Flawless

17. A garotinha do papai tem um segredo


Hanna parou a quinze centímetros do espelho do seu quarto, se autoinspecionando de perto. Devia ter sido um reflexo esquisito no shopping — ali, ela parecia normal e magra. Embora... Os seus poros pareciam um pouco dilatados? Ela estava meio vesga?

Nervosa, abriu a gaveta da cômoda e pegou um pacote gigante de batatas fritas sabor sal e pimenta-do-reino. Ela colocou um punhado de batatas na boca, mastigou, e depois parou. Na semana anterior, as mensagens misteriosas a haviam levado a esse ciclo horroroso de comer muito/se livrar de tudo — mesmo ela tendo parado com esse hábito há muitos anos. Não ia co-meçar com aquilo de novo. Ainda mais na frente do seu pai.

Ela fechou o pacote e olhou pela janela. Onde ele estaria? Haviam se passado quase duas horas desde que sua mãe a tinha chamado no shopping. Então, ela viu um Range Rover virar na entrada da sua casa — um caminho sinuoso de quatrocentos metros, cheio de árvores. O carro manobrou facilmente pelas curvas da entrada, de uma forma que só alguém que já tivesse morado lá conseguiria. Quando Hanna era mais nova, ela e o pai costumavam descer até o portão de carrinho de rolimã. Ele a ensinara a se inclinar nas curvas para não cair.

Quando a campainha soou, ela pulou. Seu pinscher miniatura, Dot, começou a latir, então, a campainha tocou de novo. O latido de Dot ficou ainda mais agudo e enlouquecido, e a campainha tocou pela terceira vez.

— Já vou! — grunhiu Hanna.

— Ei — falou o pai, quando ela escancarou a porta. Dot começou a dar pulinhos em volta das pernas dele. — Olá, menino. — Ele se abaixou para pegar o cãozinho.

— Dot, não! — falou Hanna.

— Não, deixa ele. — O sr. Marin acariciou o nariz do pinscher miniatura. Hanna o havia comprado logo depois que o pai fora embora.

— Então. — O pai esperou na varanda, parecendo desconfortável.

Ele vestia um terno de trabalho cinza-escuro e uma gravata cinza e vermelha. Ele parecia um executivo que tinha acabado se sair de uma reunião. Hanna imaginou se ele queria entrar. Ela achou estranho convidá-lo para entrar em sua própria casa.

— Posso... — começou ele.

—Você gostaria de...? — disse Hanna, ao mesmo tempo.

O pai riu de nervosismo. Hanna não tinha certeza se queria abraçá-lo. O pai deu um passo em direção a ela, e Hanna deu um passo para trás, batendo de encontro à porta. Ela tentou disfarçar, como se tivesse feito de propósito.

—Vamos, entra logo. — A voz de Hanna soou perturbada.

Eles pararam no vestíbulo. Hanna sentiu o olhar do pai sobre ela.

— É muito bom ver você — disse ele.

Hanna deu de ombros. Ela queira ter um cigarro nas mãos, ou alguma coisa para fazer com elas.

— É, bem. Então, você quer o negócio das finanças? Está bem aqui. Ele olhou de lado, ignorando-a.

— Eu queria ter perguntado a você no outro dia. Seu cabelo. Você mudou alguma coisa nele. Está... Está mais curto?

Ela abriu um sorriso falso.

— Está mais escuro.

Ele apontou.

— Bingo. E você não está usando óculos!

— Eu fiz cirurgia a laser. — Ela desviou o olhar. — Há dois anos.

— Ah. — O pai pôs as mãos nos bolsos.

— Do jeito que você fala parece uma coisa ruim.

— Não — respondeu o pai, depressa. —Você está... diferente.

Hanna cruzou os braços. Quando seus pais decidiram se divorciar, Hanna achou que era porque ela tinha engordado e ficado desengonçada. E feia. Encontrar Kate havia feito tudo isso parecer ainda mais verdadeiro. Ele tinha encontrado uma filha substituta e feito a troca.

Depois do desastre da Annapolis, o pai tentara manter contato. No começo, Hanna deixou. Teve umas duas conversas monossilábicas e mal-humoradas ao telefone. O sr. Marin tentou provocá-la para saber se havia algo de errado, mas Hanna estava muito envergonhada para tocar no assunto. Com o tempo, o intervalo entre as conversas ficou cada vez maior... E então elas pararam completamente.

