Fevereiro de 2032.

— A Morte das Estrelas? Nem em um bilhão de anos a gravadora vai deixar que seu debut single tenha a palavra “morte” no meio... Eu amei a canção, mas sinto muito, sweetheart...

Brandi recebia o feedback da namorada com um olhar triste, porém de aceitação. Tinha consciência que a música que havia composto era bastante melancólica e não era nenhum pouco radio friendly. Funcionaria como uma boa inclusão em seu álbum e talvez um single promocional, mas não como a música que a faria decolar nas paradas musicais de todo o mundo.

— “The Death Of The Stars”... — Kiara olhou para o alto um pouco pensativa. — Qual diabos é o significado disso, afinal?

As duas riram. O som ecoou por todo o estúdio onde estavam. O painel com o logo da mundialmente renomada gravadora “Spotlight Records”, brilhava atrás delas. Dentro do aquário de gravação, Brandi usava uma roupa básica com seus longos dreadlocks caídos em seus ombros, tinha o fone em seus ouvidos, porém agora estava um pouco caído para que ela pudesse ouvir a namorada melhor. Já Kiara usava roupas com cores fortes, um casaco de algum estilista famoso e seus emblemáticos cabelos ondulosos coloridos de rosa-claro, sua marca registrada. A famosa cantora olhava encantada para felicidade estampada nos olhos da namorada.

Brandi Williamson era uma bela moça negra em seus trinta e oito anos de idade. Os anos demoravam a chegar para ela fisicamente, porém mentalmente vinham como um cometa. Sentia toda sua experiência pulsar em suas veias, todos os caminhos que trilhou até chegar aquele momento no estúdio. A aspirante a cantora, trabalhou duro por toda a sua vida. Desde os 17 anos de idade, tentou a todo custo deslanchar a carreira como cantora profissional, porém sempre ouviu “não” atrás de “não”. Ainda assim, conseguiu alguns trabalhos como backing-vocal através dos anos, porém, passar toda a sua vida nos fundos do palco estava a matando aos poucos. Brandi não queria que as pessoas a entendessem de forma errada, ela amava cantar e fazer apoio para engrandecer o trabalho das maravilhosas cantoras para quem trabalhou... Mas ela também tinha trabalhos incríveis que estavam guardados esperando a luz do Sol, ela também queria aquela luz para si. Ela queria compartilhar seus sentimentos com o mundo todo, queria brilhar.

Foi quando começou a trabalhar com Kiara, há quase uma década atrás, que a vida de Brandi começou a mudar de verdade. Foi amor à primeira vista, ambas costumavam falar. Tudo começou com uma amizade e uma sinergia absurda. Porém tanto Kiara quanto Brandi, estavam compromissadas na época. O começo do relacionamento foi turbulento por conta de seus respectivos parceiros anteriores, mas logo as coisas foram ficando nos eixos.
Agora, pareciam que se conheciam desde sempre, era um amor poderoso que tinham. Então para Kiara, ver a parceira morrendo por dentro, com seus sonhos cada vez mais estagnados, a fazia sentir tudo morrer também. E demorou, mas Kiara conseguiu uma oportunidade para Brandi na gravadora que trabalhava, fez tudo o que podia e o que não podia para que a namorada tivesse tudo o que sempre sonhou para seu álbum de estreia: Equipe de produção, co-compositores, divulgação em programas de tv, equipe de design, e tudo mais que uma superstar in the making precisava para explodir no mundo inteiro.

Porém como Kiara previu, no começo, Brandi se sentiu mal e não digna de tudo aquilo. A backing-vocal sentiu que estava sendo privilegiada por causa da relação com Kiara, o que era verdade. Felizmente, em uma conversa definitiva, Kiara convenceu Brandi que ela merecia tudo aquilo, que ela era a pessoa com o coração mais puro que ela conheceu, e que ela já havia lutado e esperado demais por uma oportunidade que simplesmente ninguém nunca dava a ela. E o que ela estava dando para Brandi era apenas isso: uma chance para ela mostrar do que ela era capaz. A mesma que a própria Kiara conseguira ainda com seus 20 anos de idade, só que para ela fora mais fácil.

— Amor, você sabe que eu sempre fui uma enorme geek sobre astronomia, certo? — Brandi retirou de vez os fones do pescoço. — Sempre tive uma paixão enorme por cometas, astros, supernovas e etc...

— Ô, se sei! — Kiara apertou seu casaco contra o corpo. — Você me faz ver todo santo filme de ficção científica que estreia no cinema!

Brandi deu um risinho fazendo um gesto com as mãos.

— Mas então... É por isso! Digo... Quando estudava no ensino médio, minha professora falou como funciona o ciclo de vida de uma estrela, desde seu nascimento até sua morte! Eu nunca esqueci, e sempre pesquisava sobre e um dia me veio à cabeça as letras da canção... Eu nem lembro quando... Você sabe bem como é essas inspirações inusitadas, Isobelle.

Kiara cerrou os olhos pela namorada a chamar pelo seu nome do meio, sorriu.

— É eu sei bem como é, amor. — Pensou um pouco. — Para ser sincera, eu nem sabia que estrelas nasciam e que morriam... Quer dizer... Na verdade... Han?!

Brandiu soltou uma risada. Kiara sorriu largamente, o tom de voz da backing-vocal era rouco e sua risada era um pouco desengonçada. É o melhor som do mundo, Kiara sempre achava isso.

— Amor, na verdade não é tão complicado assim de entender... Basicamente, como todo corpo celeste as estrelas têm um ciclo de vida que varia entre bilhões e trilhões de anos e muito mais, isso dependendo de sua massa, lógico.

— Massa? — Kiara falou alto.

— Tamanho, amor! — Brandi riu.

— Querida, se você quiser que eu entenda você vai ter que explicar como se estivesse explicando para uma criança de 8 anos de idade. — Kiara foi sincera. — Eu virei cantora por um motivo...

Brandi soltou outra risada, respirou e começou:

— Bom, todas as estrelas têm um prazo de validade, digamos assim... Tipo nós, nós nascemos e vamos morrer uma hora ou outra... No caso das estrelas é igual o nosso, é certo que elas morrerão um dia, mas não dá para saber com toda certeza quando...

A moça de cabelos rosa assentiu entendendo. Brandi continuou, fazendo gestos com as mãos enquanto explicava.

— As estrelas nascem quando uma grande nuvem de gás se concentra e vai se expandindo cada vez mais, se transformando em uma gigantesca fonte de luz que parece ser infinita! Porém...

— Não é. — Kiara deduziu.

— Isso. — Brandi assentiu. — Mas a parte realmente interessante é a forma que elas morrem... As estrelas não morrem todas do mesmo jeito, nem a duração da vida é a mesma para todas elas, tudo depende de seu tamanho. Por incrível que pareça, são as mais “grandes” que gastam mais energia e por isso duram menos que as outras... Eu não lembro exatamente se existem mais maneiras de uma estrela morrer, mas de cabeça, eu lembro de três.

Brandi colocou uma mecha de seus dreads atrás da orelha e continuou.

— As mais “pequenas” acabam soltando toda a sua camada externa de forma lenta, espalhando-a pelo espaço. É chamada de nebulosa planetária, e é considerada um dos corpos mais bonitos do céu! Mas a estrela mesmo, seu núcleo na verdade, ainda está lá! Um ponto branco, brilhante, quente e bem pequeno. Ela permanece desse jeito ainda por muitos anos, mas uma hora ela esfria de vez e se transforma em um ponto negro praticamente invisível, e permanece dessa forma para sempre. Essa é a primeira morte.

Kiara estava um pouco boquiaberta.

— Ai, coitada da estrela... — Kiara falou realmente sentida. — Fiquei com pena desse “núcleo” que ficou invisível pra sempre.... Ah, pelo menos ela não morreu de vez, já que seu corpo externo virou tipo uma massa solta brilhante, né?

Brandi assentiu com um meio-sorriso.

