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Mudança Forçada de Hábito


PALAVRAS DE LARA PACHECO

Caminhamos por alguns minutos: eu na frente, João Paixão me empurrando com o canivete e Sheila, lá atrás, com um pacote de fandangos cujo cheiro estava me deixando maluca. Realmente eu estava morrendo de fome e a minha madrasta querida insistia em fazer suas gordices fora de hora.

Chegamos ao casarão, próximo a igreja. Sheila foi quem apertou a campainha.

— Se você não ficar quietinha, eu juro, Lara, que acabo com a tua raça. — avisou Sheila.

Segundos depois, uma freira atendeu a porta. Ela olhou Sheila de cima a baixo e depois olhou para mim.

— Olá, a senhora deve ser a Irmã Mariah. Foi eu quem ligou hoje cedo. Sou Sheila Del Vecchio e essa aqui é a garota sobre quem lhe falei pelo telefone. — após dizer isso, Sheila me empurrou para cima da freira.

— Oi. — falei, sem graça, com medo, com fome.

— Você quer mesmo se entregar e viver somente para Deus? — perguntou Irmã Mariah. Franziu as sobrancelhas. Sheila me cutucou. Era pra eu confirmar.

— É o que eu mais quero. — respondi.

Olhei para Sheila e ela acenou com a cabeça. Ela finalmente conseguiria se livrar de mim.

PALAVRAS DE DOUGLAS LORETO

O frio das noites de inverno cariocas me castigava. Era difícil saber que eu estava desabrigado novamente, que eu não tinha para onde ir e nem com quem contar.

Fiquei pensando na minha mãe e depois em Lara. Elas foram as únicas pessoas que me amaram verdadeiramente, mesmo a vida me tirando elas de maneiras tão cruéis: enquanto uma eu perdi para sempre, sem volta, por culpa da natureza, outra foi embora da minha vida por descobrir o meu segredo mais sujo.

Mas sobre esta última, eu poderia tê-la de volta na minha vida.

Seria eu capaz de trazê-la de volta para mim, lutar pelo seu amor e me mostrar arrependido por ter mentido?

Em todo caso, se eu quisesse ter Lara para mim, eu teria que cuidar da minha vida antes. Eu sabia que morar na rua não era uma coisa legal, pois eu já havia passado por isso antes.

***

Como colocar gasolina no meu carro era um luxo, tive de abandoná-lo. Sendo assim, caminhei por várias horas durante aquela noite, que deu lugar a perigosa madrugada. Eu não sabia se estava com frio por causa do medo ou por causa do tempo, porém eu tinha que manter o foco.

Finalmente cheguei no lugar onde eu queria. Era naquele ponto onde eu dormi, por vários meses, depois que eu perdi minha mãe e quando eu comecei a descobrir o mundo de outra maneira.

Procurei por umas pessoas, como Thayla e Jennifer, as travestis que faziam programas e tinham aquele local como ponto. Eu tinha certeza de que elas estariam ali aquela noite, mas não estavam.

Olhei para o alto, onde havia uma espécie de projetor que exibia propagandas de marcas de roupas famosas e a previsão do tempo: era cerca de 1 da manhã e, segundo as informações ali fornecidas, choveria.

De repente, vi uma sombra. Era uma pessoa que vinha na minha direção. Encolhi-me no canto da calçada daquela loja e observei. Temia, porque havia muita gente maldosa, principalmente àquela hora da noite. Eu não tinha como defender.

Era uma mulher. Bem, não exatamente. Era a Thayla. Estava diferente, fazia muito tempo que eu não a via.

— Doug? Doug! — exclamou e me abraçou.

Dava pra se perceber que era um homem: seios falsos e exagerados, nádegas falsas e exageradas, um gogó avantajado, cabelo tingido de loiro. Thayla era humilde, mas era uma das pessoas mais bacanas que eu conheci na rua quando tinha dezesseis anos e tive que passar por aquilo...

— Eu... eu tive que voltar a morar na rua.

— O que houve, querido? — ela percebeu que eu estava muito triste e acuado, bem do jeito como eu estava quando cheguei ali da primeira vez e me tratou do mesmo jeito.

— Algumas coisas que eu preciso esquecer — senti falta de Jennifer, a outra travesti que sempre fazia companhia à Thayla — Cadê a Jennifer?

Thayla abaixou a cabeça. Talvez eu não devesse ter perguntado.

— Ela foi assassinada. Por um cara. Você, Douglas, não sabe quais os perigos você encontra aqui na rua. Jennifer sabia, mas mesmo assim arriscou.

