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Sendo Perseguido por um Fusca Cor-de-Rosa


PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Se já não bastasse o meu desespero, Valeska me ligou morrendo de chorar, ainda naquela noite.

Gabriela, eu tô com medo! — disse ela, histericamente, no outro lado da linha. — aconteceu uma coisa muito estranha comigo hoje.

— Mais estranha do que a coisa que aconteceu comigo não foi. Eu quase morri, Valeska.

Eu também!

— Ah, tá. E sabe quem quase me matou? A Sheila! Ela me prendeu no laboratório de anatomia da faculdade e regulou a temperatura para que eu congelasse lá dentro. Era a Sheila, Valeska! Em carne e osso! Mais carne do que osso.

Era ela? Você a viu? Tem certeza, Gabi?

— Como eu não iria enxergar um quilo de banha na minha frente, hein? E mais, um rapaz lá da Universidade viu ela também. Foi ele quem me ajudou e foi à delegacia prestar queixa comigo. Valeska, eu tô com medo dessa gorda, é sério.

Então, Gabi, eu tenho quase certeza que ela tem alguma coisa a ver com o que aconteceu comigo e com o Isaac hoje. Tinha uma cobra cascavel no carro dele. Ela se enroscou em mim e ficou me encarando, foi horrível! O irmão dele, que é biólogo, também suspeita que alguém tenha colocado essa serpente lá dentro. Amiga, o que a gente faz?

— Bom, se ela tentou contra mim e contra você também, acho melhor a gente avisar ao Márcio QI. Eu suspeito agora que ela queria atacar a turma toda. Eu vou ligar pra ele e dizer que tome cuidado com o Gohan e com a Lara. Sabemos que mesmo ela estando num hospital, não é seguro.

Ok, me manda notícias. Boa noite.

Peguei meu celular e tentei ligar para o Márcio QI para alertá-lo. E eu esperava que ainda estivesse a tempo de evitar mais uma tragédia.

PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI

Quando eu estava com Lara, o tempo passava tão depressa que eu, sinceramente, nem via diferença. Porém, eu deveria me preocupar pois havia deixado Gohan sob a responsabilidade da minha mãe, mesmo ela gostando tanto dele.

— Eu já vou, Lara. Prometo que volto amanhã pra te visitar e trago o Gohan. — dei um beijo na sua bochecha e a fitei por alguns segundos.

Lara já não mais ficava o tempo todo vegetando no leito de hospital. Ela já podia se sentar perfeitamente na cadeira de rodas, conseguia fechar as mãos, mas não conseguia andar ou mexer os braços. E falar, para ela, ainda exigia muito esforço. A garota ficava o tempo todo vendo TV, no quarto, sempre na minha companhia ou na companhia de uma enfermeira. Ela estava melhorando e era óbvio que sua vontade de viver era maior que tudo. Eu via pelos olhos dela, que também me fitaram enquanto eu a observava antes de partir.

Eu a prometi que voltaria no dia seguinte e traria seu filho. Porém, as coisas não dependiam apenas da minha vontade. E vocês verão o porquê.

***

Já estava relativamente tarde. Não havia mais ninguém na rua e, como eu estava sem grana, tive de ir até um ponto de ônibus esperar um corujão (ônibus que roda na madrugada). Eu contava com mais ou menos quatro horas de sono antes de acordar cedinho para ir à faculdade encarar todos aqueles números do curso de engenharia.

Eu teria de caminhar alguns metros até chegar ao ponto de ônibus. E quando a rua está escura, o caminho parece ser mais longo. Tentei apressar meus passos, principalmente quando os primeiros respingos de uma provável tempestade começaram a cair do céu.

Eu estava quase chegando ao local onde eu esperaria o ônibus, no entanto um par de faróis reluzentes que surgiu do nada ali naquela rua dificultou minha visão, o que me impediu de continuar andando.