O sr. Marin caminhou pelo vestíbulo, os pés estalando contra o piso de madeira. Hanna imaginou se ele estaria verificando o que mudara e o que permanecera como antes. Teria ele notado que a foto em preto e branco dela e dele, que ficava pendurada em cima da mesinha de madeira, havia sido retirada? E que a litogravura de uma mulher fazendo o exercício de ioga saudação ao sol — um quadro que o pai de Hanna odiava, mas que a mãe dela amava — estava pendurado no lugar da foto?

O pai despencou no sofá da sala de estar, apesar de ninguém jamais usar aquele cômodo. Ele mesmo não costumava usá-lo. Era escuro, muito abafado, tinha um monte tapetes orientais feios e cheirava a spray para limpar estofados. Hanna não sabia mais o que fazer, então ela o seguiu e sentou-se na banqueta no canto da sala.

— Então. Como estão as coisas, Hanna?

Ela encolheu as pernas.

— Eu estou bem.

— Que bom.

Outro oceano de silêncio. Ela ouviu as unhazinhas de Dot rasparem o assoalho da cozinha, e o som de sua pequena língua lambendo a água do bebedouro. Desejou uma interrupção —um telefonema, o alarme de incêndio apitando, até uma nova mensagem de A — qualquer coisa que pudesse tirá-la daquela situação desconfortável.

— E você, como está? — perguntou ela afinal.

— Nada mal. — Ele pegou uma almofada de franjas do sofá e segurou-a diante do corpo. — Estas coisas sempre foram tão feias.

Hanna concordava, mas, e daí? Por acaso as almofadas da casa da Isabel eram perfeitas?

O pai olhou para cima.

—Você se lembra daquela brincadeira que você costumava fazer? Você punha as almofadas no chão e pulava de uma para outra fingindo que o chão era lava?

— Pai. — Hanna franziu o nariz e abraçou os joelhos com mais força ainda.

Ele apertou a almofada.

—Você podia ficar nessa brincadeira por horas a fio.

— Eu tinha seis anos.

—Você se lembra do Cornelius Maximilian?

Ela olhou pra cima. Os olhos dele brilhavam.

—Pai...

Ele jogou a almofada para cima e pegou de volta.

— Eu não devo falar nele? Faz muito tempo?

Ela levantou o queixo, secamente. — Provavelmente.

Por dentro, entretanto, ela deu um sorrisinho. Cornelius Maximilian era a piada familiar que eles haviam inventado depois de assistir a Gladiador. Tinha sido um grande presente para Hanna ir assistir a um filme sangrento, cuja censura era dezessete anos, mesmo tendo só onze, e todo aquele sangue a deixar traumatizada. Ela tinha certeza de que não conseguiria dormir naquela noite, então, seu pai inventou o Cornelius para ela se sentir melhor. Ele era apenas um cachorro — um poodle, eles inventaram, entretanto, algumas vezes, mudavam para um Boston terrier — forte o bastante para lutar numa arena. Ele bateu nos tigres, bateu nos gladiadores que tanto assustavam Hanna. Ele podia fazer qualquer coisa, inclusive ressuscitar os gladiadores mortos.

Eles inventaram um personagem completo para Cornelius, definindo o que ele fazia nos dias de folga, que tipo de coleiras de espetos gostava de usar, e sobre como ele precisava de uma namorada. Às vezes, Hanna e o pai falavam do Cornelius perto da mãe, e ela perguntava:

— O quê? Quem?

Mesmo eles tendo explicado a brincadeira a ela um milhão de vezes. Quando Hanna pegou o cachorro, pensou em chamá-lo de Cornelius, mas isso teria sido muito triste.

O pai sentou no sofá mais uma vez.

— Eu sinto muito que as coisas sejam assim.

Hanna fingiu estar interessada em sua unha francesinha.

— Assim como?

— Assim... com a gente. — Ele limpou a garganta. — Desculpe, eu não estive muito presente.

Hanna revirou os olhos. Aquilo era melodrama demais para ela.

— Não tem importância.

O sr. Marin tamborilou os dedos na mesinha de centro. Era óbvio que ele estava angustiado. Ótimo.

— Então, por que você roubaria o carro do pai do seu namorado, mesmo? Eu perguntei a sua mãe se ela sabia, mas ela disse não fazia a menor ideia.

— É complicado — disse Hanna, depressa.

Falando em ironia: assim que seus pais se divorciaram, Hanna tentou imaginar maneiras de fazê-los conversar de novo, assim, eles se apaixonariam novamente — exatamente como as gêmeas interpretadas por Lindsay Lohan em Operação Cupido haviam feito. Para que isso acontecesse, ela acabou tendo de ser presa algumas vezes.

