Sexto mês de gestação. Fevereiro de 2012

PALAVRAS DE LARA PACHECO

Eu só precisaria aguentar mais um mês. Só mais um mês. Eu ficaria maior de idade e me mandaria dali, sem que a madre superiora me mandasse de volta para Sheila. E, falando nela, aonde essa gorda estaria?

Deveria estar em algum lugar, torrando o dinheiro do meu falecido pai.

Pedi a Irmã Carolina que procurasse saber notícias de Sheila, de meus amigos e até de minha meia-irmã Clarinha, que poderia estar sofrendo sob as garras de Sheila, assim como eu sofri nas últimas horas antes de ir parar no convento.

PALAVRAS DE DOUGLAS LORETO

Rio de Janeiro

Eu não era o mesmo Douglas de tempos atrás. Eu era um cara com um objetivo: eu precisava encontrar a mulher da minha vida.

Todo esse tempo morando na rua, vendendo o meu corpo, eu me sentia sujo. Eu sabia que, de alguma forma ela não me perdoaria. Contudo, eu precisava olhar nos olhos dela e pedir desculpas por todas as mentiras. Eu só precisava daquilo para viver em paz e seguir minha vida.

Em uma das minhas noites, eu encontrei uma mulher. Ela parou o seu carro à beira da calçada onde eu estava com o meu Chevette – cujo eu acabara de vender por uma merreca para um maconheiro riquinho, colecionador de carros antigos. Ela abaixou o vidro do seu carro e buzinou.

O local onde eu estava era um antro de prostituição. Eu sabia o que ela queria e, realmente eu não estava afim. Não naquela noite. Eu estava com dinheiro, era pouco, mas o suficiente para não ter que fazer aquilo.

— Hoje não, moça.

A mulher abriu vorazmente a porta do carro, a qual bateu no meu corpo. Segurei. Pus minha cabeça para dentro do carro e a encarei.

— Qual, é? Não sou obrigado!

Ela parecia bastante fina e também parecia não costumar frequentar aquele tipo de lugar e nem lidar com pessoas do meu tipo. Tinha por volta de quarenta anos, loira, um vestido vermelho, provavelmente de marca, e muitas joias. Sua maquiagem estava borrada, parecia ter chorado, e chorado muito.

Entrei no carro, fechei a porta.

Amanda Becker, seu nome, era uma rica empresária. Contou-me que sempre sofreu decepções. Os caras a procuravam por ser viúva e rica mas, daquela vez, pegou seu noivo na cama com outra mulher. Uma mulher mais bem mais nova que ela. Foi o cúmulo.

— É por isso que eu estou aqui. Eu não sou mais uma mocinha de quinze anos. Acho que está na hora... — suspirou e começou a chorar.

Eu senti muito dó daquela mulher. Pessoas como ela, haviam aos montes. Eu tentei consolá-la, mas era difícil. Estava arrasada. Depois de alguns minutos chorando, abriu a porta do carro para que eu saísse.

Fiz o que ela pediu.

***

Dias depois, Amanda Becker voltou ao mesmo local. Já não estava mais chorosa. Como da outra vez, abriu a porta do carro para que eu entrasse e assim eu o fiz.

Ela me contou sobre toda a sua vida como se me conhecesse há tempos e eu fiz do mesmo jeito. Amanda Becker surpreendeu-se com a minha história, quando minha mãe morreu e, principalmente com o que eu estava fazendo para rever Lara.

— Você está fazendo isso apenas para ter dinheiro para viajar à Fortaleza e pedir desculpas a uma garota?

— E também para me manter vivo. — abaixei minha cabeça, meus longos cabelos caíram sobre o meu rosto — eu sei que eu não posso ter mais nada com ela. Não desse jeito, sujo, como eu sou. Eu manchei toda a minha vida tentando me manter vivo!

— Não fale isso, garoto. Foi por necessidade!

— Não importa. Eu a humilhei muito e preciso olhar nos seus olhos e pedir perdão. Talvez assim eu possa até morrer em paz. — respondi.

Daquela vez quem chorava era eu. Lembra-se do quão difícil foram aqueles últimos anos me causava dor e angústia.

— Eu vou te ajudar a reencontrar a Lara.

— Sério? — me espantei — como você pode confiar em mim... assim?

— Um de nós dois precisa ser feliz. E se eu não posso ser, eu vou te ajudar. — disse Amanda. — ela deu partida no carro.

Se ela me ajudasse, eu seria grato a vida toda.

***

Sétimo mês de gestação. Março de 2012

PALAVRAS DE LARA PACHECO

Faltava pouco mais de uma hora para dar meia noite, o primeiro minuto do dia do meu aniversário. Eu contava os segundos para que o tempo passasse e para que eu e o meu filho pudéssemos sair dali. Eu não sentiria falta de nada, apenas da Irmã Carolina, que se mostrou minha amiga e segurou minhas pontas por aqueles meses.