— Amor, as coisas só vão piorar daqui para a frente. — A backing-vocal deu um sorriso forçado e continuou. — Se a estrela for das “grandes” a sua morte é bem mais violenta e grandiosa, porém há dois jeitos de tudo terminar: Em um dos casos, ela expele sua camada externa no espaço também, porém de uma forma bem violenta. Podendo gerar uma explosão chamada de Supernova.

— Esse nome aí eu já ouvi falar. — Kiara prestava atenção.

— Sim, é bem conhecido mesmo! Quando uma Supernova explode, onde antes havia apenas uma estrela “fraquinha”, aparece no céu uma estrela extremamente brilhante, as vezes tão brilhante como uma galáxia inteirinha! — Brandi fez um gesto com as mãos. — Nessa segunda morte, a estrela tem um caminho similar a primeira morte, porém não necessariamente desaparecem como as mais pequenas...

Kiara estava impressionada.

— Uau. Eu não tinha ideia de tudo isso, e olha, realmente é muito interessante. Mas confesso que estou com medo da terceira...

Brandi cerrou os dentes.

— Pois é, Kiara... A terceira morte na verdade não há muito do que explicar sobre... As estrelas bem “grandonas”, digamos assim, também acabam gerando uma Supernova... Só que em um outro tipo muito mais forte e espetacular! Ao invés de expelir sua camada no espaço, expelem para seu próprio núcleo, mas de uma forma violentíssima, isso devido ao seu tamanho descomunal! E nada consegue escapar, nem mesmo a luz! Se transformando em um corpo escuro, recebendo o nome de Buraco Negro.

A cantora de cabelos rosa se arrepiou.

— Brandi... I’m shook.

Brandi soltou uma risada, Kiara sorriu em seguida.

— Não, sério. Para uma pessoa totalmente leiga e alheia com astronomia... Eu achei extremamente foda tudo isso! — Kiara tocou a mão de namorada. — E o fato de você ter baseado a música em cima disso tudo... Uau. É genial, você é incrível!

Brandi ficou um pouco encabulada e passou as mãos nos cabelos.

— Quer saber? Esquece toda aquela baboseira de radio friendly, esse vai ser sim seu debut single, Brandi, tem que ser! Não é só uma música, é uma obra-prima! E eu sei que significa muito para você...

Brandi passou a mão pelo rosto de forma suave, Kiara sabia que ela fazia isso quando estava ficando emocionada.

— Amor, você é a pessoa mais talentosa que eu conheço, se você acha que essa música tem potencial, eu acredito em você, seu talento é inacreditável! O mundo inteiro vai se apaixonar por você, eu tenho certeza!

Brandi sentiu seus olhos marejarem, e então envolveu Kiara em um abraço apertado, e logo um beijo caloroso se formou.

— Eu te amo tanto, Isobelle.

— Eu também de amo, sweetheart.

XX-XX-XX

Lion guardou a caneta cor de rosa que segurava em suas mãos na gaveta de sua escrivaninha, e suspirou profundamente.

O quarto de Lion era imenso e bem decorado, alguns pôsteres aqui e ali de vídeo games, filmes e cantores deixavam a suíte menos glamorosa, mas ainda se notava que era um cômodo de uma casa bem grande e luxuosa. O jovem de dezoito anos, passou a encarar o pequeno baú aberto em sua frente e seus lábios tremeram formando um quase sorriso. Os papéis ali dentro todos dobrados e amassados o encaravam de volta, sentia-se um completo idiota por guarda-los como segredo. Logo eu? Sendo filho de quem sou? Isso não faz o menor sentido, pensava enquanto fechava o baú com a chave e passava delicadamente suas mãos por cima dele.

Leonel Cook II, ou simplesmente Lion – como fora apelidado por sua melhor amiga Annie, ainda quando crianças – era o único filho de uma das maiores popstars da atualidade: Kiara Kane. Sendo fruto do primeiro casamento da cantora, na verdade, antes do casamento em si. Sua mãe e seu pai, Oliver Cook, se conheciam desde adolescentes, e ainda com seus 18 anos de idade, acabaram tendo um filho juntos. Lion sabia que seu nascimento não fora programado, e que por causa dele, seus pais acabaram tentando um relacionamento que jamais daria certo. E tudo isso no meio da ascensão de Kiara como cantora, então foram tempos difíceis no começo.

Brigas, mal-entendidos e sacrifícios de ambos: Seu pai teve que em certo ponto, trancar sua faculdade de medicina para cuidar dele ainda muito pequeno, já que sua mãe, estava ocupada demais com sua carreira que parecia cada vez mais promissora. Mas Kiara também teve que abdicar de projetos e viagens para estar junto da família inúmeras vezes, porém quando se reuniam era apenas discussões em cima de discussões, pareciam nunca chegar em um acordo.

Respirou fundo.

Felizmente, agora já estava tudo bem. Lion não podia imaginar o quanto tudo mudou radicalmente após o divórcio de seus pais, quando ainda tinha 11 anos de idade. Simplesmente fora a melhor coisa que poderia ter acontecido aos três! Kiara e Oliver não precisaram mais tentar transformar uma amizade em um relacionamento amoroso a todo custo, o que ironicamente os deixou mais próximos do que nunca. A vida deles ainda era diferente das famílias tradicionais, mas nem tanto por conta do divórcio, mas sim pela fama de Kiara, que de certa forma impactava tudo a sua volta e crescia ainda mais com o passar dos anos. Ainda continuava difícil, mas pelo menos eles não brigavam mais, dividiam as responsabilidades sobre o filho de maneira democrática. E agora ambos estavam livres para amar quem eles quiserem, e Lion amava os pais infinitamente e estava feliz com isso.

Antes de guardar seu baú no esconderijo secreto em seu closet, seu smartphone vibrou avisando uma nova notificação. O jovem pegou-o sem muita vontade bateu o olho no logo famoso: Iphone X32, e em seguida seu reflexo na tela escura do aparelho. Passou suas mãos sobre sua barba algumas vezes tentando arrumar alguns fios, em seguida passou os dedos por debaixo de seus grandes olhos castanhos, e por último, por seus adorados cabelos pretos ondulados que desciam até quase seus ombros. Pessoalmente, Lion não se achava vaidoso, porém Annie sempre brincava que o amigo não deixava ninguém tocar a mão em seus preciosos fios foliculares.

Lion levantou o celular em frente ao seu rosto, sorriu. Logo o aparelho fez a leitura da face do dono e desbloqueou a tela. O moço entrou nas notificações de novas mensagens e logo estava na interface de um aplicativo de encontros sensação entre a comunidade gay masculina. Mas para Lion não funcionava muito bem. Ser filho de uma cantora de pop famosa, ainda mais na comunidade gay, não era tão fácil como parecia. Lion se sentia um idiota as vezes, podia ter todo garoto que quisesse, mas relacionamentos de uma noite só não eram para ele. Tentou algumas vezes, mas não dava, não julgava quem gostava daquele tipo de encontro, mas para ele não funcionava. E isso somado ao fato de caras darem em cima dele por interesse, fazia sua vida amorosa bastante complicada. Tivera um relacionamento sério até então, e algumas tentativas falhas. Ainda tentava todo tipo de aplicativo possível, não tinha nada a perder, porém o nível de sua animação era menor que zero.

— Lion!! Estou subindo, a gente vai se atrasar para o aeroporto, por que você tá demorando tanto?!

O moço de cabelos compridos assustou-se com o grito de Annie, que parecia estar subindo as escadas. Jogou o celular na escrivaninha e apressou-se para guardar o baú em seu closet. Antes usava apenas a parte de cima de seu pijama, agora já estava com a parte de baixo vestida para recepcionar a amiga, ficou parado em pé próximo a porta do closet com cara de culpado.

— Eu não acredito que você ainda está de pijama, Lion! — Annie entrou no quarto sem muitas cerimônias. Ela e Lion se conheciam desde de seus 8 anos de idade, graças a amizade entre seus pais, o grau de intimidade entre eles era absurdo. — Ei, por que você está com essa cara?