— Ah, vai — insistiu o sr. Marin. —Vocês tinham terminado? Você estava chateada?

— Acho que sim.

— Foi ele quem terminou?

Hanna engoliu em seco, sentindo-se um lixo.

— Como você sabe?

— Se ele largou você, talvez não esteja à sua altura.

Hanna não acreditava no que o pai acabara de falar. Realmente não acreditava. Talvez tivesse ouvido errado. Talvez andasse ouvindo músicas em seu iPod alto demais.

—Você tem pensado na Alison? — perguntou o pai.

Hanna olhou para as próprias mãos.

— Eu acho que sim. Sim.

— É inacreditável.

Hanna engoliu de novo. De repente, sentiu que ia chorar.

— Eu sei.

O sr. Marin se recostou. O sofá fez um barulho estranho, como se ele tivesse soltado um pum. É uma coisa da qual o pai falaria a respeito anos atrás, mas, naquele momento, deixou pra lá.

—Você sabe qual é a minha lembrança preferida da Alison?

— Qual? — perguntou Hanna, baixinho.

Ela rezou para ele não dizer: "Aquela vez que vocês duas foram para Annapolis e ela se deu tão bem com a Kate,"

— Era verão. Eu acho que vocês estavam indo para o sétimo ano, ou algo assim. Eu levei você e Alison para Avalon, para passar o dia. Você se lembra?

—Vagamente — respondeu Hanna. Ela se lembrava de ter comido um monte de bombons, de se sentir gorda de biquíni, enquanto Ali parecia perfeitamente magra no seu e que um surfista a convidara para um luau, mas ela o mandou passear na última hora.

— Nós estávamos sentados na praia; havia um menino e uma menina perto da gente. Vocês duas conheciam a menina da escola, mas não era alguém com quem vocês normalmente saíam. Ela tinha uma espécie de cantil amarrado nas costas, onde tomava água por um canudo. Ali conversou com o irmão dela e a ignorou.

De repente, Hanna lembrou perfeitamente. Era normal encontrar pessoas de Rosewood na praia Jersey — e aquela menina era Mona. O menino era o primo dela. Ali o achou bonitinho, então foi lá falar com ele. Mona ficou extasiada por Ali estar perto dela, mas tudo que Ali fez foi olhar para Mona e dizer:

— Ei, meus porquinhos da Índia bebem água de uma garrafa igual a essa.

— Essa é a sua lembrança favorita? — quis saber Hanna.

Ela tinha bloqueado aquilo; e tinha certeza de que Mona fizera o mesmo.

— Eu ainda não terminei — disse ele. —Alison caminhou para a beirada da praia com o menino, mas você ficou para trás e conversou com a garota, que parecia arrasada porque a Alison tinha saído. Eu não sei o que você disse, mas você foi legal com ela. Eu fiquei muito orgulhoso de você.

Hanna franziu o nariz. Ela duvidava de que tivesse sido legal — provavelmente só não tinha sido muito má. Depois da Coisa com Jenna, Hanna já não curtia mais azucrinar os outros.

—Você sempre foi legal com todo mundo — falou o pai.

— Não, eu não era — discordou ela, baixinho.

Ela se lembrou do que costumava falar sobre a Jenna: Você não acredita nessa menina, pai, dizia ela. Ela tentou pegar o mesmo papel que a Ali queria no musical, e você devia tê-la ouvido cantar. Parecia uma vaca. Ou,Jenna Cavanaugh pode ter acertado todas as questões da prova de programas de saúde e ter feito doze levantamentos de braço na academia para a prova do Presidential Fitness, mas, ainda assim, é uma perdedora.

O pai sempre fora um bom ouvinte, desde que soubesse que ela não diria coisas maldosas na cara das pessoas. O que fizera com ele, uns dias depois do acidente de Jenna, quando estavam indo de carro para a loja, era muito mais devastador. Ele tinha se virado para ela e dito, assim, do nada: "Espera aí. Aquela menina que ficou cega... ela é aquela que canta feito uma vaca, certo?" Ele olhou como se tivesse feito a ligação. Hanna, com muito medo de responder, fingiu um acesso de tosse e mudou de assunto.

O pai levantou e dirigiu-se ao pequeno piano de cauda da sala. Ele levantou a tampa, e a poeira voou. Quando apertou uma tecla, saiu um sonzinho.

