FLORES E MONTANHAS

Chiisana Hana

CAPÍTULO I

20 de janeiro

Quando começo a achar que devia ter ficado na minha terra, lembro-me que vovô sempre dizia que eu precisava estudar, ter uma profissão, ser independente. É a voz dele ressoando na minha memória que tem me dado força. Eu não podia ficar em Rozan plantando e colhendo arroz a vida inteira, sendo dominada por um marido arrogante, criando o filho dele, até morrer de velhice. Foi graças ao apoio de vovô que pude recusar aquele pedido de casamento. Ele recebeu duras críticas por ter deixado a decisão nas minhas mãos, mas se manteve firme apesar de tudo, e continuou me estimulando a seguir meu caminho.

Foi por ele que terminei meu curso de Medicina. Ainda que ele não esteja mais nesse mundo, é por causa da força que ele me deu que agora estou me mudando para Tóquio.

Quando o convite para trabalhar no hospital da Fundação Graad surgiu, eu não pensei duas vezes. O hospital pertencia ao senhor Mitsumasa Kido, grande amigo do meu avô, também já falecido. Os dois conheceram-se numa das visitas do senhor Kido a Rozan, onde tinha negócios. Apesar da brutal diferença entre o milionário e meu humilde avô, os dois ficaram amigos. O senhor Kido voltava lá com alguma frequência, às vezes levando a neta. Então nós duas também acabamos ficando amigas. Quando contei a ela que tinha terminado a especialização, ela me ofereceu a vaga no hospital. As condições de vida e de trabalho muito melhores do que na China e o apoio dela me convenceram, então aceitei a proposta. Algumas semanas depois, desembarquei no aeroporto e peguei o metrô. O plano era descer no centro e pegar um táxi para chegar até a mansão Kido. Mas como eu sou uma pessoa muito sortuda, na confusão da saída, perdi não só o papel com os endereços dela e do hospital, mas também meus documentos. Belo começo, Shunrei. Belo começo. Bem feito para eu deixar de ser tonta. Estava na delegacia esperando para fazer um boletim de ocorrência, mas enquanto pensava nessas coisas, comecei a chorar. Não queria, mas foi inevitável. É isso, toda a tensão da mudança acabou em lágrimas. Que ridículo! Mas aí, um policial se aproximou…

– Você está bem? – ele perguntou. – Posso ajudar em alguma coisa?

– Estou sim – respondi sem erguer o olhar. – Só estou com muita raiva de mim mesma. Cheguei da China hoje e já perdi todos os documentos.

– Espere um pouco. Só vou resolver uma coisa e já volto para cuidar do seu caso.

Comecei a me sentir mais calma. Ele falava com tranquilidade e segurança, e isso era tudo que eu precisava naquela hora. Só então ergui o rosto e reparei nele enquanto se afastava. Tinha cabelos negros e compridos, amarrados num rabo de cavalo baixo, um rosto com feições exóticas e olhos claros. Embora o conjunto formasse uma combinação estranha, eu o achei bonito. Não demorou muito e ele voltou.

– Bom, vamos cuidar de você agora – ele falou, com um sorriso encantador. – Disse que perdeu os documentos... Por via das dúvidas, vamos aproveitar e registrar o boletim de ocorrência. Eu acho que você nem precisará tirar novos documentos, mas caso seja realmente necessário, terá de estar com o B.O.

Ele tinha razão. Não precisei tirar documentos novos. Estava tudo lá na seção de achados e perdidos do metrô. Claro, né? Nervosa do jeito que eu estava, não tive a frieza de pensar nisso, dá pra acreditar?

Depois de resolvido o problema, ele me levou para tomar um café perto da estação.

– Você deve estar me achando uma idiota – eu disse, bebericando um cappuccino.

– De jeito nenhum. Isso acontece todo o tempo.

– Nem assim me sinto menos idiota… – confessei. Ele sorriu. Novamente achei o sorriso encantador. Conversamos mais um pouco e foi bom ver que a conversa fluía. Não sou muito de dar conversa a estranhos, geralmente fico quieta, mal abro a boca, mas com ele eu não sei... simplesmente era diferente.

Quando comentei que me hospedaria na residência da família Kido, ele se ofereceu para me deixar lá. Eu não devia aceitar, mas depois de tanto estresse, seria legal essa carona. Quando ele pegou a carteira para pagar a conta, eu me opus.

– De jeito nenhum – eu disse. – Já me ajudou muito. Essa eu pago. Faço questão.

– Está bem, não vamos discutir por isso – ele disse, e novamente deu aquele sorriso.

Paguei a conta e então fomos para a casa de Saori. Fiquei pensando que ela ficaria chocada se tivesse me visto chegando na viatura! Quando paramos no portão e me identifiquei através do interfone, eles demoraram um tempo para abrir. Provavelmente viam através da câmera que a visitante da Saori tinha chegado no carro da polícia...

