Fogo Celestial

Três minutos


Clary havia escapado do instituto.

Benjamin e sua mãe não á estavam mantendo como prisioneira, mas tiveram certeza de que ela estaria sempre sob vigilância, o que quer dizer que sair sozinha e simplesmente vaguear pela cidade estava completamente fora de cogitação.

Apesar de Clary ser realmente grata por tudo o que eles têm feito por ela, ela ainda presava muito a liberdade, sua tão batalhada liberdade.

Foram semanas sufocantes essas últimas e essa sensação de sufocamento e opressão só vinham piorando nos últimos dias. Uma sensação difícil de explicar: como se ela não coubesse em si mesma ­— e estar presa em uma igreja gótica de séculos passados não estava ajudando.

Clary achou que dar uma caminhada ajudaria, até porque seu humor também não andava nada bom — pobre Tommy. Mas não ajudou. Ela ainda se sentia angustiada, sufocada.

Clary parou no meio da ponte Blackfriars Bridge sob o rio Tamisa, fechou os olhos, respirou fundo e tentou se lembrar de um — dos muitos — “ensinamentos” que Benjamin estava tentando passar para ela desde que descobriram que ela também carregava o fogo celestial dentro de si. E o que ela lembrou foi justamente o primeiro deles.

Mas antes que qualquer uma das frases bonitas de Benjamin surgisse, sua mente foi para outro caminho — um que vinha sendo cada vez mais difícil de evitar. JACE.

Clary não podia parar de pensar nele, no que ele devia ter sentido, será que ele sentiu o mesmo que ela sente agora?

Provavelmente não. Jace sabia desde o início que algo estava errado com ele e Clary viu com os próprios olhos, como ele brilhava e queimava. Entretanto ainda assim ela não podia parar de se perguntar se ele tinha essa mesma urgência dentro dele, esse mesmo sufocamento, essa mesma sensação de que tinha que fazer uma força imensa para manter alguma coisa dentro.

Porque se ele tivesse — passado por tudo isso — Clary se sentiria culpada por tê-lo abandonado quando ele tanto precisava, precisava de apoio, de amigos, precisava dela.

E assim, como o pensamento veio, Clary fez com que ele se fosse, pois culpa não era algo que ela se permitiria sentir agora. Um dia, talvez, ela se julgasse por tudo o que fez. Hoje não.

Com uma respiração profunda ela evocou a voz de Benjamin, suave, potente e penetrante, e ela podia vê-lo e quase senti-lo dizendo: “Concentre sua mente... foque a sua força... sinta cada respiração... descubra o caminho que ela percorre, veja de onde vem... sua concentração, sua respiração. Sua força. Respire... respire... Encontre a força que não é sua, mas que está em você. Respire... e controle-a. não é ela que tem você, é você que a tem. Domine-a!”

Em seguida o golpe. Clary podia quase senti-lo também. Benjamin podia enganar qualquer um com seus mantras, mas não ela. Clary sabia, havia percebido que seu verdadeiro escape era a concentração física. E ele claramente estava disposto a fazer funcionar assim para ela também.

Depois de toda a conversa sussurrada sobre dominar a força, o golpe veio certeiro e dolorido em suas costelas. Por um momento ela perdeu o ar, mas durante esse tempo longe de tudo o que era familiar e confortável, lutar, reagir, se tornou quase instantâneo para ela. Então, foi natural se esquivar, abrir os olhos e revidar o golpe.

O que não foi nada natural foi a rapidez com a qual o caçador a sua frente escapou tão facilmente. E tão rápido que seus olhos mal podiam ver, ele lhe acertou outro golpe, e outro, e no meio do caminho para o quarto golpe ele disse com a voz ainda quase um sussurro: — Feche os olhos... sinta a força.

Clary achou seriamente que ele estava zombando dela e sua reação natural foi ignorá-lo e tentar dar seus próprios golpes, no entanto quanto mais ela tentava mais ele se esquivava e mais a acertava também.

Com irritação e frustração fluindo por sua pele Clary mal pode sentir chegando, o golpe que a derrubaria.

