PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Cheguei exausta do hospital, dei um beijo na minha mãe, tomei um banho e tamanho era o meu sono que eu caí na cama sem jantar. Cinco minutos depois (na verdade foram três horas, é que minha cama parece uma máquina do tempo, faz três horas se passarem em cinco minutos) ouvi batidinhas na janela do meu quarto.

Fiquei lacrada, era a Sheila, eu tinha certeza!

Retirei de baixo da minha cama uma pedra de calçamento, a qual eu andava com ela na bolsa, pois eu poderia precisar a qualquer momento. Segui vagarosamente para perto da janela: as batidinhas continuavam, mas eu estava pronta para esmagar os miolos daquela gorda.

Puxei o ferrolho e abri a janela, devagar. A pedra estava pronta. Empurrei a janela rapidamente e me deparei com Valeska, aos prantos.

— Valeska?! Nossa, quem é viva sempre aparece hein?

— Tá assustada, Gabi? Achou que fosse quem? — perguntou, enquanto eu a ajudava a entrar no quarto. Tornei a fechar a janela.

— Ora quem? A Sheila né! Ficou sabendo que ela fugiu da prisão? E o pior: matou o Douglas! E ainda tentou matar a Lara, que estava grávida! Eu tô com medo, ela pode vir buscar a gente e fazer algo pior, mulher!

— Espera, é muita informação... — com aquela série de notícias, Valeska pareceu esquecer o motivo pelo qual estava chorando — Douglas, o bonitão do Rock in Rio?

— Sim... pelo que eu sei, a Sheila estava pronta para atirar na Lara, mas o Douglas se jogou na frente da bala. Foi triste, amiga...

— Nossa, e a Lara, como é que ela tá?

— Ela entrou em trabalho de parto, teve uma parada cardíaca e está em coma, muito mal. O Márcio QI tá confiante que ela fique bem. Ele passa as tardes com ela. E o bebê é lindo, você precisa ver. Ele ainda tá na incubadora, pois nasceu pequenininho, coitado.

— Lara, grávida?! Ai, Jesus!Aconteceu muita coisa enquanto eu estive fora. Eu lamento por não estar aqui, ajudando vocês. Mas o que importa é que eu estou de volta.

— Saiu do time? Vai voltar a ser Valeska?

— Sim.

Abracei Valeska, já estava com saudades daquela anta.

— E o que te levou a sair do time? Deve ter sido algo sério. Te descobriram?

— Pior. Eu beijei o Isaac, mesmo ele achando que eu era homem.

Não pude conter as gargalhadas. Valeska me olhou com um olhar sério, de reprovação.

— E o prêmio Activia desse ano vai pra Valeska Soares da Costa, pela maior merda feita nos últimos tempos! — falei. Ela começou a chorar.

— Para, sua abestada, insensível! É por isso que nenhum menino gosta de você!

— Eu não preciso de um namorado pra ser uma pessoa melhor. — retruquei — Além do mais, se um dia eu quiser um namorado, eu não vou me vestir de homem e fingir que eu sou gay.

— Para! O Gustavo não era gay! A Valeska que é muito hétero e não se conteve. — Valeska foi ao espelho e começou a se despir, tirando os trapos que, enrolados no seu corpo a deixavam reta — O Gustavo morreu. Vou esperar meus cabelos crescerem pra voltar totalmente ao normal. Enquanto isso eu uso uma peruca, um aplique, sei lá.

— Tá, amiga, não esquenta. Você não precisa mais se disfarçar, tá? — beijei seu rosto — vou fazer uma caminha de jornal pra você dormir no pé da minha cama.

— Sério? Nossa como você é ruim com os seus amigos...

— Tá, besta, eu divido minha cama contigo. Mas amanhã você vai pra casa. Sua mãe está preocupadíssima.

Emprestei um vestido à Valeska que, em seguida, deitou-se ao meu lado e foi dormir. No meio da noite, ela me acordou, pra variar.

— Gabriela...

— Oi.

— Tá dormindo?

— Estava.

— No que será que o Isaac está pensando agora hein?

— Valeska, são quatro e meia da manhã. Ele deve estar dormindo né? Tchau, amiga, boa noite.