Fiquei tenso com aquela notícia. Eu sabia que alguns garotos e garotas de programa eram abusados e às vezes não recebiam o dinheiro pelo “serviço” por que os clientes negavam. Todavia, havia algumas que não aceitavam as injustiças e acabavam por lutar até conseguir a grana.

Jennifer foi uma dessas. O cliente, porém, não cedeu e a espancou até a morte. Ele, médico, rico, saiu impune da acusação.

— Thayla, você sabe por que eu estou aqui. — falei.

— Tem certeza de que quer voltar?

— É o único jeito. Eu preciso de dinheiro... É que...

— Tem mulher na jogada, não é? — ela sorriu.

— Uma garota. Eu a amo demais, mas pelo que eu sei, ela está em Fortaleza. Morrendo de ódio de mim.

— Se você gosta dela mesmo, Douglas, lute por ela.

— Eu não sei, Thayla. Ela descobriu o que eu fazia... eu mentia pra ela o tempo todo.

— O que a gente faz não é sexo. É trabalho. É sobrevivência. Muitos morrem, outros sobem na vida e conseguem sair dessa. Eu acredito, Douglas, que se ela te conhecer melhor, vai te perdoar.

Eu estava pronto para lutar pela Lara. Custasse o que fosse.

Mas teria que começar do zero.

PALAVRAS DE VALESKA SOARES

Aquele era o primeiro dia de treino. Acordei bem cedo e me levantei da cama, a qual Márcio QI me cedera. Ele estava dormindo numa caminha improvisada no chão. Para não ter que ir sozinha, pensei em acordá-lo, mas ele passara a noite chorando e chamando pelo nome da Lara. Claro, ele não admitiria nunca.

Tomei um banho, troquei os lençóis que envolviam meus seios e meu bumbum, os quais Gabi colocara para que eu pudesse ficar com o corpo reto (estavam fedendo a suor), calcei um par de chinelos havaianas e, antes de sair do quarto, olhei novamente para Márcio: o coitado estava encolhido, de olhos abertos, olhando fixamente para o nada.

— QI... QI... você morreu? — fiquei de joelhos, perto da caminha improvisada e cutuquei-o — Tá parecendo um defunto...

Fiquei com medo. Muito medo mesmo. Peguei o celular dele e liguei pra Gabi, que me atendeu e disse que logo estaria na casa do Márcio. Ela me aconselhara não falar nada pros pais dele que, àquela hora, estariam dormindo. E eu era o “Gustavo”, um estranho na casa deles.

— Cara, não inventa de morrer não! — voltei a falar, cutucando-o mais um pouco. Ele nem se mexia. Porém, eu pude sentir seu batimento cardíaco, um pouco até acelerado, quando pus a minha mão sobre o seu peito. — Aff, cê tá zoando com a minha cara, né?

Levantei-me e me dirigi até a porta. Dei uma olhadela pra ele de novo e saí.

***

Encontrei com Gabi do lado de fora da casa de Márcio QI. Ela estava um pouco apreensiva.

— Valeska, pra onde você vai? — perguntou

— Pro treino, querida. Agora eu sou uma jogadora.... um jogador. Um jogador de futebol.

Ela ficou me olhando com uma cara de bocó. Mas é claro que ela estava me trollando. Queria ver qual seria a minha reação, mas eu me fiz de forte e não falei nada.

— Cadê o Márcio, senhorita artilheira?

— Está lá no quarto dele. Vegetando. Passou a noite chorando, chamando o nome da Lara: “Lara, por quê? Por quê?!” “Lara, sua traidora”! Nem consegui dormir. Ah, Gabi, o portão tá aberto. Quando entrar, tenta não fazer barulho porque o pai e a mãe dele estão dormindo.

Gabi me fitou séria enquanto entrava na casa e fechava o portão. Ela queria me passar apenas com o olhar que eu estava fazendo merda, já que as palavras e cascudos do dia anterior não serviram de nada.

Me fiz de besta e desentendida, virei as costas e fui em direção ao ponto de ônibus.

O dia seria bem animado.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Quando entrei no quarto do Márcio QI, percebi que a situação era bem mais complicada do que eu havia pensado. Ele parecia uma pedra, com aqueles olhões arregalados, fitando o nada.

— A Valeska me contou que você estava sofrendo por causa da Lara. — disse para ele. Nenhuma reação.

Eu queria saber o que havia acontecido. Eu nunca tinha visto o Márcio QI daquele jeito. Acho que nós estávamos ficando velhos, mudando. Pra pior. Valeska mais tapada, Márcio QI mais maluco, Lara mais nariz empinado e eu, na mesma.

Olhei para a mesinha de cabeceira do Márcio: eu tinha um trunfo. Era o seu notebook. Acho que ele amava mais aquele notebook do que a própria mãe dele, quanto mais a Lara. Peguei-o e ameacei derrubar no chão.