Benjamin a acertou nas pernas e ela já estava tão cansada e consciente de que ele não era realmente um inimigo — apesar de seu orgulho gritar para que ela continuasse em pé — ela própria achava que o que eles estavam fazendo era baboseira, por isso quando ela sentiu o impacto nas pernas se permitiu cair, e ficar no chão. E dessa vez ela fechou os olhos.

Um arrepio percorreu seu corpo ao sentir o hálito quente de Benjamin em seu ouvido, com a voz ainda mais baixa que um sussurro: — Você não está se concentrando. Você não está encontrando a força. Você está deixando ela vazar e dominar você. Eu posso ver.

Respirando fundo novamente Clary voltou a sua realidade. Lembrar daquele dia ajudou a acalmar sua “agitação”.

Ela ainda se sentia inquieta, toda vez que lembrava de como Benjamin explicou que podia vê-la brilhando: Como na primeira vez que te vi — ele disse — mas muito mais brilhante agora. Cada vez mais brilhante quanto mais você perde o controle. Não duvido que os outros poderão ver também se continuar assim.

Clary havia aprendido bastante desde então. O desgaste físico era uma boa saída para toda a força que ela sentia crescendo dentro dela, mas era também muito perigoso se não viesse com o controle certo.

Porque se ela não estiver no controle e ainda fraca, esgotada, a coisa toda, o tal fogo da espada, tomaria conta dela — ela podia sentir essa força celestial se arrastando, tomando conta de cada espaço de seu corpo e sua mente, devagar e cada vez mais rápido.

Por isso ela tomou os “ensinamentos” de Benjamin e se esforçou para entender toda a baboseira zen que ele dizia, até o ponto em que muitas de suas palavras já estavam fazendo sentido para ela.

E assim ela controlava sua mente para poder controlar seu corpo, que acabava por controlar a força do fogo celestial; mas, mais do que isso, ela estava começando a aprender a usar está força a seu favor. E até mesmo descobrindo que já há vinha usando a muito tempo, sem saber.

O fogo celestial aprimorou suas habilidades, por isso seu treinamento no navio deu mais resultados do que ela poderia esperar, e por isso todos os sonhos com tantas runas. As runas chegavam mais rápido do que sua mente poderia aguentar, então ela precisava de tempo para entender o que elas significavam e uma hora ou outra, cada uma delas teria seu significado revelado. ­— Por isso seu caderno de desenhos que agora servia quase exclusivamente para isso, para suas runas, para runas que ainda não tinham nome ou sentido, mas que já existiam.

Como a primeira runa do navio, a do sonho em chamas.

Clary tentou muito na época descobrir o que ela era. No entanto mesmo quando ela pareceu ter encontrado um sentido nela, Clary ainda não era capaz de explicar como ela funcionava.

Agora ela sabia.

Naquela dia no navio, Clary se sentia angustiada, presa, — e de alguma maneira que ela ainda não podia explicar — descontrolada.

Por isso a runa surgiu para ela no sonho: porque ela precisava. Então ela veio, como tantas outras runas já vieram a ela quando ela mais precisava.

Clary apenas não entendeu inicialmente, por isso precisou experimentá-la de tantas maneiras até encontrar a correta. Assim quando ela fez a runa em si e teve aquela ânsia tão grande de tomar um pouco d’agua ela pensou que sua mente lhe estava pregando uma peça. Mas quando ela tomou a água o alivio foi instantâneo, toda a angustia a sensação de pressão e o desespero se foram. Então Clary concluiu que a runa apareceu para lhe dar alivio.

E ela estava certa, mas isso não era tudo.

Mais tarde durante as semanas que se passaram desde aquele dia, a runa continuou tão negra quanto no momento que Clary a fez, ela não se desvaneceu até se tornar uma leve cicatriz como as outras.

No começo ela se preocupou que talvez houvesse algo errado com sua estela e ela não saberia como conseguir outra, mas então quando tudo continuou funcionando bem ela deixou de se preocupar.