— E-eu? — Lion gaguejou parecendo ainda mais culpado, mas mudou de assunto rapidamente. — Olha não precisa se preocupar, eu arrumei minhas malas ontem à noite. Agora só tenho que me arrumar e gente já sai, amiga... A Tia Mary já preparou o café da manhã?

— Parece que sim, eu encontrei com ela no jardim... — Annie disse se referindo a governanta da casa. — Ah, mas Graças a Deus! Eu estava morrendo de medo de perder esse voo por qualquer motivo que seja! Vai ser a primeira vez que vamos viajar sozinhos, sem seguranças, sem pais, ninguém! Eu não quero que as nossas mães parem de confiar na gente, L.

Lion sentou na beirada de sua enorme cama, Annie sentou em seguida ao seu lado.

— Relaxa Annie, vai dar tudo certo... E eu mal posso esperar para finalmente poder acompanhar minha mãe em uma turnê completa! Agora que finalmente não tenho mais colégio nenhum para me preocupar, me sinto livre! — O jovem disse isso e se jogou de costas na cama.

Annie riu e fez o mesmo. — Confesso que eu também, o colégio era o único lugar que ainda me lembrava de mim antes da transição... É meio que o último adeus para tudo aquilo, sabe?

Lion tocou a mão da amiga de forma suave, e a olhou nos olhos e assentiu. Embora não pudesse nem em um milhão de anos sentir o mesmo que ela sentiu por toda a vida desde que nasceu.

Annie Selena Caymon, assim como o melhor amigo, tinha dezoito anos de idade. Era uma jovem com fortes traços judeus, porte físico comum e tinha uma estatura baixa. Transsexual, fez a cirurgia de mudança de sexo no ano anterior, com o total apoio de seus pais e amigos. Quem conhecia a doce Annie, não podia imaginar sua história de vida, vendo sua tão pouca idade.

Quando ainda era uma muita pequena, foi abandonada por seus pais em um orfanato, e mesmo não tendo toda certeza e lembrar propriamente, sabia que era por ter nascido “diferente”. Os anos que viveu no orfanato foram os piores possíveis, morou em um que só abrigava meninos, e como não se enxergava como um, se destacava da pior maneira possível. Foram anos de bullying e discriminação, tanto por parte dos meninos, como por parte dos próprios funcionários. Quando completou 8 anos de idade, já tinha certeza que jamais seria adotada, os possíveis casais que vinham conhecer crianças para adoção, sempre a olhavam com desdenho. Quem vai querer adotar um garotinho judeu afeminado? Ouvia com frequência os funcionários falarem pelos cantos do orfanato.

Foi quando em uma fria tarde de inverno, balançava sozinha em um balanço afastada dos outros garotos que jogavam futebol – em um dos poucos momentos que tinha um pouco de paz – que sua vida mudou completamente. Conheceu uma mulher que andava em uma cadeira de rodas chamada Angeline Caymon, seu marido Scoot Kramer e a ainda enfermeira particular deles na época, Sylvia Sawyer. Annie foi adotada pelo casal e de repente tudo o que sonhava havia se tornado realidade: tinha uma família que amava e que a amava de volta incondicionalmente.

Claro que as coisas não seriam fáceis mesmo assim. Sua época de descoberta e aceitação de sua identidade de gênero fora difícil, e isso mesmo com o total apoio de Angel, que parecia desde sempre saber disso, sempre a deixando comprar roupas e acessórios femininos. Assim como o momento da mudança no relacionamento entre os pais, que também fora uma fase delicada: Angel, Kramer e Sylvia viviam um relacionamento que para Annie sempre foi bastante natural, mas a construção da relação no começo foi complicada para os quatro. E querendo ou não, no colégio era só mais uma arma para o bullying que ela já sofria por ser simplesmente ela mesma. E isso mesmo estudando num colégio de elite, sendo praticamente irmã do jovem mais popular dali, Lion, e mesmo assim, sentia doer diariamente os olhares e comentários diversos.

Respirou fundo.

Felizmente, a maior parte de tudo aquilo estava para trás. Seus pais viviam bem juntos da maneira particular deles, sua mãe completava 8 anos sem a cadeira de rodas e tudo parecia nos eixos para todos. Annie havia feito a cirurgia de mudança de sexo e mudado oficialmente seu nome, ainda tomava alguns medicamentos e hormônios, mas agora, enxergava no espelho a mesma figura que sempre viu por dentro quando fechava os olhos. Finalmente se sentia feliz por completo. E por mais que os últimos anos no colégio tenham sido ótimos comparados com os primeiros, a jovem sentia finalmente que a última coisa que a trazia más lembranças havia ficado no passado de vez. Estava formada, e pronta para viver e conquistar seus sonhos como qualquer mulher do mundo.

— Falando em colégio... — Lion se levantou, mudando de assunto, mas não completamente. — Você já viu exatamente qual faculdade de lá você vai visitar, Annie?

Saindo de seus pensamentos, a jovem de cabelos castanhos se levantou também, ainda sentada ao lado do amigo na cama.

— Vi sim... É simplesmente a melhor faculdade de Biologia Marinha no mundo inteiro! Ah, eu tô tão animada, amigo! — Annie disse em êxtase. — E claro, também tô animada pra ver a volta da sua mãe aos palcos! Coitada da tia Kiara, ano passado ela passou por poucas e boas...

Lion assentiu, mas não queria pensar no assunto.

— Bom, sem mais papos, pequena. — O rapaz se levantou e puxou a amiga da cama. — Próxima parada: Kiara World Tour! Primeira cidade: Sidney, Austrália!

Annie riu com o amigo fazendo pompa enquanto fazia um gesto de cone com as mãos.

XX-XX-XX

François podia ver Sidney inteira através da enorme janela de vidro do último andar de um dos prédios mais altos do país, onde ficava localizado a filial australiana do restaurante “Le Cáfe Miro 81”.

O jovem de dezenove anos de idade encostou a mão no vidro de forma delicada, deslizando o dedo até a altura de seu peito. Então passou a ver seu reflexo no vidro, e aproveitou para ajeitar seu visual. De origem francesa, nascido e criado em Paris, François tinha traços um tanto distintos do resto da família. Olhos grandes e pretos, cabelos ondulados num quase topete e uma barba que insistia em aparecer, obrigando-o a fazê-la diariamente. No momento, usava uma calça e sapato social de marcas famosas e um casaco elegante não condizente com o clima da Oceania. Se sentia confortável daquela forma.

— Ela não vem, filho.

Quoi? — O jovem francês indagou surpreso, mas logo voltou para seu inglês com sotaque carregado. — Mas amanhã ela não começa a turnê dela? Nós temos que acertar tudo o quanto antes, papa. Afinal ela é a nossa nova garota-propaganda, os novos comerciais e banners tem que serem feitos e colocados no mercado o quanto antes! Nós viemos até aqui basicamente... Para isso.

Apollon encarou o filho com um olhar furioso. O homem de quarenta e nove anos de idade, tinha traços suaves e cabelos grisalhos arrumados de forma metódica, usava um terno azul-marinho bem alinhado e rosto limpo sem nenhum resquício de barba. Dava para notar que ele tentava conter toda sua raiva no momento.

— Ela quer mudar todo o conceito já estabelecido anteriormente do comercial, me ligou adiantando as demandas dela, e eu obviamente já disse “não”, por isso ela não vem mais! Ela estava na merda do lobby e foi embora! Eu odeio lidar com essas cantoras cheias de ego... Eu sou a porra do CEO da “Reyals”, agora! E não a merda de um representante de marketing qualquer!

O jovem suspirou fundo, podia entender a frustação do pai.