Fiquei parado no meio daquela avenida deserta, assim como o carro que estava a poucos metros de mim e ainda com os faróis acesos. Percebi que era um fusca, pois o motor explicitamente velho estava ligado e fazia um barulho irritante e reconhecível. Retirei meus óculos e os enxuguei na minha camiseta, pois eles estavam embaçados devido aos tímidos respingos de chuva que vinham aos poucos das nuvens. Contudo, fiquei com vontade de correr quando o motorista, o qual eu não conseguia ver, deu partida no carro e foi se aproximando, diminuindo cada vez mais rápido a distância que havia entre mim e o seu carro e aumentando a velocidade à medida que se aproximava.

O motorista queria me atropelar.

Desesperado, virei de costas e comecei a correr de volta ao hospital, pois lá eu teria um pouco mais de segurança. Entretanto, a chuva engrossava e os óculos novamente embaçados ofuscavam a minha visão. Enquanto eu corria, retirei meu celular do bolso parar tentar ligar para alguém e pedir socorro. Foi aí que eu me lembrei que ele estava desligado, por antes eu estar no hospital e lá eles prezavam pelo silêncio. Com a vista embaçada e correndo desesperadamente, eu tateava por entre as laterais do meu aparelho celular o botão que o fazia ligar, mas eu não encontrava. Eu sentia que o carro estava perto de mim pelo barulho do motor, que ficava cada vez mais próximo.

Eu estava tão cansado que, mesmo antes que eu pudesse chegar ao hospital, minha respiração falhou e a única coisa que me restou a fazer foi parar, o que serviu de prato cheio para que o condutor do fusquinha assassino fosse com tudo para cima de mim.

Como reação, eu fiquei em cima do capô, segurando pelas laterais do carro enquanto o motorista (cujo eu não conseguia ver por causa da escuridão e porque meus óculos ruins acabaram caindo com o impacto) fazia manobras, acelerava e fazia de tudo para que eu caísse no asfalto e ele pudesse passar por cima de mim. Porém, meus dedos ficariam cravados naquele carro até que aquele assassino cansasse.

E ele cansou. A pessoa em questão parou o carro e eu escorreguei lentamente pelo capô, caindo sentado no chão molhado pela fina chuva, que cessara. Sem óculos, minha visão ficava ruim, mas eu consegui ver quando uma silhueta enorme saiu do fusca e se aproximou de mim. Eu tentei fugir, mas a pessoa era muito forte e, me segurando pelo colarinho, me obrigou a entrar no carro após me amarrar e me amordaçar.

Eu tentava gritar por socorro, mas a mordaça que aquele ser humano infeliz havia colocado em mim era tão forte que nem a única coisa que eu conseguia fazer era gemer. Eu, no banco de trás do carro, me debatia enquanto o motorista seguia em alta velocidade para algum lugar, cujo eu desconhecia, mas com certeza não era nada bom.

Quanto mais eu pensava nas possibilidades do que poderia acontecer comigo, mais eu me desesperava e me debatia, chutando o banco do motorista que estava a minha frente. Eu tinha medo, pois sem enxergar quase nada e com as mãos amarradas para trás, era impossível eu me defender.

Fiquei quieto quando eu senti um grande impacto sobre a minha cabeça. O motorista do fusca havia me batido com algo muito pesado, que me fez apagar.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Na noite passada, eu fiquei tentando ligar para o Márcio QI, mas seu celular estava desligado. De manhã bem cedo, quando acordei para ir para a faculdade, liguei para ele novamente, mas não consegui nenhum sinal daquele nerd.

Preocupada, decidi ir até a casa dele, mas encontrei todos os portões fechados, como se ninguém estivesse lá. Esperei por mais uns dez minutos, tentei ligar novamente para ele, mas acabei desistindo de esperar e seguindo sozinha para aula.

Queria afastar os pensamentos negativos de mim, mas era impossível, sabendo que sempre a imagem de Sheila que eu vi pela janela daquele laboratório vinha à minha mente. Eu já suspeitava que ela poderia voltar, e a partir daquele momento eu tinha certeza.

Segui no automático, pensando muito, caminhando pelo campus quando esbarrei numa pessoa. Era Max, novamente.

— De novo?! Não vê por onde anda, cara?

— Foi mal, Gabriela! — ele me respondeu — Você tá bem?

— Tô com cara de doente? — retruquei.

— Já vi que você vive de mau humor. É sempre assim?