Mas então, certo dia enfrentando um bando de lincantropos — capachos de Sebastian — ela se sentiu assim novamente, desesperada como se quisesse correr e correr e correr mas seus pés não saíssem do lugar. Aquela ânsia por água estava ali novamente mais forte dessa vez, como se ela fosse desidratar e virar pó se não conseguisse um pouco de água.

Ela terminou com os lincantropos o mais rápido que pode e imediatamente foi a procura de água. Ela não tinha tempo para encontrar água limpa, sua necessidade e toda aquela força que pareciam oprimi-la a impulsionavam a beber da fonte que ela encontrou em uma praça próxima e foi ai que ela sentiu a runa que ela havia feito no navio — que nunca havia desaparecido — arder, arder como se fosse uma runa recém colocada em sua pele.

Isso aconteceu outras vezes e Clary nunca entendeu por que ­— não até agora — ela achava que tinha feito um mau negócio colocando essa runa em si mesma. A runa parecia agir justamente quando ela se sentia mais forte, e então á limitava colocando a necessidade de ter água acima de qualquer outra coisa. E pior: era uma runa que não desvanecia.

Clary estava pensando em uma maneira de se livrar dela quando realmente descobriu para que ela servia: controle.

A runa que ela chamou exatamente assim — controle — impedia que o poder do fogo celestial tomasse conta dela, e causasse danos realmente grandes á ela e tudo a seu redor. A runa surgiu em sua mente quando o poder começou a se manifestar, sob toda a pressão e ansiedade pela qual ela passava. Ela não sabia, pelo menos não conscientemente que a espada há havia afetado também, mas claramente seu subconsciente sabia, e estava dando uma forcinha lhe enviando uma runa para ajudá-la.

Mas mesmo com sua habilidade de criar runas ampliada pelo poder do fogo celestial, ainda não seria o suficiente para conter, meses e meses de poder crescente dentro dela, e como logo ela viria a descobrir a falta de sono a má alimentação, frustrações, angustias e seu próprio desejo por mais poder, só causou um enfraquecimento mais rápido da runa controle.

A runa estava lentamente desvanecendo de sua pele, onde antes ela era completamente negra, passou para um marrom muito escuro, depois um tom mais claro, e outro até se tornar cinza e como estava agora, quase da cor de sua própria pele.

Neste momento Clary ainda não sabia, mas o momento que sua runa se rompesse, seria o seu momento de perder o controle também.

***

— Então quer dizer que essa runa simplesmente manteve tudo trancado dentro de você? — Perguntou Jace que estava completamente compenetrado na história que fluía dos lábios de Clary, ele não podia saber de todos os detalhes ou o que ela pensou na época, mas podia quase vê-la passando por tudo isso.

— Sim, foi mais ou menos isso.

— E me responda apenas uma coisa... — Jace manteve o tom de voz, mas por baixo de sua pele, a dor da possível resposta de Clary já ardia. — Você em algum momento pensou em compartilhar isso comigo?

— Eu pensei sim Jace, mas até então você já estava fazendo um trabalho melhor do que o meu. — Clary parecia realmente acreditar no que estava dizendo.

— Um trabalho melhor? Você está brincando? Eu estava e ainda ESTOU fazendo um inferno de um esforço para manter isso quieto. — Jace agora respirava pesadamente e realmente mostrava sua revolta. — Você podia pelo menos ter tentado, você podia ter dado essa runa para alguém trazer a mim, você podia ter me ajudado, você podia ter tirado a minha dor...Mas é claro que você não se importou, você com certeza não se importou quando foi embora.

Ninguém na sala disse uma palavra, simplesmente deixaram Jace colocar para fora cada palavra que ele não havia dito durante os últimos meses, principalmente o quanto ele culpava Clary.

É claro que ela deveria ser a mais atingida neste momento, Jace queria que ela se sentisse culpada. Ele não gostava que as pessoas vissem qualquer vulnerabilidade nele, mas se isso fizesse Clary entender o quanto ele sofreu por culpa dela, se ele a visse sofrer por isso também, ele não se importava em se expor.

