Fragmentos

Sim, foi o vinho...


“Hoje, não, agora é a última noite aqui em Angra, não tenho o que inventar pra conseguir ficar mais dias; nenhum plano, nenhuma mentira, ninguém pra pagar pra me ajudar a manternos aqui...Devo ter...Não, não tive, eu preciso voltar pra São Paulo, aquele vazio que só ele sabe preencher.”

“Será que eu vou conseguir dormir de novo lá em casa? Parece que me condenei a insônia...Nem consigo pensar em dormir...Mas não me arrependo, talvez meu único erro foi tê-lo convidado pra somente um feriado. Tinha que ser pra vida toda...Meu pai que não escute isso, mas quer saber que diferença faria? Ele não gosta de mim mesmo. Ele, talvez, gostasse um dia se eu conseguisse manter as aparências. Ninguém consegue isso por todo o tempo, nem Félix Khoury.”

“Agora aqui, com ele em meus braços, exausto ele dorme como se fosse um anjo de cachos dourados. Meu Carneirinho. Eu fugi tanto dele, por medo de perdê-lo, lá no fundo eu ainda tenho medo...Só que agora ele me encoraja cada vez que me diz com esses olhos que o importante é que eu goste dele.”

“É claro que eu gosto, Carneirinho. Mas sou um idiota... Um grande idiota...analfabeto do coração como a rainha do hot-dog diria... se as histórias ou cartas de amor são idiotas...Quem disse isso mesmo?...Importa, mas eu não lembro...Eu sou um idiota porque não consigo te dizer nada e você me diz tanto, sempre.”

Um suspiro para que ele o ajeitasse melhor.

“Eu acho que o vinho hoje ajudou...ele é mais fraco que eu pra bebidas...Mas hoje o vinho subiu mais rápido pra mim...Foi tão bom...Eu lembro de cada detalhe...Eu lembro que hoje eu não estava tão nervoso, tão ansioso...Tem horas que depois, só depois eu fico pensando: será que ele gostou? Será que eu o machuquei? Eu o faço feliz como ele me faz? Se eu falar essas coisas pra ele, no final ele vai dizer: ‘Félix, a gente está se entrosando, não é como nos filmes que tudo é perfeito de primeira ‘ e iria me dar um beijo finalizando com aquele ‘seu bobo’ típico dele. Até pra caçoar de mim ele é mais carinhoso que eu...coruja gorda...Como eu tive coragem? Mas também porque ele não perde um pouquinho de peso?”

“Vira essa boca pra lá, de qualquer jeito ele é muito bom...Esse coração que me acolheu sem nenhum questionamento...Eu acho que ele já sabe de tudo...Eu não tenho coragem de perguntar...Até porque ele vai dizer pra pensarmos no nosso futuro, não no meu passado.”

“Só que eu só tenho futuro ao lado dele.”

“Eu tenho certeza, eu lembro de tudo, eu não entendi errado e nem deve ter sido o vinho: ele saiu do banho sorrindo na meia luz desse quarto, eu já estava deitado e ele perguntou se precisava vestir o pijama. Eu cai na risada. Ele não tem o mínimo senso de humor...Talvez eu seja ácido demais...Ainda bem que ele gosta.”

“Levantei pra que ele tirasse minha camisa, um abraço, ele sempre é tão quente, eu tão frio. Ele me equilibra, eu o atormento.”

“Eu quero sempre controlar tudo, ele me ensinou que eu posso perder o controle com ele sempre que quiser...Ele sempre ri porque me deixa excitado, ele gosta de começar a me beijar, a me morder. Eu acho que sempre fico acariciando os cabelos dele nessa hora. Eu nem consigo pensar direito. De repente eu o puxo e invertemos tudo pra começar de novo, mais e mais.”

“O que faz a gente saber que alguém é o último até o dia que a gente morre ou que esse alguém morra? Eu queria ter a resposta, porque a certeza eu já tenho aqui comigo dormindo...Cada vez é melhor, é mais intenso e se eu tento explicar ele diz que daqui uns anos vamos nos acostumar um com o outro e vai virar rotina, que ele não quer ser traído só isso, que talvez viremos amigos e cada um vá pra um lado da vida que não se encontre mais...”

