Flor do deserto

Capítulo 8- Passado sombrio


A lua estava cheia, e em sua grandiosidade iluminava o céu. Toda Londres dormia e perdia o espetáculo celeste. Entretanto, na rua Baker, no 221c, uma moça estava sentada num sofá, posicionado em perpendicular com a parede onde ficava uma janela; e ela observava por essa janela a apresentação nos céus. Seu rosto recebia a luz noturna, e o rastro das lágrimas refletiam o brilho da lua. Então fechou os olhos e sua mente voltou ao passado. A bondosa senhora que estava sentada de costas para a janela e de frente para a moça, pacientemente observava a jovem mergulhada silenciosamente em pensamentos. Emanuelle respirava lenta e profundamente, escolhendo cada palavra que usaria. Depois de algum tempo em silêncio, finalmente falou, ainda com os olhos fixos na lua:

— Minha mãe nasceu e foi criada no Brasil. Ela era belíssima, e tinha os olhos mais doces que eu já vi. Trabalhava como representante de uma empresa de cosméticos. Já o meu pai era um rico comerciante egípcio, e era muçulmano. Em uma de suas transações comerciais, ele viajou para o Brasil e acabou conhecendo minha mãe. Ele a seduziu, e ela se apaixonou. Meus avós foram totalmente contra…-Emanuelle respirou fundo, e olhou a sra Hudson nos olhos, e falou em tom pesaroso- ela tinha apenas 19 anos, sra Hudson...19 anos -lamentou, meneando a cabeça, então continuou- ele a convenceu a fugir para o Egito. Então ela foi, ilegalmente e sem a aprovação dos meus avós. Ele a iludiu. Pouco tempo depois, ela engravidou de mim, ela ficou muito feliz. Mas meu pai não, ele queria que o seu primogênito fosse um menino, e ele atribuiu a culpa para minha mãe. Por causa disso, ele casou-se com outras mulheres.

— Ele deixou sua mãe? -perguntou a senhora.

— Não, na religião do meu pai é permitido ter até 4 esposas, mas ele fez isso por raiva, para atingir a minha mãe -Emanuelle respirou fundo antes de continuar- ele passou a odiá-la, sra Hudson, ele a maltratou muito. Eu fui ensinada na doutrina do islamismo, e cresci vendo minha mãe sendo brutalmente maltratada, e ficava por isso mesmo, não havia justiça -Emanuelle parou, baixou a cabeça e começou a chorar- Eu perdi minha fé quando eu tinha dez anos, depois de anos vendo ele espancá-la quase diariamente. Ele também a violentava. Várias vezes eu ouvia os gemidos e os pedidos de socorro dela vindos do quarto, e eu sabia o que estava acontecendo lá, e não podia fazer nada... - Emanuelle desatou a soluçar e a chorar amargamente, a sra Hudson sentou mais perto e a abraçou. Quando Emanuelle se acalmou um pouco, soltou a senhora e continuou, enxugando as lágrimas- eu sempre gostei de estudar sabe? E com toda essa situação eu decidi que iria sair dali, que não teria o mesmo destino que minha mãe. Mas quando eu fiz treze anos menstruei pela primeira vez, e meu pai disse que iria me casar com um amigo dele, cerca de vinte anos mais velho do que eu. Eu disse não, disse que não iria me casar, que queria estudar e que não queria mais seguir o islamismo. Ele me bateu muito por causa disso -Emanuelle se levantou e pegou o envelope pardo que Sherlock lhe entregou mais cedo, que estava numa mesinha de centro, em frente ao sofá. Ela abriu e pegou a impressão do jornal e entregou para a senhora, e continuou - então ele decidiu me anunciar no jornal, para quem pagasse mais. Disse que eu não merecia mais me casar com o amigo dele, que qualquer um poderia me possuir, pois eu era uma prostituta.

— Que canalha -murmurou a sra Hudson.