Entretanto sua raiva e frustração somente aumentou quando Clary voltou a sua história, parecendo nem um pouco abalada por suas palavras. A incredulidade de Jace foi tamanha que ele levou alguns segundos a mais para fazer suas palavras terem sentido

— ... não era o suficiente. Toda a ajuda de Benjamin, toda a pesquisa de sua mãe e um irmão do silêncio que decidiu ajudar-nos não eram o suficiente para descobrir qualquer coisa a respeito do fogo celestial, de como ele agia ou como podia ser controlado.

“Haviam algumas antigas escrituras, onde o poder celestial em forma de fogo contido em um recipiente pensante era citada. O Irmão Cassius disse que em alguns livros dos caçadores de sombras um “recipiente pensante” era como os caçadores de sombras eram descritos, então tentamos ir por ai, mas não havia muita coisa.”

— Mas — Ben enfatizou bastante a palavra. — havia alguma coisa.

— Sim, mas não muita coisa. — Clary parecia relutante em dizer, o que quer que fosse que tivessem encontrado nestes livros, por isso Magnus decidiu dar uma mãozinha.

— Muito bem, já que nossa pequena grande caçadora não nos dirá o que era está “alguma coisa” diga você grande, grande caçador.

— Os livros tinham duas histórias dos “recipientes pensantes” com o “fogo contido”. A primeira era apenas sobre como eles eram incríveis guerreiros, e serviu para descobrirmos que segundo a história esse foi um dom dado pelo Anjo para que apenas o caçador escolhido tivesse o poder de aperfeiçoar as habilidades que já possuía. — Ben continuava a história, até ser interrompido por Clary.

— Sim, e ai já começa a discrepância, já que obviamente isso realmente não foi um dom me dado pelo Anjo.

— Talvez seja.

— Você não vai começar com isso de novo. — Clary lançou um olhar que claramente indicava que era melhor Benjamim ficar de boca fechada, mas o Haikai sequer pareceu perceber.

— A história não diz como esse dom foi dado ao caçador escolhido e nem quais foram os critérios para a escolha dele. Você poderia muito bem ter sido escolhida e a espada pode ter sido o meio que ele encontrou de te conceder o dom.

— Faz sentido.

Agora quem recebeu o olhar maléfico de Clary foi Simon, pelo comentário.

— Acontece, que se eu tivesse que classificar isso, eu com certeza o colocaria na sessão “maldições” e não na de “dons”.

— Faz sentido. — Jace repetiu as palavras de Simon, um pouco mais sombriamente agora, mas ele claramente concordava que isso era uma maldição e não um dom.

— Na verdade não faz. — Ben o cortou. — Ninguém nunca disse que um dom é algo fácil de se ter e uma maldição algo terrível de se carregar.

— O garoto está certo. Eu mesmo conheço muitas maldições que deixariam muita gente mais feliz do que ganhar um ano de compras da Prada. — Acrescentou Magnus.

— Sério? — Indagou Isabelle intrigada e também interessada demais.

— Você diria que eu ser um Haikai é maldição? — Ben perguntou. Ignorando o comentário de Izzy.

— Sim, eu diria. — Clary foi curta e direta e não hesitou um único momento para responder.

Mas isso não abalou Ben.

— Então, talvez, seja os seus conceitos sobre dons e maldições é que estejam errados.

— Ou talvez os seus...

— Gente, vamos nos concentrar aqui e deixar as discussões filosóficas para quando o ar estiver mais fresco.

Por um momento todos encarraram Isabelle, mas então Simon assentiu e deu um empurrãozinho para que a história continuasse.

— Bem, dom ou maldição, mas era dado pelo anjo, a escolhidos e então...

— O que me chamou a atenção é que os relatos sobre esses escolhidos para o fogo celestial são todos datados de antes do aparecimento de qualquer Haikai. — Benjamin puxou uma respiração e sua expressão sempre tão serena pareceu vacilar por um instante. — Irmão Cassius chegou a mesma conclusão que eu. Os recipientes pensantes que continham o fogo celestial, eram, são, os antecessores dos Hakai. Em algum ponto, os raros caçadores que carregavam o fogo celestial desapareceram, e então, logo em seguida os raros caçadores abençoados com o dom Haikai surgiram.