Quando finalmente entramos, percorremos o caminho do portão até a frente da casa, que ainda era exatamente como eu me lembrava. Estive lá uma vez quando era criança e me recordo de ter ficado meio hipnotizada pelo lugar. Nunca tinha visto nada parecido e, na minha mente infantil, era daquele jeito que os reis e rainhas viviam.

– Está entregue – o policial disse quando parou o carro.

– Muito obrigada pela ajuda, senhor Suiyama... – eu disse, lendo o sobrenome dele na tarjeta de identificação pregada à farda.

– De nada, senhorita Tzeng – ele respondeu, ajudando-me com a mala. – Até qualquer hora. E cuidado para não perder os documentos de novo!

– Vou tentar – eu falei rindo e acenei para ele, que me deu de novo aquele sorriso e, bom, eu me derreti um pouco. Não tinha como não me derreter...

Na casa, o mordomo de Saori me recebeu e anunciou formalmente que ela desceria em alguns minutos. Enquanto isso, levou minha mala e minha bolsa para o quarto onde eu ficaria hospedada e disse que as coisas que mandei antes já estavam lá. Lembro-me dele também. Andava sempre com o senhor Kido, parecia um cão de guarda. Dava um pouco de medo quando eu era criança, mas agora até que me pareceu ligeiramente simpático.

Saori não demorou a aparecer, com aquele ar de nobreza que ela tem desde a infância, mas também com aquela melancolia no fundo do olhar. Nos abraçamos e conversamos um pouco, colocando parte dos assuntos em dia. Depois ela mesma levou-me até o quarto e repetiu o que tinha dito quando me convidou: que eu poderia ficar lá o tempo que quisesse e que eu me sentisse em casa. Sei disso, mas realmente espero que esse tempo seja breve. Não gosto de incomodar ninguém e visitas demoradas são incômodas, não importa o quanto você goste da pessoa. Por isso, assim que eu estiver ambientada na cidade e com as finanças organizadas, procurarei um lugarzinho para alugar. A melhor coisa é ter um cantinho só da gente, mas agora infelizmente não dá. Ainda tenho que terminar de pagar algumas dívidas da faculdade, da especialização, do mestrado, além da passagem pra cá, entre outras coisas. Poder me hospedar um tempo aqui vai ser fundamental para eu me organizar. Sempre serei grata a Saori por isso, mas quero ter um cantinho só meu outra vez. Um lar como era a casa de Rozan... A casa do meu avô, onde eu cresci, onde eu fui feliz.

O quarto de hóspedes da mansão Kido também ainda era como eu lembrava: imenso, ricamente decorado em estilo europeu e com aquele banheiro cinematográfico. Lembro que na infância fiquei encantada com o tamanho dele e com aquela banheira incrível. E aquilo era apenas um quarto de hóspedes! O da Saori era muito mais impressionante. Hoje me incomoda um pouco esse luxo. Sou simples, basta um cantinho confortável para eu ficar bem, mas poder ficar esse tempo aqui vai ser realmente muito importante.

No dia seguinte, Saori mandou o motorista me levar ao hospital. Sei muito bem que não faz parte da minha realidade andar de motorista e que não posso ficar abusando dessa comodidade. Aceitei apenas para conhecer o caminho até lá. O motorista, um senhor muito simpático, foi me explicando tudo e indicando que linha de metrô tomar, em que estação descer, tudo muito detalhado. Anotei cada palavra, pois no dia seguinte eu iria de transporte público.

Quando cheguei ao hospital, fiquei surpresa. Era maior e muito mais moderno do que eu pensava. Uma atendente me recebeu muito bem e outra me levou até a sala onde vou atender. Em seguida, fui conhecer a equipe. Eu estava com medo, mas todos foram receptivos, apesar de alguns terem insistido em se referir a mim como "a médica chinesa" ao invés de "a nova oncologista pediátrica". Espero que com o tempo isso mude. Apresentações feitas, passei a examinar os prontuários dos pacientes em tratamento, principalmente daqueles internados. Queria estar a par de tudo antes de ir visitá-los e somente quando terminei, fui à ala oncológica infantil para ver meus novos pequenos pacientes.

Cumprimentei-os alegremente ao entrar. As crianças olharam para mim desconfiadas e algumas responderam baixinho. Depois fui passando pelos leitos, conversando com elas e com suas mães.

No final do dia, saí de lá satisfeita. Terei muito trabalho, mas sinto que vou gostar dessa nova jornada. Eu sei que vou.

De volta à casa de Saori, tomei um bom banho e desci para o jardim. Estava disposta a escrever sobre esses primeiros dias em Tóquio e não me importei com friozinho que fazia lá fora. Guardadas as proporções, esse jardim lembra a minha terra e o frio só acentua a semelhança. Sinto falta da cachoeira, das montanhas, do bambuzal, do cheiro característico da montanha onde eu nasci. Já faz tanto tempo que deixei tudo para trás... Mas era preciso seguir adiante...

Agora também preciso parar de escrever, pois o senhor Tatsumi está chamando para o jantar.

Continua...