Festa no céu.

Capítulo único.


Já começava a anoitecer. Mas andando pelo jardim próximo à casa principal, Shigure Souma ainda sentia sua pele esquentar com o calor incomum daquele dia.

Não muito longe dali, recostada à janela do quarto estava Akito. De um jeito pouco solene, a Patriarca arfava e seus olhos estavam ardendo. Vontade de gritar, de largar tudo. Queria esquecer aquela vida. Uma vida em que ela não era especial. Uma vida em que não havia o “enlace eterno”. Onde ela não era Deus.

– Com licença.

E de repente ela despertou daquele torpor, pela voz masculina já tão conhecida.

Shigure nem esperou permissão e adentrou o quarto.

– O-O que você está fazendo aqui?! – Akito se voltou, exasperada pela intromissão.

– Nada. – ele disse, como sempre, petulante – Só vim fazer uma última visita, senhor.

– Nem... – e finalmente suas lágrimas caíram – Nem precisava ter-se dado ao trabalho. Vá! Vá embora! Deixe-me como todos os outros!

Shigure no entanto continuou calmo, também como sempre. Mas em vez de se afastar, andou para ela. Trazia algo.

– Tome. – e lhe estendeu um pacote, aproximando-se mais – É para você... para comemorar a despedida.

E Akito não suportou. Sentia-se humilhada e sobrepujada pela ousadia do Cão de chegar assim tão perto. É claro, não era só isso. Aquilo também significava que ele a estava deixando e, ela sabia, dessa vez, era para sempre.

– ...Eu te odeio! Eu te odeio!... odeio você! – e sua mão voou para a face de Shigure, ferindo-o com um arranhão típico – Eu já sabia! Sempre soube! O que mais eu poderia esperar de você?! Você é o que menos hesitaria em me abandonar! – e agora ela gritava a plenos pulmões, os olhos transfigurados, a tristeza chorando dentro dela – Eu te odeio!

– E quem falou... em “abandonar” alguém? – pela primeira vez então Shigure se manifestou e segurou com ímpeto o pulso de Akito.

– Vo... você disse “despedida”...

– Hm, é verdade. Será uma despedida. Uma “despedida” da imagem que seu pai criou. Uma “despedida” do passado. O início de uma vida nova. Foi por isso que eu lhe trouxe isto... um presente de despedida. Meus parabéns. Dou boas vindas à mulher que agora nasce. Estou curioso pra saber... como será daqui pra frente.

E um momento de intenso silêncio se fez. Mas foi inesperadamente Akito quem o quebrou.

– Eu... eu falei com eles. Disse que eles estavam livres.

– E o que pretende fazer... para se redimir?

– Cale-se! Cale-se! – e então ela voltou a se rebelar – Eu ainda odeio você.

– Hm... Alegra-me saber que nosso Patriarca se importa tanto comigo.

– Não é verdade! Eu... eu... Shigure... eu tinha... acima de tudo... eu tinha medo de você! Você sempre foi o mais distante. Sempre foi inacessível. Você não me temia. Você não me obedecia. Com ou sem o enlace, você... você nunca se importou comigo!

E então, num timbre totalmente diferente do habitual, Shigure começou a falar:

– Se eu não fingisse... se eu não fizesse um esforço para me desligar de você... eu sei que explodiria. Quando enfim pensei que era minha... você se foi. Voou para longe. Foi pousar nos braços de outro. – e ele a olhou fundo nos olhos para completar: – Traidora.

–... mas você... você também f...

– Eu?! Eu sou só um homem infantil e covarde... que não suporta ser ferido... e muito menos me sentir perdedor. Quando eu consigo o que quero, nunca mais tenho vontade de soltar – suas pestanas finalmente desceram um pouco e ele continuou – Não suporto ver ninguém além de mim tocando em você... – e se aproximou mais dela, fazendo-a encostar-se totalmente no parapeito da janela – Se pretende me rejeitar... é melhor que faça isso agora. Vou... lhe dar uma chance de fugir, se esse for o seu desejo.

– Shig...