— Agora eu entendi toda a discussão sobre dom ou não dom. — Falou Alec silenciosamente. — Mas o que te levou a acreditar nisso? — Disse ele, agora mais alto.

— As características eram basicamente as mesmas, aprimoramento das habilidades de caçador, a pessoa escolhida tendo de alguma maneira um diferencial com os outros, o uso desse poder para favorecer a Clave e ajudar caçadores que não conseguem encontrar seu caminho, facilidade para línguas e um tipo de espiritualidade elevada e como eu já disse, o aparecimento de um sucedendo o desaparecimento do outro.

“O diferencial, estava na agressividade e impulsividade dos primeiros. Quase sempre o fim desses recipientes pensantes era a loucura. O que só deixa mais um ponto em comum com os Haikai. Mas enquanto o poder do Hakai vai definhando junto com sua mente o contrário acontecia com os que possuíam o fogo celestial.

O silêncio surgiu novamente no meio do grupo.

Jace estava novamente muito concentrado em seus pensamentos para acompanhar a pequena discussão que surgiu entre Ben e Magnus. Ele estava pensando nele mesmo.

Durante todo esse tempo ele atribuiu a sua paranoia a Clary. Primeiro por ela ter ido embora e sua fixação a encontrá-la, ele parecia vê-la em todo lugar e ouvi-la também. E então ele parecia ouvir todos que não estavam nem perto dele. É claro que isso não foi uma coisa que ele compartilhou com alguém, a Clave já estava a ponto de crucifica-lo por brilhar imaginem se soubessem que ele via e ouvia qualquer um que não estava ali.

Bem, no fim não foi preciso dizer nada, conforme os irmãos do silêncio conseguiam ajudá-lo a controlar o fogo, as vozes também se foram. E então ele pensou que estava enlouquecendo novamente e novamente pensou que a culpa fosse de Clary, já que a estranha ligação com ela surgiu assim que ela apareceu.

Mas agora ele se perguntava se isso não era apenas a loucura de quem Ben falava. E se ele não estava dando poder de mais ao que Clary podia fazer com ele. Ou culpando-a de mais também.

— E você chegou a toda essa conclusão com um único livro? Deve ser um livro realmente muito bom. — Jace disparou todo seu cinismo, para tentar aplacar seus próprios pensamentos.

— Na verdade o livro era bem ruim. Difícil de ler e mais ainda de decifrar. Muito antigo e empoeirado. Mas para quem não tem mais nada ele é bom o suficiente. E além do mais eram dois livros. — Benjamin respondeu ao cinismo de Jace com toda a sua naturalidade.

— E o que o segundo livro dizia? —Jace rosnou.

— O segundo livro falava justamente sobre a dificuldade de controlar essa agressividade e a inevitável loucura. — Foi Clary quem falou agora, e ela concentrou seu olhar em Jace. — E para colaborar mais ainda com as ideias surrealistas de Benjamin, falava sobre um elo, um vínculo, um segundo recipiente pensante que dividiria o peso de carregar o fogo celestial com o primeiro.

“Esse vínculo era comparado ao vinculo dos parabaitas. Diferente na forma de ser feito, mas igualmente intenso e um vínculo carregado até a morte.”

Clary parou de falar e Jace ordenou que sua mente voltasse a realidade, porque por um momento ele achou que podia sentir o arrepio que ele viu percorrer toda a pele de Clary.

— Nenhum dos dois livros contou como esse poder era recebido, mas esse segundo livro dizia muito claramente que quando era — recebido — duas pessoas o recebia e uma serviria para equilibrar a outra. Mas não era exatamente um manual, então eu não faço a menor ideia de como.

— E você nem pensou em voltar para descobrir. — Assinalou Jace.

— Na verdade, levou muito tempo para que ela acreditasse em alguma coisa desses livros, e mesmo assim, como você pode ver até hoje ela não tem muita fé. — Ben falou, um tanto com um pouco de desgosto na voz.