François René Reyals era filho do atual presidente da mundialmente renomada indústria de calçados, que levava seus sobrenomes como marca. Seu pai, Apollon Reyals, havia tornado o presidente da empresa após a morte de seu irmão mais velho, Quentin, no ano anterior. Tentava administrar do seu jeito a empresa que agora estava em sua total responsabilidade, porém sentia que as pessoas não o respeitavam da mesma maneira que respeitavam seu irmão. François estava disposto a ajudar o pai da maneira que podia, havia terminado o colégio há um ano, fazia alguns cursos aqui e ali sobre Gerenciamento com os melhores professores do mundo, não iniciara uma faculdade a pedido do pai que queria que ele aprendesse as coisas colocando a “mão-na-massa”.

Muitas pessoas podiam pensar que François era de certa forma influenciado pelo pai a seguir seus passos no mundo dos negócios, porém este não era o caso. O jovem sempre admirou o modo como o avô, Mr. Jacques, e posteriormente o tio, administravam uma empresa tão grande e complexa como a “Reyals”. Desde garotinho, passava horas no enorme escritório da presidência na sede da empresa na França, vendo aquele império crescer cada vez mais. Com 14 anos de idade tinha acesso direto com artimanhas de negociações empresariais que universitários só veriam em seus últimos anos de faculdade. Tudo graças ao avô e o tio, e claro de certa forma também seu pai, embora este foste mais presente na filial americana em Miami. Inclusive, François sempre lembrava o quanto o avô e o tio faziam piadas com o jeito americanizado de Apollon, que claro, odiava as gozações.

A morte de Jacques 6 anos atrás, foi um baque a todos, porém, Quentin conseguiu contornar a situação de modo que nada saísse dos eixos da administração anterior. Mas agora com a morte de Quentin em um fatídico acidente de helicóptero, tudo mudara. Apollon tinha um jeito totalmente diferente de governar, muitos acionistas e patrocinadores estavam receosos com o futuro da marca. François sentia que era seu dever ajudar o pai, mesmo que não soubesse muito bem como fazer isso.

— Amanhã eu vou pessoalmente falar com essa Kiara Kane, ela está pensando que é quem?! — Apollon continuava a desabafar sua frustação, enquanto ajeitava o paletó freneticamente olhando seu reflexo na grande vidraça do restaurante. — Querer transformar o novo comercial da Reyals em um segmento lésbico?! E com uma cantorinha de R&B que ainda nem estourou no mercado? Uma de suas backing-vocals?? Are you kidding me?!

— Pai... Todo mundo sabe que a Kiara tem uma namorada, não é algo novo... E eu não vejo problema nenhum nisso, sinceramente... Estamos em 2032, par Dieu! — François encostou as costas no vidro envergonhado das opiniões do pai.

— Eu não quis dizer isso. — Apollon desconversou. — Somente que para uma cantora que acabou de sair de um escândalo ano passado, e que ninguém estava querendo contratar para publicidade, até que ela está cheia de demandas, não acha?

— Pelo menos por conta disso foi mais barato o cachê dela, pai... Ela era a nossa melhor opção financeiramente para o novo rosto da marca.

Apollon riu. — Às vezes não compensa poupar dinheiro por toda essa dor de cabeça, filho...

— Bom... Melhor voltarmos pro hotel e descansarmos, amanhã eu vou com o senhor nesse show então... — François sorriu. — Ela é uma boa cantora, quem sabe a gente não curta um pouco o show depois?

Apollon se manteve sério. — Você tem o mesmo senso de humor otimista que a Louise, sabia? Me dá nos nervos.

O rapaz riu. Louise Di Fontana-Reyals era sua mãe, com quem mantinha uma relação muito mais carinhosa do que a que tinha com o pai. Louise era naturalmente francesa, mas cresceu nos Estados Unidos até seus 17 anos de idade com sua mãe. Voltou a França para estudar Jornalismo próximo de sua família após a morte da mãe, e foi aí que conheceu Apollon que era amigo de um de seus tios. A diferença de alguns anos de idade não impediu eles de construírem um relacionamento até os dias de hoje, e isso mesmo com a gravidez indesejada de François, ainda no começo do namoro. Atualmente, Louise era uma das jornalistas mais bem-sucedidas de Paris, tendo inclusive apresentado o antigo principal jornal de notícias da emissora mais famosa de toda a França, durante 3 anos seguidos. Agora, mesmo trabalhando somente nos bastidores – após a queda da audiência da tv aberta para a internet, resultando no fim de vários segmentos jornalísticos televisionados – a vida da jornalista ainda era uma correria, não tão diferente do marido.

François às vezes nem tinha certeza se os pais ainda dormiam na mesma cama, porém nas festas e jantares importantes da empresa ou da emissora, ambos posavam e tiravam fotos. Um dos casais mais poderosos de toda Paris, François cresceu ouvindo. E mesmo tendo uma relação tão boa com a mãe, e uma relação amistosa com o pai, François não tinha coragem de perguntar se eles ainda eram realmente um casal. As normas de etiquetas que lhe foram ensinadas desde pequeno o fez ser um rapaz introspectivo e calado. Entendia o porquê da encenação dos pais, porém não deixava de se sentir um pouco triste pelos dois. Ambos eram extremamente bem-sucedidos, mas pareciam tão infelizes. François não achava que valia a pena o sacrifício, mas guardava esse pensamento para si.

Apollon chamou seus seguranças particulares com um movimento de mãos, e acenou para o filho para descerem o elevador e irem embora. François olhou mais uma vez pela enorme vidraça admirando a belíssima vista de Sidney mais uma vez.

Deu às costas e seguiu o pai.

XX-XX-XX

Up, down, all who are around

We'll die anyway, so let's have fun now

Up, down, all who are around

Let's just feel like we're in freefall

[...]

Kylie permanecia de bruços, deitado na cama enquanto ouvia sua música favorita de sua cantora favorita: Kiara Kane. O rapaz batia os pés enquanto dublava fazendo movimentos com os lábios e diversas expressões faciais, enquanto a canção tocava em seu aparelho de som.

O rapaz de dezoito anos de idade estava completamente nu na cama de seu pequeno apartamento no centro de Sidney. O local era simples e nada luxuoso, mas não podia reclamar, era bem melhor do que viver com os pais no interior da Austrália, onde morou por toda sua juventude até finalmente fazer a maioridade e iniciar uma faculdade de Fotografia na capital. Kylie August Sebastian era branco, loiro, tinha os olhos azuis, e uma estatura baixa e estava em forma. The poster-child of twinks, o rapaz ouvira de um rapaz que ficou uma vez. Obviamente ele não ligava, tinha consciência de seus privilégios devido sua aparência, e quase sempre se aproveitava disso em diversas situações.

— Eu já vou indo, Kyle. A minha prima vai me matar por chegar atrasado na gravação.

Um homem falou saindo de toalha do banheiro do pequeno apartamento. Oscar Branco era um fotógrafo de trinta e quatro anos, tinha traços comuns, cabelo castanhos e porte físico normal. Paparazzi profissional, trabalhava com a prima em um programa de sucesso na web há 3 anos. Apesar da idade, era bastante imaturo e de fácil convencimento. Conhecia Kylie há algumas semanas em uma das suas visitas à sua antiga universidade, ficaram algumas vezes desde então.

— É Kylie. — O loiro falou categoricamente. — K. Y. L. I. E.

Oscar sorriu. — Foi mal, é que soa tão feminino pra mim. Eu acho que nunca conheci nenhum homem com esse nome.

— Bem... — Kylie passou a mão suavemente sobre seu maxilar perfeito. — Eu acho que meus pais sabiam desde que eu era um bebê então...

— Você é uma figura! — Oscar disse rindo enquanto terminava de se vestir. Agora já estava de camiseta, calça e tênis. Só faltando colocar seu casaco marrom.

Kylie se levantou e foi em direção ao aparelho de som que ainda tocava “Freefall no volume alto. Apertou stop e retirou o cd e guardou em sua embalagem o empilhando na estante abaixo do mesmo, junto com outros. Toda a discografia de Kiara estava ali.