– Mas lembre-se – cortou-a, taxativo – Se um dia... você voltar atrás e resolver me procurar... já sabe o que a espera.

“Ele é uma criança imberbe. E apesar disso... finge estar bem sozinho. Distribui indiferença. Irritante! Sempre faz com que eu tenha vontade de obrigá-lo a me olhar. Me faz desejar consumi-lo inteiro em mim. Adentrar essa sua mente leviana. Envolvendo-o, preenchendo-o com o meu cheiro... até sufocá-lo com a minha presença. Será que... estes são os sussurros da mulher dentro de mim?...”

Nesse momento, Shigure a virou de costas para si e recostou a fronte sobre a nuca dela, as mãos hábeis desfazendo o nó do hakama fino que ela trajava.

Akito estremeceu de leve ao sentir que o tecido grosseiro vertia solto por suas pernas, indo jazer no chão. E, ainda de costas, descobriu que Shigure fazia descer por seus braços a parte de cima da veste, deixando-a quase nua. Mas não havia pudor entre eles naquele momento. Akito ainda vestia um pequeno short de algodão e pouco delicadas tiras de pano escondendo os seios alvos, apertadas.

Ele tocou seu dorso, por sobre o tecido, dizendo:

– Isso não... machuca você?... – com todos os sentidos que a interrogativa queria saber.

– Sempre... sempre me machucou... – Akito balbuciou, sentindo que mais lágrimas lavavam suas faces quentes. É claro, aquelas faixas lhe escondendo o sexo sempre a esconderam também, afinal, Akito era o Patriarca, e tentava agir como um; mesmo que soasse estranha ao resto da família a sua proximidade intensa com Shigure, e depois com Kureno. Ela queria ter podido gritar para todo o mundo durante todos aqueles anos que ela era uma mulher, sim, e desejava, acima de tudo, ser amada por seu homem. Mas havia uma tradição, uma imagem pela qual zelar. E no entanto tudo aquilo estava ruindo ali, enquanto Shigure, sem desviar os olhos totalmente cobiçosos do corpo esguio e branco, rasgava o pacote com que ainda há pouco a presenteara.

E quando o tecido rico e adornado do quimono alvo, bordado de flores da cerejeira, estava começando a cobrir-lhe a pele, Akito sentiu o coração transbordar de alegria.

– E-eu... não sei como me vestir com isso – ela disse, um tanto envergonhada, mas entregue à vontade dele.

– Não se preocupe, querida... eu ensino você.

E alguns poucos minutos se passaram até que Shigure tivesse terminado de vesti-la, para logo em seguida sentá-la em frente a penteadeira de espelho alto no canto do quarto.

– O-o que você vai fazer?... – ela perguntou, um pouquinho ansiosa.

– Eu vou maquiar você, é claro. – e ele sorriu, os dentes brancos embelezando ainda mais o rosto bonito – Nunca mais despirei você tendo estado vestida de homem. – e sentiu-lhe o tremular nos ombros acompanhado de um ruborizar nas fazes dela – Porque, sim, nós faremos amor daqui a pouco. Mas dessa vez e para o resto da vida, será em uma mulher de verdade que eu vou entrar. Agora, – e fez uma pequena pausa para voltar a falar e disse – cale-se, por favor, e espere paciente. Vai acabar logo.

Quando ele finalmente terminou, Akito já nem de longe lembrava o Patriarca frio da família Souma.

– Isso... combinou muito com você. – Shigure disse, a mão em uma face dela – Está tão linda...

“Minha pele se arrepia... quando você me olha”.

– Akki... eu amo você... – e envolveu o corpo magro com o braço esquerdo, encarando-a firmemente –... já devia saber disso... “e vou continuar a amar... até enquanto me desejar...”.

Nisso, ele a apertou forte e afagou os lábios dela com os seus, gentil, mas de um jeito que parecia não ser a primeira vez. Porque não era.

– Me perdoe pelo equívoco... nada vai acabar logo. – beijando-a mais uma vez, ele continuou – Nossa nova festa... ainda mal começou.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.