— Veja o anúncio. Na foto, se você olhar bem, dá até para ver um hematoma no meu pescoço. Eu me senti na beira de um abismo sra Hudson, senti que minha vida tinha acabado. Mas então minha mãe tomou coragem e me salvou. Estava havendo um conflito na Síria na época, e muitos refugiados estavam abandonando o país. Minha mãe conseguiu contactar meus avós com a ajuda de uma missionária, que era sua única amiga. Eles concordaram em receber a mim e à minha mãe, mas ela disse que não iria, tinha medo do que meu pai seria capaz de fazer, sendo melhor que só eu escapasse. Então, sob protesto, meus avós acabaram aceitando. Então ela bolou um plano: eu iria sair do país como uma refugiada síria. Chegou o dia, me despedi dolorosamente da minha mãe e ela me deu uma foto dela e dos meus avós, era a única que ela tinha deles na verdade, para que eu pudesse reconhecê-los. Então saí de casa pela manhã. Meu pai pensava que eu iria para a escola, mas na verdade fugi para a casa da missionária, orientada por minha mãe. Ela viajou rapidamente de carro comigo e cruzamos clandestinamente as fronteiras e entramos na Síria. Lá a missionária tinha os contatos certos, e me infiltrou entre os refugiados que iriam para o Brasil. Eu fiquei junto com um casal de idosos que sabiam falar um pouco de português, eu não sabia falar nada. A viagem durou uma semana. Passei fome e frio, não dormi direito por dias, mas finalmente estava livre. Cheguei no Brasil, e meus avós estavam me esperando. Eram quase iguais à foto, a não ser por alguns cabelos grisalhos que surgiram e um discreto ganho de peso de ambos. Me abracei e chorei, e eles choraram muito comigo. Embora não entendesse nada do que eles falavam, eu me senti leve, senti uma chama de esperança crescer em meu coração. Finalmente me sentiria em casa, e teria paz. Eles pagaram um professor particular para me ensinar a língua, e dentro de um ano eu estava quase fluente -Emanuelle sorriu discretamente- eles também conheciam as pessoas certas, entende? Então ganhei tudo novo: identidade, certidão de nascimento, e um novo nome. Me inspirei no nome deles, juntei Emma ,que era o nome da minha avó, com Manoel, o do meu avô. Então de Aysha, passei a ser Emanuelle; embora que teimei em jogar fora a minha certidão de nascimento verdadeira, um dia eu poderia precisar dela.

— Nossa minha querida -interrompeu a gentil senhora, num suspiro- nunca imaginei que você tinha passado por tantas coisas assim, coitadinha.

— Infelizmente isso não é tudo -o olhar da jovem ficou sombrio- aos poucos eu fui me recuperando de todos os meus traumas, passei por várias sessões com psiquiatras e alguns tratamentos. Meus avós tinham uma boa condição financeira, e puderam bancar tudo isso. Mas no meu aniversário de dezesseis anos, eu recebi no meu e-mail uma mensagem da minha mãe. Na verdade desde que eu fui para o Brasil, eu recebia um email uma vez por ano dela, sempre no dia do meu aniversário, para não levantar suspeitas, já que lá eu estava desaparecida. Quando eu abri a mensagem, vi que era um vídeo e quando eu fiz o download e o abri, o meu mundo caiu -disse com a voz trêmula, afetada por um choro silencioso que novamente se iniciou- minha mãe estava de joelhos no chão, vários hematomas espalhados pelo seu corpo, seu nariz e sua boca sangrava. Puxando-a pelos cabelos estava meu pai, e na sua outra mão havia uma faca muito amolada. Ele colocou a faca no pescoço dela e disse em árabe, na direção da câmera: “espero que você goste de ver isso, esteja onde você estiver, sua prostitutazinha” .Então ele passou a faca no pescoço dela, e a degolou…eu vi tudo...o sangue descendo e sujando toda a roupa, e ela tombando no chão em seguida -a doutora engoliu um soluço, e colocou o rosto entre as mãos, ficando em silêncio.

— Oh minha querida...-disse alisando a cabeça da doutora- e a polícia? não fizeram nada?