Mas dali em diante eu poderia ser livre. Livre!

Como todas as madrugadas e desafiando as regras do convento, fui tomar banho sozinha. Eu tocava a minha barriga, já estava enorme. Também, às vezes, eu sentia o bebê se mexer e até chutar o meu ventre. Era tão mágico!

Pude fechar meus olhos e enquanto a água caía sobre o meu rosto eu estava sentindo o meu filho. Em meus devaneios, eu costumava pensar se era um menino ou menina. Eu sempre quis ter uma menininha, mas se fosse um garotinho eu amaria do mesmo jeito. Mesmo sem ver o seu rostinho, eu tinha um carinho todo especial por aquele bebê.

Quando eu ouvi uma voz, voltei ao meu mundo. Voltei à prisão; Ou seja, voltei ao convento.

— A senhorita sabe que é estritamente proibido vagar pelos corredores do convento a essa hora da noite, não sabe, senhorita Lara Pacheco?

Era a velha madre superiora. Irmã Mariah e o seu tom aristocrático de sempre. Eu a respondi, de costas para ela, na esperança que ela não visse minha barriga.

— Estava com calor. Perdão, irmã.

Não ouvi mais nenhum sinal, contudo fiquei com medo de me virar para me certificar de que Irmã Mariah havia saído. De repente, vi uma mão, que desligava o chuveiro. Era da velha.

Olhando o meu corpo desnudo, inclusive a minha barriga de gestante, espantou-se e abriu a boca, soltando um grito agudo em seguida.

PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI

O ano mal havia começado e eu já estava enterrado em matérias e mais matérias atrasadas para estudar. Eu nunca havia pensado que o 3° ano seria tão difícil, inclusive para Gabi, que se mostrava mais nerd do que eu naquele tempo.

Como a maioria das pessoas, eu estudava pelo computador ao mesmo tempo que via bobagens legais na internet. Cliquei sem querer num banner, cujo me levou a um site de notícias e logo eu vi a foto de Sheila com uma roupa listrada de presídio e segurando uma placa com uma numeração. Confesso que fiquei espantado. Aquela louca estava presa, o que ela estaria fazendo naquele site?

Fiquei mais espantado ainda quando vi a legenda da imagem em letras garrafais: “PROCURADA!”.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Quando Márcio QI me enviou aquele link via Facebook eu quase caí pra trás. Desde quando Sheila havia fugido da prisão? E como aquele monte de banhas conseguiu escapar?

Sabe, gente, eu nunca tive tanto medo na minha vida. Eu realmente achei que ela ficaria ali até apodrecer, porém, estava enganada. O pior de tudo, ela poderia até voltar, me procurar, apenas para se vingar de mim!

A partir dali, passei a andar com uma enorme pedra dentro da bolsa. Para onde eu ia, sempre achava que estava sendo seguida. Era horrível. Estava começando a ficar em pânico!

PALAVRAS DE LARA PACHECO

Irmã Mariah, chocada por haver uma freira grávida entre as irmãs do convento, me tirou de baixo do chuveiro puxando a minha orelha. Eu, surpresa com aquilo, não tive nenhuma reação de gritar por dor.

A madre superiora retorcia minha orelha à medida que me arrastava pelo banheiro com toda a sua ira, até chegarmos a porta. Em seguida, abrindo a porta enferrujada do banheiro do convento, Mariah saiu me arrastando pelos corredores enquanto eu clamava por piedade.

Eu estava nua, num lugar ainda estranho para mim e com pessoas ainda estranhas para mim, sendo humilhada por aquela mulher que deveria cultuar o amor ao próximo como o seu bem maior.

— Senhorita Lara Pacheco! — ao berrar meu nome e fazer com que sua voz ecoasse, Irmã Mariah me jogou no chão de um dos corredores e me olhou com toda a sua cólera. — EU TE REPUDIO!

Ouvi vários passos que, vindos ao longe, se aproximavam depressa. Eram as outras freiras que, ainda em trajes de dormir, talvez tivessem acordado e/ou tido suas orações da madrugada atrapalhadas pela gritaria.

— ESTÃO VENDO?! — gritou Mariah, para as outras freiras, como se ela fosse um capitão, um general, ou algo do tipo — CRIÁVAMOS UMA VÍBORA AQUI DENTRO DESTE CONVENTO. SERÁ QUE NINGUÉM PERCEBEU?

As gritarias agora eram com as outras irmãs que não tinham culpa de nada. Eu aproveitei a distração daquela tirana para que pudesse me encolher no canto da parede e tentar cobrir meu corpo dobrando os joelhos e os rodeando com os meus braços.