— Acho engraçado você ter cd’s. Eu pensei que essas coisas já estavam extintas. — Oscar reparou.

— Oh, na verdade eu só tenho os da Kiara. Eu sou um fã a moda antiga. — O jovem disse se aproximando de Oscar, tocando seu peito suavemente. — Você vai me ajudar a entrar nos bastidores do show dela amanhã certo, amorzinho? É meu sonho conhece-la! Eu não posso perder essa oportunidade, ela finalmente está na Austrália!

O homem suspirou incerto. — Ai carinha, eu não tenho certeza se vou conseguir. Eu literalmente estarei trabalhando amanhã com a minha prima gravando algumas coisas por lá... E você sabe que eu não tenho uma boa reputação com equipe de cantoras, né? Eu sou um paparazzi, afinal...

— Eu sei! Mas isso deve ajudar em algo você ter acesso por lá... Você só tem que me ajudar a entrar lá dentro e só, o resto eu consigo sozinho.

Oscar coçou a cabeça ainda bastante incerto.

— Por favor, por favorzinho! Eu juro, não sou um psicopata, eu só quero conhecê-la e tirar uma fotinha, eu prometo. — Kylie implorou de um jeito quase irresistível de dizer não.

Oscar finalmente cedeu e assentiu com a cabeça. Kylie deu pulinhos de alegria e abraçou o homem e deu um beijo nele abruptamente. Oscar sorriu sem jeito.

— Você realmente gosta muito dela né, Kylie?

— Gostar? — O rapaz colocou a mão no peito descamisado. — Eu amo ela! Acompanho ela desde do primeiro álbum! Estive com ela pelo flop do quarto álbum, passando pela revelação da bissexualidade e o divórcio, e claro, toda aquela tragédia e absurdos envolvendo o pai dela ano passado! Eu sou o fã número um de Kiara Kane, bitch!

Oscar riu novamente, encantado pelo jeito sem filtro do loiro. — Você realmente acha que a Kiara é inocente em todas aquelas acusações sobre o pai dela?

Kylie bufou. — Claro! A Kiara jamais seria capaz daquilo! Foi tudo um golpe midiático que quase acabou com a carreira dela! Eu sinto um ódio de pessoas desse meio!

O homem de cabelos castanhos pensou um pouco.

— Mas eu sou desse meio, Kylie...

— Você não, querido. — Kylie passou a mão no rosto de Oscar, que sorriu sem graça novamente.

— Bem, minha prima discorda de você. Inclusive ela está trabalhando em um mini documentário sobre o caso, pro canal dela no Youtube. — Oscar disse passando as mãos nos cabelos dourados do rapaz.

Kylie ficou pensativo. — Bom saber... Mas eu odeio a Stef e aquele canal e programa de quinta categoria e sensacionalista, que ela tem... Sem ofensas, bebê, mas eu acho aquilo um lixo total.

Oscar deu com os ombros.

— Eu odeio, mas não perco nenhum episódio novo do programa, não me entenda mal. — Kylie foi sincero. — Stef é uma bitch, mas sabe como prender seu público. Eu assisto com raiva, mas assisto.

Oscar riu novamente. Finalmente vestiu seu casaco e pegou a bolsa onde estava guardada sua inseparável câmera fotográfica. — Falando nisso eu tenho que ir... Ela vai me matar pelo atraso, já vou preparando meu psicológico desde já! — O fotógrafo se despediu de Kylie e saiu do apartamento.

O loiro voltou para próximo do aparelho de som e pegou novamente um dos cd’s nas mãos. Na capa deste Kiara estava com somente metade do rosto a vista, com seus cabelos cor de rosa cobrindo a outra parte de sua face. No título, “Pink Explosion”, Kiara estava posando em cima de um canhão e havia glitter rosa por todo lado. Aquele fora o álbum que a fez alcançar pela primeira vez o topo dos charts de todo o mundo, consolidando-a de vez no cenário pop mundial ainda em meados de 2025. Muitos dizem que este álbum foi extremamente manufaturado por produtores para Kiara estourar de vez... Eu o amo mesmo assim, e convenhamos, ela não iria pra lugar nenhum com aquelas músicas depressivas do seu debut...

Kylie pensava sozinho, deu com os ombros. Colocou novamente o cd no aparelho de som, e aumentou até o volume máximo. Estava em êxtase só de imaginar que finalmente veria seu ídolo pessoalmente, uma oportunidade de uma vida toda. Deitou-se de bruços na cama novamente, agora com seu Iphone em mãos, começou a rebolar e dublar a música que estava tocando anteriormente, dessa vez seus versos iniciais que antecediam o explosivo refrão.

I feel something’s going to happen,

something’s going to happen to us

You knew this moment would come,

this moment would come for us.

Just let your body fly!

[...]

XX-XX-XX

— Eu sou Stef Rei, e este foi o “Hey, Stef!”. Sempre escrachando tudo sobre o mundo das celebridades, sem o filtro que você costumava a ver na tv aberta! — Risos. — Não esqueça de deixar seu apoio nos botões de likes e compartilhamento, e é isso por hoje, byeee!

— Cut!

Stef parou de sorrir e logo alguns produtores vieram retirar seu microfone e ajeitar alguns aparelhos de som. Em volta, um estúdio grande simulando uma sala de estar de uma casa moderna, com todos equipamentos ao redor que poderiam se esperar de um programa em uma emissora de verdade, não em um simples programa de um canal no Youtube. Mas agora os tempos eram outros, com o fenômeno da internet cada vez mais comum no mundo todo, as emissoras de televisão perdiam cada vez mais audiência e espaço em todos os tipos de segmentos possíveis: desde entretenimento até noticiários. Muitos dos profissionais antigos de emissoras se demitiam e tentavam carreiras na internet, seja com blogs e portais de notícias, como com programas na web.

A apresentadora do fenômeno atual “Hey, Stef!” foi uma das pioneiras dessa migração, se demitindo da emissora mais famosa da Austrália três anos atrás, onde costumava apresentar um programa também de notícias de celebridades. Até aquele ponto, ela estava satisfeita com sua carreira, havia começado na emissora como estagiária, conseguiu uma vaga de assistente, depois uma de repórter, até conseguir seu próprio segmento televisivo. O programa foi um sucesso em seus primeiros anos, mas então a audiência começou a cair. Mas ainda assim, Stef fez de tudo para voltar a atrair seus antigos telespectadores, indo ainda mais a fundo nas notícias e flagras de famosos, com histórias polêmicas quase inapropriadas para o horário que o programa era transmitido. Os números de audiência aumentaram, mesmo ainda não sendo os de outrora, mas a censura da emissora logo interveio e Stef ficou de mãos atadas.

Logo pediu demissão e migrou para internet, no começo era um canal comum de uma youtuber qualquer, que ela mantinha com a ajuda do primo, Oscar, que a ajudava tanto na edição dos vídeos, como indo a campo e proporcionando flagras de famosos exclusivos. Não demorou para que a persona afiada e sem escrúpulos da apresentadora, que aproveitava como ninguém de toda a liberdade que a internet proporcionava, conquistasse milhões de seguidores famintos por polêmicas e flagras. Com o sucesso meteórico, a apresentadora ergueu em volta de si quase que um império, todo um estúdio e uma equipe de profissionais e patrocinadores para seu canal, se tornando uma das vanguardistas entre os criadores de conteúdo na web de todo o mundo. Amada pelo público, odiada pelas celebridades. Daí em diante Stefani Rei se tornou imbatível.

— Cadê o idiota do Oscar?! Ele ficou de trazer as fotos daquela atriz peituda traindo o namorado pro programa de hoje... Como é o nome dela mesmo? Aquela peituda protagonista daquela série teen de super-heróis da Netflix... — Bufou. — Ah! Não terei paciência com o bando de adolescentes comentando sem parar nas minhas fotos no Instagram sobre isso! E eu tendo que fingir simpatia respondendo esses urubus!