“Não, eu não quero isso. Eu quero lutar contra isso cada dia pra tê-lo sempre comigo. Conheço essa história...eu traí a Edith...ele foi traído pela lacraia...eu não conheço a dor de ser traído, ele conhece e quase perdeu o filho por isso...Eu mudei...Jamais faria isso com ele...Jamais faria isso comigo, deixá-lo viver na mentira.”

“Eu sei que o vinho não mexeu com a minha memória hoje. Eu lembro de tudo.”

“Cada beijo, cada abraço apertado...Ele rindo e sussurando...Eu sou calado...Ele fica me dizendo como gosta, se quer mais forte ou mais suava – como se eu não soubesse. Eu sei, eu acho que eu sei, só que me atrapalho ainda...É tanta vontade de deixá-lo com essa expressão dormindo que dá até medo.”

“Esse cheiro, eu gosto dele assim comigo, logo depois que tudo acaba é como se esse cheiro dele perpetuasse tudo...Fico mais enebriado...Não tem mais volta, ele deixou de ser meu melhor amigo...Eu digo que ele quer um namorado...Eu sei que ele quer um companheiro pra vida...Eu quero o Carneirinho comigo pra tudo.”

“Ele morde os lábios quando está gostando...Quando quer mais...Ele sorri e começa tudo de novo...Seis anos mais novo e quanta diferença...Ele é muito mais maduro que eu, muito mais resolvido...Eu sei dizer todas as vezes que fugi...Ele me conta todas às vezes que sai e ele ficou naquela casa ou no restaurante louco por minha causa. Eu também sou louco por ele. Falta coragem que ele tem de sobra.”

“Carbenet Sauvignon; será que esse vinho faz todo esse estrago? Será que foi isso que mudou minha vida? Eu tenho medo de pensar se esse era o tipo de vinho que tomavamos na casa dele naqueles jantares...Eu sei que era...qual a diferença pra essa garrafa aqui hoje em Angra?”.

Ele ajeitou as sombrancelhas, olhou as taças vazias sobre a mesinha de frente a janela. A cortina estava fechada, mas ele sabia que o mar estava lá fora. Não fôra o mar a sair do lugar.

“Ele me pede pra olhá-lo enquanto me massageia...Eu já faço um esforço enorme pra não gritar...Imagina ficar olhando direto pra aqueles olhos? Ele ri e diz que vai parar se eu não voltar a olhá-lo. Eu nunca imaginei que seria assim e que esse assim era o que eu sempre busquei até o dia que eu entendi que não havia como fugir dele. Se não fosse ele seria um pesadelo.”

“Eu sempre achei que sabia de tudo...Ele me ensinou tanto nesses dias aqui na praia...Quando vamos poder ficar assim de novo nessa tranquilidade? Quando eu vou poder ter isso de novo? Não que eu mereça...Eu mereço o nada...Ele me dá tudo...literalmente.”

Mais um sorriso. Aproveitou pra ajeitar os cabelos.

“Hoje ele fez algo que eu nunca imaginei..Que eu nunca esperei...sim foi o vinho...mesmo com o vinho, com ele mais relaxado e mais brincalhão que o normal, nada me tira esse momento...Espero que um dia eu consigo retribuir o que ele me fez, faz, sei lá...Nunca tenho a certeza que vou conseguir explicar isso, só quero que nunca termine.”

“Hoje ele não estava sóbrio...Eu tinha bebido...Talvez a única coisa que tenho alguma dúvida é que não lembro o que fazia com as mãos, meu corpo naquela hora...tudo sumiu...eu sumi...eu não quero morrer hoje...eu quero viver mais pra poder repetir isso hoje...tudo por um segundo evaporou e se refez...E não foi porque eu gozei...Não foi porque eu pedi pra ele fazer qualquer loucura mais um pouquinho...Nem porque eu salguei a santa ceia...Eu preciso disso de novo sem o efeito do vinho pra não ser tão devastador...Eu preciso ter a firmeza pra lidar com isso, porque assim como eu preciso, ele também merece.”

“Até agora ecoa na minha cabeça, eu sei que ele disse Félix, eu te amo.Eu sei.”

“Deve ter sido o vinho...minha imaginação...”

– Amor, te acordei? Oi, peraí, preciso ir buscar água. Tomei muito vinho eu acho. Que horas são? Já temos que ir?”

– Fica aqui Carneirinho, eu vou pegar pra você, preciso de ar... Eu já volto com sua água. Ainda é de madrugada, não são nem três horas...”