— Eu imagino que sua mãe tenha contado que Isabel e eu vamos nos casar.

O coração de Hanna bateu forte.

— Sim, ela disse algo a respeito.

— Nós estamos pensando em realizar a cerimônia no próximo verão, mas Kate não pode ir. Ela vai fazer um curso de verão na Espanha.

Hanna se eriçou ao ouvir o nome de Kate. Pobrezinha da nenezinha, tem que ir pra Espanha.

— Nós gostaríamos que você fosse ao casamento também — acrescentou o pai. Como ela não respondeu, ele continuou falando. — Se você puder. Eu sei que é um pouco esquisito. Se for, acho que deveríamos conversar a respeito. Eu prefiro que você fale comigo em vez de roubar carros.

Hanna fungou. Como o pai se atreve a pensar que o fato de ela ter roubado um carro possa ter alguma coisa a ver com ele e seu estúpido casamento! Mas, aí, ela parou. Tinha a ver?

—Vou pensar no assunto — disse ela.

Seu pai passou as mãos na beirada do piano.

—Vou ficar na Filadélfia o fim de semana todo, e fiz reserva para jantarmos no Le Bec-Fin no próximo sábado.

— Mesmo? — gritou Hanna, sem perceber. Le Bec-Fin era um famoso restaurante francês, no centro da cidade, ao qual ela queria ir havia muito tempo. As famílias de Spencer e Ali costumavam arrastá-los para lá, e eles reclamavam. Era esnobe, o cardápio não era nem em

inglês e era cheio de velhinhas com casacos de pele horrorosos que, às vezes, ostentavam também a cabeça do animal. Mas, para Hanna, Le Bec-Fin soava totalmente charmoso. — E reservei uma suíte para você no Four Seasons — continuou o pai. — Sei que você deveria estar de castigo, mas sua mãe disse que tudo bem.

— Mesmo? — Hanna bateu palmas. Ela adorava ficar em hotéis chiques.

— Tem piscina. — Ele sorriu, envergonhado. Hanna costumava ficar muito animada quando eles se hospedavam em hotéis com piscina. —Você poderia vir cedo no sábado, para dar uma nadada.

De repente, Hanna ficou de queixo caído. Sábado era a... Foxy.

— Pode ser no domingo?

— Bem, não. Tem que ser sábado.

Hanna mordeu o lábio.

— Então eu não posso.

— Por quê?

— É só que... tem esse lance do baile. É tipo... importante.

O pai cruzou os dedos das mãos.

— Sua mãe deixará você ir a um baile depois... depois do que você fez? Eu achei que você estivesse de castigo.

Hanna estremeceu.

— Eu comprei os ingressos há muito tempo. Foram caros.

— Significaria muito pra mim se você fosse — sussurrou ele. — Eu adoraria passar o final de semana com você.

Ele parecia realmente chateado. Parecia que ia chorar. Ela também queria passar o fim de semana com ele. Ele tinha se lembrado do seu chão de lava derretida, de como ela costumava falar do Le Bec-Fin e do quanto adorava hotéis luxuosos com piscina. Ela imaginou se ele também tinha esse tipo de brincadeira com Kate. Não queria que ele tivesse. Queria ser especial.

— Eu acho que posso deixar a festa para lá — respondeu ela afinal.

— Ótimo. — O pai voltou a sorrir.

— Pelo bem de Cornelius Maximilian — adicionou ela, lançando-lhe uma olhadela tímida.

— Melhor ainda.

Hanna observou o pai entrar no carro e seguir lentamente pela saída da garagem. Um sentimento cálido e eletrizante tomou conta dela. Estava tão feliz que nem pensou em pegar o saco de batatas fritas que havia jogado na despensa. Em vez disso, teve vontade de dançar pela casa.

Quando ouviu o BlackBerry tocando no andar de cima, voltou à realidade. Ela tinha de fazer tanta coisa. Tinha de dizer ao Sean que não iria à Foxy. Tinha de ligar pra Mona, também. Precisava arranjar um vestido fabuloso pra usar no Le Bec-Fin — talvez aquele curtinho, com cinto, que ainda não tinha tido oportunidade de usar?

Ela correu escada acima, abriu o BlackBerry e franziu as sobrancelhas. Era uma mensagem.

Quatro palavras simples:

Hanna. Marin. Cegou. Jenna.

O que o papai pensaria disso se soubesse?

Eu estou de olho em você, Hanna, e é melhor você fazer o que eu digo. —A