Alguns integrantes da produção riram, embora Stef não estivesse realmente falando por piada. A moça passou as mãos em seus cabelos castanhos cortados até a altura do pescoço, e ajeitou seus peitos no sutiã sem nenhum tipo de pudor por estar em frente a equipe de produção. Stefani tinha trinta e três anos de idade, olhos grandes e um formato de rosto esculpido para tv. Tinha um corpo em forma, embora não tivesse tempo para malhar. Havia dormido com praticamente todos de sua equipe de produção, incluindo as mulheres. Era quase como uma rockstar dos novos tempos.

— Stef!

Oscar surgiu correndo em meio ao estúdio. Estava ofegante e com sua câmera em mãos. Stefani revirou os olhos e fingiu não escutar o primo, pegou uma garrafa de vodka da mão de um dos produtores e seguiu para uma área isolada onde ficava a porta para seu camarim pessoal. Oscar foi atrás.

— Foi mal, prima! Eu me enrolei... — O fotógrafo entrou no camarim e fechou a porta atrás de si. — Ainda tá gravando o programa de hoje?

A moça de cabelos castanhos que tinha acabado de sentar em frente ao seu espelho, girou a cadeira em direção ao primo e o encarou por longos segundos.

— Não sei, priminho! Será que eu ainda estou lá em frente das câmeras? Acho que você está conversando com um fantasma aqui então.

Oscar riu nervoso.

— Quem é o novo garotinho que você tá fodendo por aí, primo?

— Han? — Oscar quase que não entendeu o que a prima disse.

Han? — Stef falou com uma voz rouca, repetindo por deboche. — Sempre que você fica distraído assim, mais que o normal, diga-se de passagem... É porque algum universitário está te fazendo de idiota por aí.

O fotógrafo assentiu, porém logo negou com a cabeça. — Sim... Digo, não! Ele não está me fazendo de idiota, acho que está rolando algo especial dessa vez, eu juro. Estamos saindo há quatro semanas já!

— Uau! Quatro semanas! — Stefani debochou, mas Oscar não entendeu e sorriu orgulhoso. — Acho melhor você já ir comprando um anel de compromisso...

— Você acha mesmo? — Oscar colocou a mão sobre o peito.

Stefani revirou os olhos.

— Não, né! Pelo amor de Deus, primo! Olha, eu não te julgo... Eu mesmo adoro uns novinhos trabalhando em cima de mim, eu não sou hipócrita. — A moça finalmente abriu a garrafa de vodka e tomou um gole, fez uma careta. — Mas você deixa esses garotos te explorarem! Esses novinhos vão em cima de você porque acham que você tem algum tipo de influência por trabalhar comigo e ter contatos. Daí você se apaixona, dá o que eles querem e eles te dão o pé na bunda! É sempre assim.

— Credo, Stef... — Oscar encostou na parede emburrado. Suspirou. — Kylie é diferente.

Stefani cuspiu um gole da vodka, surpresa. — Kylie? Você tá saindo com uma mulher?!

— Não! Esse é realmente o nome dele! — Oscar gargalhou.

— Que susto... — A apresentadora colocou a mão sobre o peito e limpou o rosto. — Mas chega dessa baboseira, sua vida é sua vida. Se você gosta de ser tratado que nem um idiota, problema é seu. Eu só falo isso porque me importo com você, e não quero que isso atrapalhe seus deveres profissionais.

Oscar soltou um “ownt” e foi em direção a prima para abraça-la, a mesma retribuiu sem muita vontade.

— Ok, ok, primo... Agora vai entregar a câmera e as fotos pro Colbie pra ele já deixar preparado pro próximo programa. — A moça passou a alisar seu rosto em frente ao espelho. — E não esquece que amanhã vamos na abertura da turnê da Kiara, vamos começar a caçar material para o documentário do caso dos Kane.

— Pode deixar comigo, Stef. — Oscar disse indo em direção da porta de saída do camarim.

— Ah, Oscar! — Stef o chamou de volta. — Depois dá uma pesquisada na internet sobre a Brandi Williamson... Não sei muito sobre ela, pode ser útil pro documentário.

— Brandi quem? — Oscar indagou confuso.

— Sabe aquela namoradinha da Kiara Kane? Aquela backing-vocal sem graça que ela vai tentar fazer todo mundo engolir produzindo o álbum da coitada e enfiando em tudo quanto é lugar? — Oscar assentiu se lembrando. — Então... Parece que amanhã será o show de despedida dela, a última vez que ela será backing-vocal para a namorada, a última vez que cantaram juntas como antigamente e blá blá blá... Me toquei que eu não sei muito sobre o passado dela, preciso descobrir alguns podres...

Oscar riu, acostumado com o típico deboche e acidez da prima. — Pode deixar... Ei, essa Brandi não foi a principal testemunha que ajudou a inocentar a Kiara do julgamento ano passado?

— Isso! Ela mesma. — Stef fez um gesto apontando o dedo.

Oscar passou a mãos sobre sua barba por fazer, a apresentadora continuou.

— Tenho certeza que tem muito mais nessa história que a gente não sabe... Eu trabalho com esses escândalos de celebridades desde meus vinte anos de idade, eu posso sentir que tem muito mais debaixo dos panos... E você me conhece... — Stef sorriu maliciosamente e tomou mais um gole de vodka. —Eu não invento nada, eu só descubro as coisas.

XX-XX-XX

— Uau.

Bethy olhava encantada e admirada toda a megaestrutura a sua frente. O gigantesco palco já estava noventa e oito por cento concluído, desde a parte principal (a enorme estrutura em formato circular) até as duas passarelas adjacentes em direção ao centro da arena. As luzes, máquinas de fumaças, telões led, alto-falantes, e diversos aparelhos que a jovem Bethy nem imaginava para que serviam, tudo estava em seus devidos lugares. A moça jamais tinha visto uma superprodução daquelas antes tão de perto, de certo modo, se sentia um pouco acuada com aquela monstruosa estrutura erguida de diante de seus olhos.

Elisabeth Williamson, ou somente Bethy – apelido dado por sua irmã mais velha, Brandi – era uma jovem negra de vinte e dois anos de idade. Sonhadora, romântica e de uma personalidade suave similar à de Brandi, porém, Bethy era um pouco mais extrovertida que a irmã mais velha. Também cantora, compartilhava do mesmo sonho da irmã de ser profissional e viver disso, porém não tinha pressa ainda, sentia que tinha toda uma vida pela frente para alcançar seus objetivos. Antes, ainda sentia alguma pressão vendo a irmã mais velha com seus quase quarenta anos de idade ainda uma backing-vocal, porém agora que Brandi estava finalmente realizando seu sonho, Bethy sentia-se mais leve. Sonhos eram sim possíveis de se realizarem.

— Brandi?

Bethy ouviu uma voz masculina atrás de si. Virou-se e se deparou-se com um rapaz negro extremamente atraente e com uma voz doce e rouca que quase a fez arrepiar-se. A moça ajeitou a camiseta regata branca e o shorts jeans curto que usava, além de passar os dedos por seus cabelos pretos cacheados que brilhavam timidamente com o sol de fim de tarde. Ambos estavam a metros distante do palco principal e próximo de uma das passarelas, bem onde no dia seguinte estaria lotado de pessoas para o show de início da turnê mundial de Kiara.

— Não, não. — Bethy sorriu. — Sou irmã dela, Bethy Williamson... E você é...?

O rapaz sorriu, iria falar seu nome, mas a própria Bethy concluiu após alguns segundos.

— Wes! Você é o Wes Harris! Você será o ato de abertura da Kiara nos shows daqui e dos Estados Unidos, certo? Meu Deus, eu amo seu debut album e amo White Walls! Eu estou aqui em Sidney há alguns dias, e ouço em tudo quanto é lugar, sério... Essa música é um sucesso!