— Então esses livros não ajudaram em muita coisa além da pequena constatação histórica de que talvez, caçadores de sombras portadores do fogo celestial são os antecessores dos Haikai?

— Exatamente. — Concordou Clary, enquanto ao mesmo tempo Benjamin tinha outra opinião.

— Não exatamente. — Disse ele.

— Como assim. — Magnus quis saber.

— A pequena constatação como disse Isabelle, me serviu para chegar à conclusão de que se o fogo celestial era algum tipo de antecessor ao poder Haikai, ele foi substituído por sua falta de controle talvez, mas o Haikai também exige muito para ser controlado então talvez, e eu disse talvez, as mesmas técnicas que eu utilizei servissem para Clary.

— E foi assim que nós começamos o nosso treinamento. — Concluiu Clary.

— Sim, foi, mas como eu disse Clary não acreditava muito na sua eficiência e foi realmente... Difícil convence-la a levar a sério. — Benjamin enfatizou com uma careta a palavra difícil. — Eu acredito que muito do que os irmãos do silêncio aqui usaram com você foi similar também Jace.

— Então, nós precisamos da mesma coisa para manter o controle? — Jace ainda parecia um pouco incrédulo, e não era o único.

— Não faz muito sentido para mim. Porque, sem ofensa Clary, mas parece que funcionou muito mais para Jace do que para você. — Isabelle deu voz a questão na mente de todos ali, mas quem respondeu não foi Clary, nem Jace e nem Benjamin e sim seu irmão.

— Foi como Magnus disse, o fogo celestial em Jace foi consumido, ele tinha o combustível que era a maldade dentro dele e esse fogo se consumiu e desvaneceu, não sumiu, mas deve ser muito mais fraco do que o que está em Clary, que apenas entrou e sem nada para consumir, permaneceu inteiro e em sua plena potência.

— Claro que você prestou atenção no que Magnus disse. — Murmurou Simon, e de recompensa conseguiu um risinho de Izzy e de Clary também.

— Mas é exatamente isso, pelo menos é nisso que acreditamos. — Ben concordou.

Jace levantou-se de seu lugar à janela e caminhou até a bancada da cozinha e depois de volta a janela, quando ele se virou viu que todos o acompanhavam com o olhar, e então decidiu perguntar:

— Você estava dizendo sobre o dia em que o recipiente foi frágil de mais para o poder, e eu tenho que dizer depois de toda essa história de “recipiente pensante” soa até engraçado. No entanto, o que aconteceu?

— Eu derrotei Benjamin. — Disse Clary com um sorriso.

— Não teve graça alguma. — Retrucou o Haikai.

— Qual é Ben, então você é um mau perdedor? — Era Jace quem tinha um sorriso agora, pensando em Benjamin o todo poderoso perdendo para uma garota que era a metade dele, em todos os sentidos.

— Não se trata do que eu perdi, se trata do que Clary quase perdeu. — Ben ainda tinha um semblante muito sério.

— E o que foi que ela quase perdeu? — Simon quis saber.

— A vida.

O sorriso de Jace imediatamente se dissolveu, e os outros que até esse momento haviam se descontraído um pouco com a insinuação de graça feita por Clary voltaram a ficar tensos.

Mas então, Clary estava rindo novamente.

— Até parece que essa foi a primeira vez Benjamin, ou a última pra dizer a verdade.

— Talvez não tenha sido nem a primeira nem a última, mas com certeza foi muito assustadora para eu achar qualquer graça.

— É como os mundanos dizem: é rir pra não chorar. Se eu fosse derramar uma lagrima para cada vez em que eu quase morri, talvez eu estivesse seca agora.

—Muito bem: O QUE ACONTECEU?? — Isabelle estava perdendo a paciência.

— Quando eu sai do instituto aquele dia, sem que ninguém soubesse, eu não estava procurando problemas, juro que não estava — Clary acrescentou diretamente para Ben. — Mas... Eu certamente encontrei problemas, depois de muito tempo sumida, e com rumores de que eu havia saído ferida da batalha com os demônios no bar, Sebastian intensificou sua procura por mim, nem que fosse por uma carcaça, como eu ouvi naquele mesmo dia.