— A gente não sabia de nada...

— A gente não percebeu, Madre.

Ouvia as outras freiras dando explicações enquanto Mariah as sondava até a última gota. Eu não estava fazendo nada de errado, apenas estava tentando sobreviver a minha própria madrasta. Aliás, alguém tinha de dizer àquela velha que eu não estava ali por livre espontânea vontade!

Ela mandou que as outras freiras voltassem aos seus aposentos e virou-se para mim novamente. Encolhi-me ainda mais no canto da parede, pois seus olhos cheios de cólera me intimidavam de uma maneira descomunal. Eu não sabia mais o que poderia acontecer comigo.

Lembrei que faltavam poucos minutos para que eu completasse meus tão sonhados dezoito anos.

— Levante-se. — ordenou Mariah.

— Não! — fui firme. — O que a senhora vai fazer comigo? Me exorcizar? — eu gargalhei, mostrando todos os meus dentes. Meu plano era fazer ela pensar que eu não estava nem aí, contudo por dentro eu estava aterrorizada.

Mariah se aproximou e tornou a me puxar pela orelha. Ela tinha uma força tão grande que por alguns momentos eu achei que ela arrancaria a minha orelha. Fiquei de pé à força, ainda tentando cobrir minhas partes íntimas com os braços.

— Está com vergonha de quê?! Uma moça que faz o que você fez não deveria ter vergonha de nada!

— Estamos no século XXI! — retruquei — Em que ano vocês estão, aqui, nesse convento, no meio do nada? A vida é minha e eu faço o que eu bem quiser! — gritei, bem alto, o que fez com que a madre se encolhesse — Eu não estou aqui porque eu quero e sim para salvar minha vida. A Sheila, aquela mulher, é uma a assassina! Ela matou o meu pai e se eu ficasse sob as garras dela eu morreria também!

— Nada disso justifica sua gravidez. Quem é o pai, Lara?

— Não é da sua conta! Isso foi um erro, eu sou humana e posso errar e aprender com eles! Não vai ser a senhora quem vai me julgar. — finalmente dei alguns passos à frente e a empurrei, não me importando com a nudez.

— Para onde vai, insolente?

— Vou buscar minhas coisas e me mandar daqui.

Corri até o quarto, abri minha mala, peguei uma camisola e vesti. Guardei rapidamente alguns dos meus pertences que estavam em cima da cama, tomei a mala em meus braços e corri até a porta de saída do convento. Irmã Mariah estava bloqueando a passagem com o seu próprio corpo esguio.

— Você não vai a lugar nenhum. Por mais que esteja prestes a se tornar mãe, ainda é menor de idade. Ligarei para a sua madrasta e contarei tudo a ela.

Engoli a seco em pensar que Mariah com certeza ligaria para Sheila.

O grande relógio, porém, começou suas badaladas. Eram doze badaladas seguidas. Meia noite.

— Não sou mais menor de idade. Acabo de fazer dezoito anos.

Empurrei aquela demônia que se dizia serva do senhor e corri. Era apenas eu, meu filho e uma mala.

***

Quanto mais eu andava, mais eu percebia que aquele convento era o lugar mais afastado que Sheila poderia ter me mandado. Ela realmente queria que eu sumisse do mapa e, de alguma forma, conseguiu.

Meus pés, inchados, ardiam muito. O peso da mala também me incomodava, então passei a carrega-la com a mão esquerda.

Finalmente, depois de quase uma hora caminhando, encontrei uma luz. Era um semáforo. Sorri, pois percebi que finalmente havia chegado em uma avenida qualquer. Ouvir buzinas e barulhos de carro nunca me fez tão bem.

Cheguei a um ponto de ônibus e fiquei esperando um “corujão”. Estava demorando demais e aquele lugar estava muito deserto. Temi um pouco, mas me concentrei em olhar para o horizonte e rezar para que um ônibus aparecesse. Aproveitei para rapidamente retirar algumas economias de um fundo falso da minha mala.

Finalmente eu vi faróis. Era um carro preto, feio e discreto. Ele parou ao longe. O motorista, eu não conseguia ver direito, mas ele com certeza parecia olhar muito para mim. Pensei em voltar, mas temi em perder o ônibus. Assim, combinei comigo mesma que se alguém saísse de dentro daquele carro, eu correria. Eu faria qualquer coisa para proteger meu filho.

Logo atrás do carro finalmente apareceu um ônibus. No letreiro do ônibus aparecia: “FORTALEZA – RODOVIÁRIA”. Achei que talvez lá eu encontrasse abrigo pelo menos até o dia seguinte. Dei sinal e ele parou. Subi e pela janela eu pude ver aquele carro estranho que ficava para trás, mas que já estava dando partida.