O rapaz sorriu, enquanto admirava a beleza de Bethy, um pouco sem jeito. Weslay Harris era a nova sensação musical da Austrália com apenas vinte anos, seu debut álbum autointitulado “Wes”, e seu single de estreia, “White Walls”, chegaram ao topo dos charts aussie. Australiano, vindo de uma origem humilde, o rapaz estourou na internet com suas readaptações de clássicos de variados estilos para o hip-hop. Suas versões de clássicos como “Bohemian Rapasody”, “Smooth Criminal”, “Bad Romance”, dentre outros, tinham chegado aos cem milhões de visualizações em poucas semanas se tornando virais instantaneamente, dando a visibilidade necessária para um convite de contrato com a filial da “Spotlight Records” na Austrália. Agora, era a grande aposta da gravadora para o mercado americano, acreditavam que com a visibilidade que iria ter como o ato de abertura de Kiara Kane, principalmente nos EUA, finalmente “White Walls” iria decolar nas paradas norte-americanas. Wes sentia-se sim um pouco pressionado por todo aquele investimento em cima de seus ombros, não deixava de sentir-se um pouco acuado por todo aquele mundo de fama que se ergueu diante de seus olhos. Tudo estava andando rápido demais, era excitante e assustador ao mesmo tempo.

— Sim, sou eu mesmo... E obrigado pelos elogios, Bethy! — Wes coçou levemente sua barba devidamente bem desenhada em seu rosto. O rapaz usava um casaco azul e um par de jeans rasgados, fazia parte de seu estilo.

— Posso ajudar em alguma coisa, Wes? Acho que minha irmã já foi pro hotel...

— Não, não... — Wes tocou o braço de Bethy delicadamente. — Eu só queria falar com alguém sobre a passagem de som que fiz hoje de manhã... Eu estava querendo incluir um cover na minha setlist... Eu queria falar com a Kiara de uma vez, mas dizem que é mais fácil pedir para a Brandi primeiro.

— Ah sim! Minha irmã realmente é difícil negar as coisas para as pessoas. E a Kiara confia demais nela pra tudo. — A moça sorriu.

— Mas e você, Bethy? É uma das backing-vocals também? Não te vi no ensaio hoje cedo...

— Sim... Digo, ainda não. Ou melhor, sou sim. — A moça fez um gesto com as mãos se perdendo nas palavras. — É por isso que não vim hoje de manhã na passagem de som... Eu serei oficialmente uma das backing-vocals nos futuros shows da turnê, mas no de amanhã ainda vai ser a Brandi... É o show de despedida dela, sabe? Depois vai ter até uma festinha em comemoração em uma balada na cidade... Você vai?

— Ah sim! E eu vou sim, eu soube dessa festa hoje de manhã, só não sabia o motivo... — Wes sorriu e ajeitou seu casaco. — Mas o que eu fiquei feliz mesmo foi em saber que você será a backing-vocal nos próximos shows, senti uma boa energia vindo de você. Parece ser uma garota muito gente boa.

Bethy sorriu sem graça. — Que bom! Digo o mesmo de você, Sr. Harris. Prazer em conhece-lo! — E em forma de brincadeira, a moça estendeu a mão para cumprimentar o rapaz que assentiu. Os dois riram com o aperto de mãos, então se olharam nos olhos um do outro por um momento.

POW!

O forte impacto de uma das luzes no palco principal se chocando contra a estrutura, fez os dois jovens se assustaram genuinamente. Bethy juntou-se próximo de Wes tocando inconscientemente seu peito sobre o casaco dele, o rapaz estava tão assustado com o barulho que não percebeu. De longe, ambos viram algumas pessoas no palco examinando o estrago, e mesmo há alguns bons metros de distância podiam ouvir dois dos músicos discutindo sobre o incidente.

— Greg, eu te falei, não foi?! A Kiara foi uma idiota de ter deixado o Tony mudar a empresa responsável pela construção do palco! Tinha que ter sido a mesma das outras turnês! Imagina se essa bosta dessa luz tivesse caído hoje de manhã na passagem de som do Wes?! — Uma moça nitidamente nervosa gritava enquanto estava com sua violão preso em volta da cintura. — Eu estou há um passo de pedir demissão disso de vez!

— Calma, Kristen! Também não exagera! Essas coisas acontecem, não acho que tenha sido por falta de experiência da equipe deles... É uma empresa nova, mas eficiente! Ergueram tudo em tempo recorde! Relaxa, irmãzinha... — Greg encostou uma das mãos no ombro da moça, com a outra segurava sua palheta inseparável que sempre usava quando tocava seu contrabaixo. — Kris, amanhã é a despedida da Brandi... Relaxa um pouco, você não quer que seu último show com ela seja assim... Sei que é difícil pra você, mas esse é o momento dela.

A violonista respirou fundo, forçou um sorriso que com custo se formou. Deu um toque de punho com Greg, enquanto sentiu a brisa de fim de tarde bater em seus cabelos castanhos. Kristen Hobbs, tinha trinta e dois anos e era um dos membros da banda de Kiara. Assim como Gregory Nicholson, o baixista de trinta anos de idade, ambos estavam trabalhando com a cantora desde o início de sua carreira.

Greg ajeitou a toca vermelha em sua cabeça, enquanto enfiava um dos cachos de seus cabelos loiros de volta para a toca. Ainda com uma das mãos sobre o ombro de Kristen, tentando acalmar a amiga. Logo, algumas outras pessoas vieram para ver o estrago que a queda da luminária havia feito, tinham que arrumar aquilo o mais rápido possível.

Bethy e Wes olhavam a cena, agora mais calmos.

— Aquela mulher parece tão zangada o tempo todo... Hoje no ensaio eu podia jurar que ela estava brava comigo, isso mesmo o tal do Greg falando que era o jeito dela mesmo... Qual é o problema dela afinal? — Wes indagou.

Bethy suspirou. — Ela é a ex da minha irmã. Ela e a Brandi começaram a trabalhar para Kiara juntas na sua primeira turnê, elas ainda eram namoradas na época... Eu tenho certeza que minha irmã não ficou com a Kiara enquanto elas ainda namoravam, mas claro, mesmo assim foi complicado... Ainda é meio inconfortável o clima entre as três.

— Oh... Ela não parece se dar nem um pouco bem com a Kiara mesmo... Mas tipo... Como que ela não foi mandada embora ainda? Ou por que ela não pede demissão, então? — Wes perguntou genuinamente.

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— Acho que pela minha irmã ainda sentir um carinho muito grande pela Kristen, a Kiara deve relevar as atitudes dela por isso... E acho que a Kris não vai embora porque no fundo gosta de ficar perto da Brandi... Ai, eu sinto meio mal por ela, sabe? Mas não sei, não tem muito o que se fazer... Pelo menos o Greg consegue domar ela às vezes, ambos são amigos desde crianças... O Greg é um amorzinho de pessoa, você o conheceu, né?

— Sim! Ele é muito engraçado também! — Wes sorriu concordando. — Mas você tem razão, Bethy... Meu ex-namorado tinha o temperamento bem parecido com o da Kristen, mesmo depois do término ele ainda ficava em cima... Era meio desconfortável lidar com isso, mas no final era uma escolha dele de não seguir em frente. Eu não tinha controle sobre a forma que ele ainda se sentia. Eu acho que em algumas situações a única pessoa que pode te salvar é você mesmo.

Bethy colocou a mão sobre o peito, concordando. — E você... Tá namorando no momento?

O cantor sorriu. — Eu tive uma namorada depois desse cara, mas não durou muito. Depois que minha carreira deslanchou, ela não aguentou a pressão, a fama, os fãs... Por isso que acho que no momento que estou agora, somente uma pessoa que convive com isso compreenderia toda essa loucura de shows, festas, viagens... Afinal, isso tudo é sim insano demais!

Wes ergueu os braços apontando em sua volta. Bethy sorriu concordando, enquanto tirava uma mecha de seus cachos do rosto.