— Não...não havia nada que pudesse ser feito. Apesar dela ser de origem brasileira, ela também era egípcia agora, e isso deveria ser apurado pelas autoridades locais, o que sabíamos que não iria acontecer. O meu avô quando viu o vídeo passou mal e foi socorrido, e no hospital descobrimos que ele tinha sofrido um infarto. Foi muito difícil aquele dia, e a saúde do meu avô nunca mais foi a mesma, ele adoeceu de tristeza. Dois anos depois ele veio a falecer, algumas semanas depois que eu entrei na faculdade de medicina - a doutora suspirou profundamente- foi muito difícil pra mim. E quando eu estava na metade do curso, a minha avó faleceu. Fiquei sozinha, sem saber como eu iria continuar. Mas então o advogado dos meus avós, um exemplo de um homem de Deus, estava de posse do testamento dos meus avós e cuidou de tudo para mim. Quando eu atingi a maioridade, eu pude assumir tudo que eles deixaram para mim, o que foi uma quantia muito boa em dinheiro, como também a casa onde eles moravam. Mas o legado maior que eles me deixaram, sra Hudson, foi o amor...eles eram um casal maravilhoso e me trataram com um carinho e um amor que eu nunca senti na minha vida. Foram os anos mais felizes da minha vida os que passei ao lado deles. Bom, com a quantia que eles deixaram, eu consegui me manter até terminar o curso. Então fiz a prova de especializações e fui aprovada, então alguns meses depois juntei os restos das economias que tinha, e vim para a Inglaterra.

— Você pretende voltar para o Brasil?

— Sinceramente não; nada me restou lá. Meus avós não tinham outros filhos, então eles eram a única família que eu tinha. E já que consegui o meu visto de autorização de moradia, então pretendo ficar por aqui mesmo. Vou começar a minha vida de novo.

— Puxa...eu sinto muito, muito mesmo por tudo o que você passou minha querida. Mas, se tem algo que posso dizer, é que veja quem você é hoje. Linda, jovem, médica e começando uma vida nova! Você deu a volta por cima de tudo!

— Nem tudo, sra Hudson. Ainda tenho minhas crises de ansiedade e outros traumas que não consegui me livrar. Ontem mesmo, quando o irmão do sr Holmes veio visitá-lo e o clima da discussão estava bem tenso, eu fiquei com uma péssima sensação no estômago, fruto de todas as brigas que presenciei na minha infância entre meu pai e minha mãe.

— Eu entendo minha querida. Mas eu lembro de uma vez ter lido a seguinte frase: “cada cicatriz é uma confirmação que uma ferida sara, sendo elas marcas de superação que só os guerreiros possuem” -disse enquanto esboçava um sorriso gentil e segurava as mãos da jovem- você é muito forte. Não se subestime, acredito em sua força de vontade, e um dia você vai se ver livre de tudo isso -Emanuelle sorriu, esperançosa com o que a sra Hudson falou- e não ligue para o que o Sherlock falou de você, ele não conseguiria entender. Ele é brilhante e genial, mas a mente dele não consegue entender a complexidade das emoções humanas…

— Isso não é de todo verdade, sra Hudson -uma voz grave irrompeu do canto escuro da sala, enquanto saia da escuridão e se colocava à luz da lua, quase matando as duas mulheres de susto. Era Sherlock com seu roupão azul, e o cabelo mais bagunçado do que o normal.

— Sherlock!! - Falaram as duas surpresas, ao que Emanuelle prosseguiu- Você invadiu a minha casa! De novo!

— Claro que sim! Quem você acha que colocou os travesseiros ao lado da sua cama, para você não bater a cara no chão?

Emanuelle corou. Se estivesse mais claro, todos a poderiam ver ficar da cor de um tomate. Então lentamente perguntou:

— Você...estava me vendo dormir?

— Eu vim ver se você estava bem. Quando vi a violência com que você se debatia na cama, imaginei o que aconteceria depois. De nada -disse tão rápido que a jovem quase não conseguiu entender.

— O-obrigada, eu acho.

Os três ficaram calados por um tempo. Então a doutora quebrou o silêncio, falando com Sherlock, que estava olhando a lua de frente para janela, com as mãos para trás:

— Bom, agora você tem todas as informações que precisa para seu caso, não é? - falou em tom de ironia.

Sherlock permaneceu calado e vagueou os olhos pela rua, como se dela pudesse surgir as respostas que precisava. Então falou:

— Posso não processar o funcionamento das emoções, mas entendo totalmente as consequências delas na mente humana, por isso as evito. E sim, já que você é uma variante desse caso, posso compreendê-la melhor; o que vai me ajudar.

— Como? Como me compreender vai ajudar em alguma coisa?

— Saber se você está mentindo, por exemplo. Você foi a única que teve contato com o membro do Hukm Allah antes dele morrer, e talvez esteja escondendo algo ainda, só não sei o que é -disse ainda virado para a janela.