O garoto, como num passe de mágica, piscou os olhos, se desencolheu, se levantou e correu até a mim, tirando o computador da minha mão.

— NÃÃÃÃO!!! Sua louca!

— Tava fazendo manha, né seu safado! — dei-lhe dois cascudos e puxei sua orelha — Tá pensando que qualquer vagabunda pode fazer isso contigo é? Seja homem!

— A Lara não é vagabunda — fixou seu olhar para o chão — quer dizer...

— O que ela fez contigo?

— Me iludiu e depois me deu um pé na bunda.

— Márcio!!! Parabéns!!! — sorri e tomei suas mãos, como se estivesse festejando por algo.

— Hoje não é meu aniversário, Gabi.

— Você não vê a parte boa de tudo isso? Você perdeu seu BV!

— E-eu... eu não beijei a Lara.

Certo. Márcio iria completar seus 17 anos e era BV até aquele momento. Eu só não ficava com ele porque seria bem estranho. E também porque, como vocês estão vendo, ele se apega muito fácil.

Cá, cá,cá,cá,cá — ironizei — Se tá desse jeito sem ter feito nada, imagina se tivesse beijado. — Sentei-me na cama dele e mandei ele contar tintim por tintim o que havia acontecido entre eles dois.

PALAVRAS DE VALESKA SOARES

Cheguei ao campo de treinamento dos jogadores e o treinador Eriberto veio me recebendo com um sorriso bem falso no rosto e abrindo os braços para me abraçar.

— Gustavão!!! Finalmente o nosso novo contratado chegou! Esse sim vai colocar o Regatas Futebol Clube lá pra cima! — me abraçou e me deu três tapas fortes nas costas, que quase deslocaram a minha espinha.

Meus olhos rondaram o campo a fim de encontrar Isaac. Ele não havia chegado.

— Obrigada... — pigarrei — Obrigado por me aceitarem aqui. Prometo ser o melhor jogador do universo.

— É assim que se fala! — disse o treinador Eriberto. — Venha, garoto, vou te entregar seu uniforme.

***

Eriberto me entregou um par de chuteiras tamanho trinta e seis, juntamente com meiões brancos, um calção de cor azul piscina e uma regata de cor laranja.

— Que combinação de cores mais antifashion! — reclamei. Eriberto me encarou, me olhando com uma cara feia.

— Er... é que... é que...

— Gustavo, essas são as cores do RFC: o azul nos dá sorte e, cá entre nós, o laranja nos traz o dinheiro.

— Hum... entendi.

O treinador me levou até o vestiário. Já havia alguns jogadores lá, inclusive Isaac. Quase caí pra trás quando o vi só de cueca!

Se chegasse mais cedo, talvez visse outras coisas. Coisas essas que eu nunca tinha visto e não ficaria muito confortável em ver.

— E aí, Gustavo! — Isaac bateu no meu ombro. Homens são tão falsos! Nem me conhece direito e vem com essas intimi’s.

Eu estava um pouco tensa e sem graça. Precisava trocar de roupa e vestir o uniforme do time, mas não poderia ser na frente de todos aqueles caras saradões, por razões óbvias.

— Isaac, cara — eu não conseguia tirar meus olhos do seu abdômen super trabalhado e eu acho que ele estava percebendo isso — onde é que tem uma cabine por aqui? Tô precisando fazer o número dois. Comi uma feijoada daquelas ontem à noite.

— Sei como é, velho — me deu outro tapão nas costas. Daquela vez minha espinha saiu do lugar. Apontou para a sua esquerda — Pode usar o banheiro dali. Cuidado na hora de dar a descarga.

— Obrigad... o

Banheiros masculinos são estranhos. Eles têm um lugar próprio para fazer xixi, umas privadas fixadas na parede e voltadas pra cima, coisa feia. Além do fedor: e que fedor! Achei que fosse desmaiar ali. Mas me fiz forte. Entrei na cabine onde ficavam as privadas próprias para número dois e me vesti rapidamente.

Quando saí do banheiro, o jogador Piter me observava no canto da porta. Passei por ele bem depressa. O jeito que aquele garoto me olhava era estranho. Parecia que ele estava com medo que eu tomasse seu lugar no time.

Que ele jogue melhor então.

***

— Atenção mocinhas! — gritou Eriberto. Nós jogadores do RFC estávamos dispostos numa fila, lado a lado, ouvindo as ordens do treinador — quero um time com camisa e outro sem camisa.

Pedi ajuda A Deus, Nossa Senhora, Poseidon, Goku, para que eu jogasse com camisa. Em vão

— Gustavo vai pro time sem camisa. Mostra o físico, garoto!

Lasquei-me.