Ao fundo, a gigantesca estrutura era tocada pelos últimos raios de luz antes do Sol se pôr de uma vez naquele dia. Bethy olhou a sua volta também, sentia como se o astro solar estivesse recarregando suas forças, já que o dia seguinte seria agitado. Sentiu uma leve brisa tocar seu ombro, estranhamente sentiu um pouco de frio, o que era estranho devido ao clima da Austrália naquela época do ano. Então percebeu de repente como o dia de amanhã seria importante para ela: Sua primeira turnê como backing-vocal titular, sua primeira grande experiência como cantora, um mar de possibilidades se abriria dali em diante.

Era o início de tudo.

XX-XX-XX

A Lua brilhava intensamente no céu de Sidney, as estrelas e suas constelações pareciam brilhar ainda mais naquela noite.

Kiara olhava a vista em sua frente, em um dos últimos andares do hotel que estava hospedada, em uma de suas suítes mais luxuosas. A cantora sentia seus cabelos rosa-claro dançarem com a suave brisa na elegante varanda descoberta. Ela estava com um roupão de banho branco com detalhes dourados, porém seus cabelos já estavam praticamente secos. Sentada em uma espécie de cadeira de balanço de madeira, segurava um tablet em suas mãos, agora desligado. Naquele ponto, já não estava mais comtemplando a belíssima vista a sua frente, estava com o olhar vazio, apenas pensando.

— Amor, você tem razão. O estúdio daqui da Austrália é muito melhor que o de casa, acabei de ouvir uma gravação que fizemos hoje e ficou fantástica!

Brandi falou enquanto saía pela enorme porta de vidro que era o acesso a varanda da suíte. A moça também usava um roupão igual ao da namorada, só que seus cabelos, ainda molhados, estavam enrolados em uma toalha branca. Trazia uma taça de champagne em suas mãos, iria perguntar se Kiara queria algo pra beber também, mas ao se aproximar dela percebeu seus olhos marejados.

— Kiara, você tá bem?

A cantora quase nem se mexeu na cadeira, nem sequer havia ouvido o comentário sobre o estúdio australiano que a namorada fizera.

— Oi, amor. Não, eu estou bem. Só vieram algumas lembranças na minha cabeça, e somado com a ansiedade pro início da turnê, o seu álbum, o contrato com a Reyals, as premiações chegando... — Respirou. — Eu só queria espairecer um pouco.

Brandi colocou a taça em uma mesinha próxima a elas na varanda, e então sentou-se ao lado de Kiara em outra cadeira que também ficava de frente para as estrelas.

— Eu entendo, amor... Mas quais lembranças que vieram a sua mente exatamente?

— Bom... O Tony, nosso querido empresário... — Kiara disse ironicamente, Brandi riu. — Me mandou um link sobre o presidente da Reyals... Isso porque eu desmarquei a reunião com eles de novo hoje, e você sabe bem o motivo...

Brandi bufou e a interrompeu. — Kiara Kane, eu já disse pra você que eu não faço questão de fazer parte desse comercial! Você que tem contrato com eles, não sou eu! Não vai fazer besteira e bancar a teimosa de novo...

Kiara revirou os olhos e suspirou. — Não vamos falar sobre isso, por favor. Eu já estou por aqui com esse assunto, amor.

A backing-vocal assentiu de contragosto. — Na verdade, você que começou a falar sobre...

A cantora riu sem vontade.

— Bom, esse foi o motivo que me levou por curiosidade, abrir o link. Já que era uma notícia negativa sobre o tal figurão Apollon... E óbvio que eu iria ler! — Kiara desbloqueou o tablet em suas mãos com sua digital e uma matéria em um site apareceu. Brandi pode ler o título: “Com nova gerência, especialistas estão incertos sobre o futuro da Reyals”. Abaixo, podia-se ver uma foto de um casal em algum tipo de festa luxuosa, no tapete vermelho. Apollon estava acompanhando de uma lindíssima mulher que usava um belíssimo vestido azul-marinho, que na legenda dizia que era sua esposa: a jornalista Louise Di Fontana-Reyals.

— Uau. — Brandi olhou admirada. — Não fica com ciúmes, amor, mas a esposa desse Apollon é linda! Ela é francesa também?

Kiara riu timidamente, percebendo que a namorada mal percebeu o título da matéria. — Eu a conhecia, Brandi... Ela é na verdade uma ex-namorada do Oliver... Quando ele ainda tinha dezoito anos... Acredita?

— O quê? Como assim?! — Brandi coçou a cabeça por debaixo da toalha. — Peraí... Essa é a mesma garota que a Angel falava sobre algumas vezes?

— Ela mesmo, Brandi. — Kiara confirmou. — Ela e o Oliver acabaram perdendo contato com ela, eu acho... Será que eles sabem sobre como ela está hoje em dia? E será que ela sabe de nós? Da minha carreira? Do Oliver, do nosso filho?

Brandi colocou a mão debaixo do queixo pensativa. — Pois é, estranho mesmo... Bom, mas isso de “perder contato” vale dos dois lados, certo? Mas não sei... Faz sentido, porque o Oliver sempre ficava meio estranho quando a Angel falava sobre ela, e com o tempo a própria Angel também... Igual a você quando eu pergunto sobre a sua namorada do colegial, a Penny.

Kiara forçou um sorriso, sem sucesso. Então tirou uma mecha rosa da frente do rosto e abaixou a cabeça, suspirou. Se você soubesse, sweetheart...

— Ai desculpa, amor, eu não queria tocar nesse assunto! Eu sei que você não gosta de falar sobre... — Brandi segurou a mão da namorada, arrependida. — É por isso que você ficou abalada vendo a foto da tal Louise? Ela te fez lembrar daqueles tempos, né? Da morte da Penny?

A cantora levantou a cabeça olhando nos olhos da namorada, as lágrimas começaram a cair.

— Sim, me fez recordar daquela época... Mas então eu comecei a tentar lembrar a última vez que pensei na minha mãe, nos meus amigos, e na Penny também... E eu acho que eu não lembro, Brandi! As vezes eu sinto que depois da morte do meu pai, foi como se a última parte da garota que eu era antes, tivesse morrido com ele também... — As lágrimas então começaram a cair, e Kiara riu ironicamente apontando ao seu redor no alto do prédio. — Olha para mim, Brandi! Eu estou no topo do mundo, e mesmo assim me sinto um nada!

Oh, seu pai... Brandi abraçou fortemente a namorada, que nesse ponto chorava copiosamente em seus braços.

— Coisas ruins insistem em acontecer comigo e eu continuo seguindo em frente... E para quê, Brandi? Como eu continuo fazendo isso? Eu sou uma pessoa horrível!

Brandi abraçou a namorada ainda mais forte em seus braços, enquanto falava baixo em seu ouvido, quase como um sussurro:

Amor, você é a melhor pessoa que eu já conheci. Eu te amo mais do que tudo nessa vida! Eu não quero que você se sinta mal, você não tem culpa de nada, você nunca teve! Você não tem que se sentir mal por seguir em frente! Tudo o que você conquistou você mereceu, e não importa o aconteça, eu sempre vou estar com você.

Kiara olhou nos olhos de Brandi, que beijou sua testa e secou suas lágrimas de forma delicada, aos poucos seu choro foi cessando em meios aos seus suspiros pesados. Em sua cabeça, os versos de uma de suas primeiras composições apareceram.

“Just look back, into the past.

Feel all the love and bring me hope.

This is for me.

My favorite song to live.”

Agora, ambas estavam sentadas na mesma cadeira de balanço, Kiara estava em cima do colo da namorada, enquanto a mesma passava as mãos carinhosamente sobre seus cabelos rosa. As lágrimas foram se secando aos poucos, enquanto o casal admirava o céu estrelado diante de seus olhos.

— Você acha que tem alguma estrela morrendo nesse exato momento? — Kiara perguntou de repente.

Brandi pensou por uns instantes.

Sorriu.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.