Virei de costas, fechei os olhos e voltei ao meu sono. Aliás, eu sonhava com Anthony Kiedis do Red Hot Chili Peppers e consegui continuar o sonho de onde eu parei. Estranho.

PALAVRAS DE ISAAC SANCHEZ

Eu beijei um garoto!

Bom, pra deixar claro, ele me beijou. Quando Gustavo tocou seus lábios nos meus, eu não tive reação a não ser soltar o seu braço. Era estranho, esquisito, porém senti que estava beijando uma menina, acreditem ou não. Quando ele correu, eu pensei em ir atrás dele mas achei melhor não.

Ele estava gostando de mim, e aquilo estava o corroendo por dentro, eu tinha certeza. E eu bem que há alguns dias eu tivera vários sinais, mas não queria acreditar que Gustavo fosse homossexual, embora ele fosse bem delicado e, vez ou outra, desmunhecava. Exemplo: antes de me beijar, gritou com uma voz fina, dizendo que gostava de mim.

Voltei à sede do RFC, esperando encontrar Gustavo nos dormitórios, mas não vi ninguém além de Piter, que se preparava para dormir. Ele bem que perguntou do Gustavo, pois sabia que havíamos saído juntos, porém achei melhor dizer que ele havia ido para sua casa, visitar a família.

E eu esperava que sim.

E eu confesso que queria que ele voltasse.

No entanto, ele não voltou. E eu tive certeza de que ele não voltaria quando se passou uma semana e não tivemos nem um sinal dele. O técnico Eriberto ficou maluco, pois a estrela do time havia sumido. Gus não atendia o celular e a única maneira de encontra-lo era pelo endereço que havia na sua ficha. Pelos dados, Gustavo estava hospedado na casa de seu primo.

Fiquei com um pouco de peso na consciência e eu mesmo peguei o endereço que havia na ficha de Gustavo, tomei meu carro e fui bater na casa de seu primo. Era um nerd baixinho, de óculos. Márcio Ferrari.

PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI

Naquele sábado, por volta do meio dia, um Camaro amarelo parou em frente à minha casa. Fiquei encafifado com aquilo tudo e passei a observar o veículo, a fim de saber quem sairia de lá.

Era Isaac Sanchez, famoso jogador do RFC. Não mais famoso que o nosso amigo Gustavo.

Eu já sabia que ele iria bater lá em casa e Valeska também, pois quando ela entrara no time, espalhara que era minha prima (primo, no caso) e viera de Pernambuco. Por isso, já havíamos combinado o que eu diria caso o jogador aparecesse.

— Oi, você é o primo do Gustavo, né? — perguntou Isaac, retirando seu par de óculos escuros e o prendendo na gola da camisa.

— Sim, sou eu. Márcio Ferrari. — estendi a mão e ele a apertou humildemente. — eu não curto muito futebol, mas torci por vocês. O RFC está de parabéns. Vejo que vocês faturaram bastante... — apontei para o carrão que estava ali em frente.

— Se não fosse pelo Gustavo, a gente não teria tanto prestígio. — Isaac tinha um pouco de vergonha ao falar de "Gustavo". Eu soube do acontecido entre eles dois e eu não pude deixar de rir, mas disfarçando para que ele não notasse. — Aliás, cadê ele? Há alguns dias ele sumiu e não apareceu mais lá na sede do time.

— Pois é, eu vi no jornal. Parece que estão todos sentindo a falta dele.

— Não sei o que vai ser de nós no próximo campeonato sem ele. Responde, Márcio, cadê o Gustavo?

— Poxa, cara, não sei nem como começar a dizer isso. — tentei ficar com um ar sério. Nunca pensei que fosse tão engraçado enganar um trouxa. Acho que Isaac e Valeska realmente foram feitos um para o outro: duas antas.

— Aconteceu alguma coisa? — Assustado, arqueou as sobrancelhas.

— Não sei. Há mais ou menos uma semana, ele apareceu aqui chorando, chorando muito. Disse que estava com saudades da família dele, pegou as coisas e voltou pra cidade dele.

— N-não pode ser!

— Será que aconteceu alguma coisa lá no time? Vocês estavam pagando ele bem, né?

— Sim. Ah, sei lá!