— “Assim” como? Ah, deixa, eu tô atrasada.

Tentei seguir meu caminho, mas Max me segurou pelo ombro. Sacudi-me na esperança de ele me soltar, mas ele foi firme.

— Para com isso! — exclamou — Você me parece preocupada com alguma coisa. É melhor desabafar com alguém do que ficar guardando isso pra si mesma. Tem alguma coisa a ver com aquela gorda de ontem?

Pensei melhor: como Max já meio que sabia da história da Sheila, pois fui obrigada a contar pra ele enquanto fazíamos o B.O na delegacia, comecei a achar que seria legal ter mais um aliado.

— Eu vou te contar, mas eu não sei se você pode me ajudar. — respondi, finalmente, e num tom mais calmo.

— Depende.

— Bom, logo quando eu cheguei em casa ontem, minha amiga Valeska me ligou. Ela é uma anta, sabe? Mas isso não vem ao caso. É que, tipo, ela disse que foi atacada por uma cascavel no carro do namorado dela. Eles suspeitam que a Sheila tenha colocado essa cobra lá dentro.

— Mas, tipo, por que vocês acham que foi ela?

— Ela quer matar a gente, cara! Ela já matou o Douglas, pai do filho da ex-enteada dela, a Lara, que está no hospital. Ela estava muito mal e está recuperando agora. Ela tentou me matar ontem, assim como tentou matar a Valeska. E agora, o Márcio, nosso amigo, ele sumiu! Não atende mais o telefone, não estava em casa. Eu tô com medo de que tenha acontecido alguma coisa séria com ele.

Acho que Max pensou que eu estivesse muito desesperada a ponto de me dar um abraço, pra que eu me acalmasse. Na verdade, eu até estava desesperada, pois enquanto eu explicava a situação pra ele, lágrimas caíam do meu rosto. E vocês sabem que é difícil eu chorar.

— Sai pra lá! — comecei a esmurrar o peito daquele magricela de cabelo cacheado.

— Desculpa. Força do hábito. Quando eu vejo um amigo desesperado, eu simplesmente o abraço. — Tentei abrir a boca pra falar que ele não era meu amigo, mas Max levantou o tom de voz e continuou — Eu sei, eu sei, eu sei que não sou seu amigo, mas eu já disse que é força do hábito. E olha, Gabi — ele percebeu que eu o olhei com um olhar de ira e corrigiu — Gabriela Carvalho... como eu sei que você, mesmo turrona, preza por suas amizades, e devo dizer que eu admiro muito isso numa pessoa, eu vou te ajudar.

— Sério?! — meus olhos brilharam para Max, e logo eu tratei de me recompor e escondê-los. — Quer dizer... sério? — perguntei, agora mais fria e com menos emoção.

— Sim. Me aguarda aqui que eu já volto. A gente vai achar seu amigo, eu prometo.

Após frisar a última frase olhando nos meus olhos, Maximiliano saiu correndo, esvoaçando seus cachinhos castanhos contra o vento e carregando aquela mochila preta que ele sempre levava nas costas. Poucos minutos depois, um cara de moto, com um capacete preto parou perto de mim. Ele tirou o capacete.

— Vamos? — o motoqueiro era Max — Sobe aí e me diz onde você acha que o seu amigo Márcio está.

Fiquei meio tentada a subir, mas recuei. Max colocou o capacete debaixo do braço e perguntou:

— Qual é? Eu fui pegar essa moto emprestada só pra te ajudar!

— Você não está com segundas intenções, né? Olha que eu acabo com a tua raça.

Max revirou os olhos e, sem seguida, ficou olhando para o nada. Silêncio. Segundos depois, ele falou:

— Estou esperando.

Sem escolhas, peguei o capacete extra que havia na moto, coloquei-o na cabeça e, sem ter onde colocar as mãos, agarrei na cintura daquele cara.

— Não pensa besteira só por que eu estou segurando aqui. Não sou “tuas nêga”.

Max deu partida na moto e arrancou rapidamente pelo campus, saindo em seguida da Universidade e pegando a avenida principal. Era tão rápido que a comunicação era quase impossível. Mesmo assim, ainda consegui dar umas broncas naquele músico.