Quem seria? Será que aquela pessoa estava me seguindo?

Paguei a passagem e sentei, encolhida em um dos bancos do veículo.

PALAVRAS DE DOUGLAS LORETO

Quando o ônibus finalmente chegou à rodoviária de Fortaleza já eram quase cinco da manhã. Foram quase dois dias de viagem do Rio até lá e eu estava exausto. Estar naquela cidade, porém, depois de tantos anos, me dava uma sensação esquisita.

Eu estava perdido e não sabia para onde ir dentro daquela cidade. Mas eu tinha encontrar a Lara e pedir o seu perdão.

Carregando uma pequena bagagem, comecei a andar no meio daquelas pessoas tentando escolher qual delas eu pararia para pedir ajuda. Apenas informações, pois dinheiro, para mim, não era problema, pois Amanda Becker havia me dado uma bela quantia, além da passagem.

Vi uma moça grávida vestida numa camisola rosa bebê. Dormia no canto de uma parede. Usava a mala como travesseiro e seus cabelos cor de ferrugem cobriam seu rosto. Parecia bem nova e desamparada.

Retirei do meu bolso uma moeda de um real e a pus perto de si. Era o único dinheiro trocado que eu tinha naquele momento – o que era um luxo. Continuei andando, ainda com pena daquela pobre moça.

PALAVRAS DE LARA PACHECO

Eu acordei quando senti que alguém havia estado ali, perto de mim. Eu havia sentido um perfume familiar. Quando percebi que já era dia, me levantei rapidamente, peguei minha mala e saí andando a procura de um telefone público.

Eu estava disposta a ligar para os meus amigos e lhes pedir ajuda.

***

Havia um lugar na rodoviária onde ficavam alguns telefones públicos. Como ali era meio vazio – pois as pessoas estavam abolindo o uso daquele tipo de telefone – aquele local não era muito bem frequentado. Normalmente servia de abrigo para os drogados. Felizmente àquela hora não havia ninguém lá.

Tirei o telefone do gancho e tentei puxar da minha mente o número da Gabi. Era o único que eu sabia decorado, mas depois daquele tempo e daquela série de acontecimentos eu acabei esquecendo Alguns números vinham, vagamente pela minha cabeça, mas o número completo, não.

O bebê chutava muito minha barriga. Era incômodo naquela hora, haja visto que eu estava com fome. Ele também deveria estar.

Tentei discar um número, achando que era o da Gabi, e a cobrar. Que a sorte estivesse comigo...

PALAVRAS DE DOUGLAS LORETO

Como eu havia perdido meu celular, comprei um cartão telefônico perto dali e procurei um telefone público. Queria ligar para Amanda Becker e dizer que eu havia chegado.

A moça que me vendera o cartão telefônico me dissera que lá mesmo na rodoviária havia um local com vários telefones públicos. Segui na direção que ela me indicou, mas antes não pude deixar de perceber uma outra mulher, muito gorda, com uma roupa florida, que transitava rebolando por lá e seguia lentamente na mesma direção que eu iria. Como estava apressado, corri à sua frente.

Chegando lá, pude perceber que a moça grávida de cabelos cor de ferrugem estava em um daqueles telefones, virada, teclando aqueles números. Ela me parecia tão familiar... Se ela não fosse tão humilde eu acharia que fosse a Lara.

Quando terminei minha ligação, guardei o cartão telefônico no bolso da minha calça. A mulher gorda de roupa engraçada estava escorada na parede, observando a moça grávida que ainda estava concentrada no telefone. Me assustei quando ela puxou, do seu grande decote, um revólver.

Eu não sabia se corria, se gritava, se pedia ajuda, ou se alertava a garota que aquela mulher gorda estava prestes a atirar contra as suas costas!

— Achou que iria se safar, vadiazinha? — a mulher gorda disse, apontando a arma.

A moça gestante ouviu e soltou o fone, que ficou pendurado pelo fio. Parecia que ela já conhecia aquela voz. E eu, continuei entre elas duas, sem saber o que fazer.

A gestante colocou as mãos para o alto, como se fosse bandida e começou a se virar, aos poucos. Eu finalmente poderia ver o seu rosto. Quando ela olhou para a mulher, se assustou. Porém, creio que ela ficou mais assustada ainda quando me viu.

Era ela, a Lara! Ela estava grávida. O filho... o filho poderia ser meu!

Eu ouvi quando a mulher puxou o gatilho e mirou contra a barriga de Lara. Eu senti um arrepio na minha espinha e quando ela disparou, minha única reação foi pular, pular na frente de Lara.

Não senti nada além de uma dormência, logo após a bala me acertar e eu cair no chão. Ainda não sabia o que aconteceria comigo, mas eu só conseguia ouvir passos, gritos e choros. Lara chorava por mim?