Isaac parecia um pouco perturbado das ideias.

— Bom, a conversa está ótima, mas eu preciso ir. Acredita que eu já estava de saída? — virei-me, trancando o portão da minha casa e caminhando em direção à parada de ônibus. Isaac me seguiu.

— Espera, Márcio!

— Fale...

— É que... é que... é que...

O jogador ficou me enrolando, parecia querer falar algo. Algo polêmico, para ser mais exato. Acho que ele estava gostando do nosso amigo Gustavo, estava com saudades e não queria admitir.

— Estou com pressa. — falei.

— Pra onde cê vai? Eu te dou uma carona. — ele balançou as chaves do carrão.

— Não, isso pega mal. — quis brincar — Você nem me conhece e fica querendo me dar carona. Não, não...

— Tá me estranhando? — Isaac quase surtou quando eu duvidei da sua sexualidade — Só quis ser gentil com o primo do meu amigo. Mas beleza, eu já vou indo. Se o Gustavo der notícias, pede pra ele me ligar. Ele tem meu número. Falou.

Após se despedir, Isaac Sanchez colocou no rosto os seus óculos escuros, abriu a porta do carro e saiu em disparado.

***

(Música: Christina Perri - Human (Instrumental)

Ainda com uma pequena risada interna devido aos acontecimentos anteriores, cheguei ao hospital onde Lara estava internada. Naquele dia eu a visitaria sozinho, sem a Gabi, que tirara o dia para sair com Valeska.

Era por volta de duas da tarde quando eu entrei no quarto. A enfermeira ficou animada quando me viu chegando. Pus minha mochila com alguns livros em cima de uma cadeira e fiquei observando Lara: ela estava do mesmo jeito.

— Que bom que chegou! — disse a enfermeira — Tenho uma boa notícia.

Fiquei animado, talvez o quadro de Lara estivesse melhorando.

— Sério? Que notícia? A Lara está voltando?

— Não, infelizmente. A notícia que eu tenho é sobre o Gohan. Parece que ele está se recuperando rápido e daqui a alguns dias você já poderá levar seu filho para casa.

Bom, essa é a hora em que eu deveria dizer para a enfermeira que o Gohan não era meu filho e que ela estava tendo um terrível engano. Porém, ela parecia tão animada que não me dava nem sequer uma brecha para que eu pudesse falar.

— Eu sei que você, tão novo, vai ter um trabalhão para cuidar de uma criança sozinho, principalmente na hora de dar o leite, mas o hospital se dispõe de um banco de leite e você pode levar quantas mamadeiras quiser para casa. — continuou ela. Em seguida, tocou meu ombro direito — Fique tranquilo, a mãe do seu filho logo vai ficar bem. — ela sorriu e saiu, em seguida.

Retirei a mochila de cima da cadeira, me sentei, pousei a mochila no meu colo e fiquei processando tudo o que a enfermeira disse. Talvez toda a minha dedicação com a Lara estivesse fazendo as pessoas do hospital acharem que eu era o namorado dela.

Bem que, há alguns meses, eu gostaria de ser. E ela? Já não posso dizer o mesmo.

Por mais que eu estivesse com esperanças de que tudo terminasse bem, eu também pensava no pior, confesso. E se Lara nunca mais acordasse, o que seria do Gohan? O bebê ficaria órfão de pai, no caso o Douglas, e de mãe. Seria mandado para um orfanato e sabe-se lá Deus o que seria da vida daquela criança.

Talvez fosse melhor que continuassem achando que eu era o pai do bebê.

Deixei Lara sozinha por alguns minutos e fui ver como Gohan estava. Realmente ele estava bem melhor. Ao me ver, o garotinho sorriu e eu fiquei um pouco arrepiado com aquilo tudo.

Seria a minha missão cuidar dele, como se fosse meu filho? Ele não merecia ficar abandonado no mundo. Ele não tinha culpa do que seus verdadeiros pais fizeram.

Aproximei minha mão para tocar em seus ralos cabelos e o pequeno Gohan segurou meu dedo mindinho e o apertou com toda a sua força. Eu entendi aquilo como um sinal: ele não queria que eu o deixasse.

E eu não o deixaria. Nunca.