— Cara, vai mais devagar!!! Eu nem disse onde era!

— E pra onde é que a gente vai? — ele perguntou. Sua voz parecia estar ao longe devido ao impacto que o vento causava sobre nós.

— Vamos procurá-lo no Hospital Geral! Tenho certeza de que ele estava lá ontem à noite. E talvez alguém tenha visto Márcio QI! — gritei.

Max deu uma curva muito louca com aquela moto, a qual eu achei que fosse cair por causa dela. Ele seguiu por alguns momentos na contramão até encontrar um desvio, para que pudéssemos pegar o caminho de uma outra avenida, cuja iria para o hospital. E eu, por um momento, achei que aquele louco estranho fosse me levar para outro lugar, mas eu acho que ele era (apenas) um bom ser humano.

PALAVRAS DE LARA PACHECO

Acordei um pouco cedo naquela manhã. Normalmente, como eu estava no hospital, sem poder fazer quase nada, eu aproveitava para dormir o máximo que eu podia.

Senti-me um pouco diferente, o mundo não parecia tão parado. Eu parecia não estar tão fraca como eu estava no dia anterior. A única coisa que eu conseguia ver era o teto branco do hospital, porém eu senti naquele momento que eu poderia ir além, que eu poderia me mexer mais, pois eu me sentia bem melhor.

Parecia como mágica: eu movi minha cabeça para o lado esquerdo da cama e vi a porta do quarto, que estava fechada. Arrisquei virar minha cabeça para o lado direito e consegui. Realmente os exercícios que eu vinha fazendo desde o dia em que eu acordei do coma me deixaram melhor. Os músculos dos meus braços e pernas pareciam mais fortes, o que me deu a liberdade de tentar mexê-los, o que eu consegui. Soltei um pequeno grito, ainda com dificuldade, tentando chamar alguma enfermeira. Contudo, o grito saiu tão baixinho que ninguém chegou a me ouvir.

Eu me sentia mais flexível, e aquilo, para mim, era maravilhoso. Eu não via a hora de Márcio e Gohan chegarem para que eles pudessem ver o grande avanço que aquele dia estava sendo para mim. Eu queria pegar o meu filho e envolve-lo nos meus braços, beijá-lo e fazer com que ele sentisse que tinha uma mãe pela primeira vez na sua vida. Eu queria abraçar todos os meus amigos, que cuidaram do meu filho como se fossem seus, e naquele momento era possível.

Eu queria abraçar Márcio e agradecer por toda a dedicação que ele havia tido por mim. Eu queria me desculpar, eu queria contar a verdade pra ele, sobre aquele dia em que Sheila havia me obrigado a mentir para ele.

Eu estava pronta para falar com ele. Bastava que ele viesse me visitar mais uma vez.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Ao entrarmos na rua onde o hospital se situava, Max finalmente seguiu com a moto um pouco mais devagar. Era uma rua um tanto quanto deserta, pois ela era composta por, além do Hospital Geral, vários condomínios de luxo que eram cercados por seus grandes muros devido a grande insegurança da nossa cidade.

Enquanto Max rumava em direção ao hospital, eu olhava para o chão, um pouco desconfortável por estar segurando em sua cintura.

— Gabriela, se você ficar olhando para o chão vai acabar vomitando. — disse ele.

— Eu vou ficar bem. — respondi, quando vi no chão algo estranho, porém familiar.

Pedi que Max parasse a moto. Tirei o capacete, desci e corri, procurando pelo chão os objetos que eu havia acabado de ver. Achei. Tratava-se de um par de óculos e de um celular, ambos quebrados. Eles pertenciam a Marcio QI.

Maximiliano se aproximou e me viu, incrédula, segurando aqueles objetos como se fossem as respostas para as minhas perguntas sobre o desaparecimento de QI.

— O que é isso?

— Os óculos e o celular que Márcio usa... usava. Eu... eu acho que a Sheila fez alguma coisa com ele.

Eu não sabia mais o que pensar. Meu mundo havia desabado. Eu poderia ter perdido o meu melhor amigo.