos melhores caçadores da Ordem Croupier.

— Oh, que surpresa. Pensei que estava morto. — Simon se aproxima enquanto Nikola emite um leve riso. O médico continua com as mãos nos bolsos: — Preciso te contar algo sobre ontem, mas primeiro quero ouvir como que você chegou nesse estado. O que raios encontrou naquelas catacumbas?

— ...Desespero conta? — Maximilien sorri para diminuir a tensão enquanto se ajeita no leito, tentando mover uma das pernas. — Em uma das câmaras encontrei seis deles. Só consegui eliminá-los por pura sorte, mas saí já ferido. Até que encontrei o último... ou ele me encontrou... — Maximilien não sabia bem como explicar Augustin. O belo vampiro que viu naquele café fingindo ser um humano e que falava tantas coisas estranhas também tinha o salvo de se perder nas catacumbas, mas talvez só para usá-lo. — Esse último recorreu de meu sangue para uma espécie de ritual... Ele queria acordar... uma coisa dentro de um caixão...

Nikola e Simon se entreolham até que o doutor pergunta:

— Que tipo de... coisa?

Maximilien hesita uma última vez. Não estava propriamente só confuso. Acerca daquela vampira havia também dúvidas e informações que ele queria para si e portanto, sabia que não podia apenas entregá-la para outros a matarem:

— ...Eu não me lembro. A partir daqui as memórias ficam bagunçadas... Só sei que consegui matar o vampiro e sair de lá. — Maximilien percebe que Nikola esboça estranheza no olhar, mas aparentemente, nem desconfia.

— Bom, o importante é que matou, não? Se conseguiu detê-lo, impediu o ritual. — Nikola se contenta: — Mas se lembro bem da missão que te designaram, parece que você encontrou um dos corpos roubados de Montparnasse. É bom que enviemos um pessoal da Ordem para investigar o local em que esteve... Talvez mando Valentin lá como punição, haha.

— Pelo o que entendi, quem fez a comissão foram na verdade os mandantes do alto escalão do império. Valentin só me designou para o serviço, mas o erro foi meu de adentrar nas catacumbas sem uma investigação prévia do caso... — Mesmo tendo a humildade para absolver Valentin, Maximilien ainda se mantém desgostoso frente ao erro que quase custou sua vida, cruzando os braços: — Mas também me deram informações erradas. De quatro para sete, há uma grande diferença...

— Ha, pelo menos ainda está vivo para dar o relatório. — Simon se aproxima do leito, analisando os membros enfaixados de Maximilien: — Mas vai ficar aqui ainda por um ou dois dias até se recuperar totalmente. Vai mantê-lo fora por dispensa, chefe?

— Ora, se ele não fosse tão valioso, eu demitia, haha! — Nikola e Simon acabam rindo enquanto o caçador na cama não entende o humor burguês.

— Teve outra coisa também, agora me lembrando... — Interrompe Maximilien, pensativo: — Um dos vampiros durante o ritual chamou-me de "sangue incorrupto"... justo quando cortava meu pulso. Tens alguma ideia, Mestre?

Ossenfelder, já piscando pensativo, responde de maneira indiferente:

— Não... Creio ser só um título ritualístico para sangue humano. Não se preocupe muito.

— Se quiser minha ajuda, estou recentemente fazendo uma pesquisa acadêmica sobre o sangue humano. Eu ficaria grato com uma amostra do seu, Maximilien. — Simon sorri.

— ...Talvez quando eu sair daqui. — Moreau demonstra certa impaciência ao suspirar olhando o teto: — E pensar que eu fiz isso tudo só para descobrir que não havia relação alguma com Antoinette.

Nikola permanece quieto enquanto Simon hesita antes de falar:

— Bom, sobre isso... acho que é de seu interesse saber o que René e minha aprendiz encontraram nos bosques de Vincennes nesta última noite.

Maximilien volta seu olhar para o médico, inclinando-se para frente com curiosidade:

— O quê?

— Um paciente chegou ontem a noite no hospital, encaminhado por policiais que o encontraram pedindo por ajuda no 20° Distrito. Vítima de um ataque de vampiro. Enviei uma assistente minha junto de René para os bosques onde o paciente avistou a "coisa". Eles encontraram por lá... o corpo de Sebastian Bordeaux. — Simon percebe a face de Maximilien tensionar. — Você o conhece, o mordomo de Antoinette.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.