“Parecia que cada ser do submundo estava tentando agradar Sebastian, assim que um deles me viu, correu a notícia para os seus verdadeiros capangas então não demorou para que os demônios aparecessem.

“Eu não me lembro realmente de muita coisa, são flashes e imagens que eu não consigo colocar na sequencia certa. Em um momento eu estava no meio de uma praça com os demônios, e estava até feliz por ter uma luta de verdade depois de tanto tempo. Mas então aquela angustia e opressão vieram com muito mais rapidez do que eu me lembrava e dessa vez não houve sede, nenhuma ânsia por água, só mais desespero, mais vontade ser acertar e partir e quebrar cada pedaço daqueles malditos demônios, me lembro de chegar a olhar para minha runa controle, mas ela não estava mais lá.

“E de repente eu estava no instituto sem me lembrar de como cheguei lá, me lembro da porta se partindo sobre meus pés, me lembro de Tommy e Katherine, seus rostos horrorizados me lembro de uma intensa luz, e Benjamin. No chão, sem se mover, Katherine chorando sobre ele. Mas tudo muito confuso, até a escuridão novamente.”

As palavras de Clary foram ficando mais baixas e mais lentas conforme seu olhar ficava mais vidrado e sem vida, Jace só podia imaginar que ela estava tentando juntar as imagens que ela tinha, mas sua mente não dava sentido.

Todos permaneceram em silencio e transferiram seu foco de Clary para Ben. Se ela não se lembrava, ele com certeza faria.

— Eu não sei o que aconteceu na praça com os demônios, não sobrou ninguém para contar. — Como todos esperavam Ben continuou, tentando preencher as lacunas da mente de Clary. — Entretanto de alguma maneira Clarissa conseguiu encontrar seu caminho até o instituto, e eu digo de alguma maneira porque ela... não sei como explicar isso, mas ela não era ela mesma. Ela não parecia reconhecer ninguém, e não respondia a qualquer suplica também.

“Ela invadiu o instituto, quebrando qualquer coisa que estivesse em seu caminho. Todos nós tentamos conte-la é claro, como ela estava acabaria machucando a si própria. Tommy foi o primeiro que ela lançou na parede, ele nem teve chance.

“Ela parecia ter uma força ainda maior e uma fúria que ninguém podia explicar. Não parecia ter um objetivo também, ela só andava sem destino dentro do instituto, mas não dava ouvidos a ninguém. Minha mãe diz que de alguma forma, por dentro ela ainda tinha alguma consciência e sabia que nós saberíamos como ajudá-la.

“Mas eu não sabia, eu realmente não sabia o que fazer, ela não ouvia, ela não parava, e ela parecia estar, eu não sei, tentando escapar.”

— Como assim escapar? — Isabelle interrompeu.

— Ela arranhava os próprios braços, puxava os cabelos, gritava, e então quando ela quebrou uma janela e usou um pedaço de vidro para fazer cortes em todo o seu corpo, eu tive de pará-la. A força.

“Mas tudo o que Clarissa ignorou enquanto eu tentava passar para ela nas nossas “sessões” ela parecia se lembrar naquele momento. Eu nunca a vi tão forte ou rápida ou concentrada, eu não podia conte-la e estava desviando de seus golpes com muita dificuldade, até que não conseguia mais.

“E o pior é: mesmo que eu pudesse chegar até ela para pará-la, eu não poderia segurá-la por muito tempo. Só depois que as coisas se acalmaram e nós pudemos cuidar dos ferimentos é que ficamos sabendo que além das costelas quebradas Tommy tinha queimaduras de terceiro grau, nas mãos nos braços e em parte da barriga.”

Apesar de Benjamin haver dito que não havia graça alguma no acontecimento ele claramente achava que havia algum fascínio. Porque era isso que era visível em seu sereno rosto enquanto mostrava suas lembranças: fascínio.