Emanuelle ficou pálida. Lembrou-se do Pen Drive, da criptografia, do rapaz, “não confie em ninguém” foi o que ele disse. Emanuelle pensou por um momento em falar do Pen Drive para o Holmes, mas rapidamente desistiu da idéia. Ela estava chateada com ele, e seria uma “pequena vingancinha”, deixá-lo esperando mais um pouco por aquilo que ele achava que ainda tinha que descobrir. Emanuelle então, se virando para a sra Hudson, falou:

— Eu já atrapalhei muito vocês essa madrugada. Me desculpem pelo incômodo, acho que é hora de todos voltarmos a dormir.

— Ela tem razão sra Hudson -disse enquanto se dirigia à senhora que já se levantava do sofá- é hora de voltar pra casa, vamos deixá-la descansar, ela vai precisar para amanhã.

Emanuelle olhou confusa para Holmes, e disse:

— Mas amanhã é meu dia de folga.

— Não mais. John ligou, e ele precisa que você fique com Mary no hospital amanhã, para irmos fazer uma visita à casa do jovem assassinado.

— Ele não me falou nada.

— Vai ver porque você estava dormindo.

Os três estavam parados na porta. Emanuelle respirou fundo e então assentiu com a cabeça, e perguntou:

— De que horas?

— Saio com você daqui de oito horas da manhã, esteja pronta.

— Você vai comigo? Porque?

— Preciso de alguém para pagar o táxi -Emanuelle revirou os olhos. Já conhecia essa mania do Holmes de nunca pagar o táxi quando acompanhado, ouvira John reclamar algumas vezes.

— Ok, amanhã às oito.

— Ótimo! -Dito isso, saiu rapidamente pela porta, descendo as escadarias sem nem olhar para trás.

— Boa noite para você também...mal educado - resmungou, o que fez a sra Hudson dar um risinho, e antes que a senhora pudesse sair, falou:

— Sra Hudson, eu nunca agradeci pela generosidade da senhora. Tanto pelo preço do aluguel, como pelas conversas de fim de tarde, e agora essa minha perturbação essa hora da madrugada. Muito obrigada pelo apoio que a senhora me deu.

— Ah minha querida, não agradeça por isso, estou aqui para ajudá-la no que precisar. E quanto ao preço do aluguel, não agradeça a mim, agradeça ao Sherlock.

— Como assim? - perguntou a doutora, confusa.

— Quando você veio visitar o apartamento pela primeira vez, eu lembro de ter apresentado ele e o John a você, e em seguida subimos as escadas para ver o apartamento. Mas você lembra que eu demorei um pouco para subir, enquanto você ia na frente?

— Sim, eu me lembro.

— Essa demora foi porque ele me chamou para conversar, e ele disse que eu poderia fazer o preço que você pudesse pagar no apartamento, que ele pagaria o resto.

— Espera...a senhora está dizendo que ele está pagando meu aluguel? -Emanuelle arregalou os olhos.

— Praticamente quase metade dele.

— Mas... -a doutora levou a mão à boca- isso não está certo, não faz sentido. Porque ele faria isso sem nem me conhecer?

— Eu não sei querida, mas acredito que ele, nesse “super poder da dedução” possa ter visto algo em você que ele achou necessário tê-la por perto.

Emanuelle baixou a cabeça, pensativa, sendo interrompida pela sra Hudson:

— Mas se você quiser, eu deixo de cobrar essa quantia dele, e você pode ficar pagando o mesmo preço, sem problema. Você é uma excelente moça, e não merece nada daquilo que passou. Então, pode contar comigo com o que precisar.

— Muito obrigada sra Hudson, quero mesmo que a senhora faça isso. Não quero que ele pague mais nada além do que já pagou nesses meses.

Dito isso, as mulheres se abraçaram e se despediram. Emanuelle fechou a porta, e seguiu para seu quarto. Viu os travesseiros no chão, e sentiu-se grata pelo Holmes tê-los colocado ali. Deitou-se na cama e refletiu no que tinha acabado de saber. “Porque? Esse tempo inteiro -ela refletia olhando para o teto, então virou-se na cama e fechou os olhos- sinceramente, não dá para entender mesmo a mente dessa máquina”, e então pegou no sono um tempo depois.