— Ela brilhava, tão intensamente. Tão quente e vibrante que se não fosse terrível seria lindo. Ainda assim eu tentei, e tentei e tentei, até não poder mais. Eu nunca, em toda a minha vida havia batalhado com alguém que sequer me cansasse — e não é prepotência, é apenas um fato. — e lá estava eu, mal conseguindo me erguer do chão. Quando ela chegou a sala das armas e conseguiu uma das espadas com que tanto treinamos, eu realmente achei que era o fim, meu fim.

“O olhar dela. Ela não reconhecia ninguém, ela não hesitaria em me atravessar com a espada.”

Neste momento ouviu-se um “humpf” de Jace, e Ben parou de falar, enquanto todos olhavam para Jace, ele disse:

— O que? Eu só acho que ela não hesitaria mesmo que te reconhecesse. Eu sou um exemplo.

O comentário maldoso de Jace pareceu ferir mais a Benjamin do que a própria Clary, que estava tão impassível quanto Jace costuma ser.

Por fim Ben decidiu continuar.

— Mas ela não tinha a espada para mim. Ela dirigiu a espada para o próprio coração. Eu consegui chegar até ela a tempo para parar antes que acertasse seu coração, mas não a tempo para que não a acertasse de todo.

“Ela tinha a espada em suas costelas, e tentava, ao invés de retirá-la, penetrá-la ainda mais. Tudo o que eu podia fazer era ficar ali, segurando-a. E então, a próxima coisa que eu me lembro é de acordar na enfermaria.”

— Mas o que é, isso a síndrome da perda de memória? — Todos ignoraram Magnus.

— Foi Katherine quem disse, que Benjamin me segurou por tanto tempo que acabou perdendo a consciência ali mesmo. O que ninguém consegue explicar é como Tommy que me tocou por cinco segundo teve queimaduras de terceiro grau e Benjamin que me segurou por tanto tempo teve apenas leves queimaduras.

“Bem, quando Benjamin desmaiou, Katherine diz que eu pareci “voltar a mim” ela diz que eu reconheci Ben que eu arranquei a espada das minhas costelas com um grito, o brilho desvaneceu e eu cai inconsciente também.

“Mas eu juro que me lembro de ouvir as palavras: redit ad te ... regere vis invenire..., antes de você desmaiar.”

— Eu não disse, eu não poderia nem falar, talvez eu tenha pensado, eu disse coisas muito parecidas a você antes, talvez você tenha se lembrado delas e feito o mantra para si mesma.

— Regressa a ti... encontre a força... controle-a. — Traduziu Jace.

— Sim. — Confirmou Clary.

— Eu disse. — Jace falou como se tivesse alguma dificuldade para isso.

— Como assim? — Era Alec quem estava perguntando.

— Essa estranha ligação que eu sinto com você. O que você disse sobre dois caçadores carregarem o fogo celestial com um vínculo que ajuda um ao outro a encontrar o equilíbrio. — Jace respirou fundo e com o cenho franzindo ele continuou. — Uma noite, eu acordei suando e brilhando, como eu não fazia desde que tinha acabado com os irmãos do silencio, mas aquela noite eu simplesmente acordei assim, e eu tinha esse pensamento em você... como se você estivesse perdida. Não sei explicar, não foi um sonho, era só uma sensação, como se você estivesse indo... e se perdendo. Eu achei que era ridículo, você não estava ali já a muito tempo. Mas mesmo assim eu disse, eu disse: regressa a ti... encontre a força... controle-a. Várias e várias vezes.

“Eu não sabia nem porque, mas eu me senti melhor depois.”

***

Neste instante o olhar de Jace e Clary se encontraram, eles ficaram assim somente se olhando por tanto tempo que Clary se lembrou de um fato cientifico mundano que ela estudou uma vez: quando duas pessoas apaixonadas se olham nos olhos por três minutos as batidas de seus corações sincronizam.

E ela se lembrou disso porque ela poderia jurar que podia ouvir as batidas do coração de Jace, e ele batia exatamente como o seu. No mesmo compasso, no mesmo ritmo, no mesmo mundo, com a mesma força, com a mesma esperança.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.