- Como acha que isso vai acabar, Cartier? – Valerius pergunta ao irmão.

- Não sei... Mas não será fácil...

- Você acha?

- Guerras nunca são fáceis... Principalmente por que não podemos ser expostos... Seria catastrófico...

- Não teríamos como evitar a extinção. – concluiu, pensativo.

- Não.

Cartier atravessa a sala escura, sentando-se numa das poltronas, olhando para o fogo azul de sua lareira, alimentado pela fumaça que vertia de seus irmãos que ainda trajavam a grande e pesada capa.

- A menos que...

- A menos que?

- Vocês acordassem os originais, que dormem dentro de vocês.

- Eu faria isso para proteger a minha raça. – ele admite.

- Tenho certeza de que os outros Lordes também.

- Hump. Não colocaria minha mão no fogo pela harpia das neves... Ele sempre foi um burocrata cretino. – disse, irritado.

- O Lorde Valsher não é um tipo muito confiável.

- “Não muito confiável” é um grande eufemismo, meu irmão.

- Hm... - Valerius não se manifesta demais, o irmão começaria a citar todos os defeitos que via em seu antagonista.

- Já o Lorde de Vanice... Deve estar muito humilhado agora... – disse, pesaroso.

- Eu creio que sim...

- Quando me coloco no lugar dele... Ter o nome de minha família manchado por uma traição... Eu não sei se suportaria.

- Ele é um homem muito forte.

- Eu não consigo compreendê-lo...

- Por que não?

- Ele parece ter algum tipo de empatia pelo irmão de Alexis, Luka.

- Ah, aquele loirinho de aparência delicada, mas de olhos cáusticos?

- Esse.

- Não me surpreende, Andrew também gosta dele.

- Não coloque palavras na minha boca, Valerius! – Andrew grita de seu quarto, seco e frio.

- Ouvir a conversa dos outros é feio, Drew! – ele ri.

- Não coloque o meu nome que eu não vou ouvir nada! – respondeu, indiferente.

- Vocês dois não sabem parar de discutir...? Nunca? – Cartier suspira.

- Em todo caso, o loirinho é bem legal.

- Você só gosta dele por que ele não cai pelo seu charme, Valerius. – Cartier diz, apoiando a cabeça em uma das mãos.

- Mas é claro! Que outro motivo haveria para gostar de alguém? É por isso que gosto tanto dos Devareaux. - um sorriso.

- Não me conformo que alguém idiota como você seja meu irmão... – ele suspira. – Você parece uma adolescente colegial...

- Mas como você me destrata, Cartier...

- No dia que você for um respeitável cão das sombras, e não um mauricinho adolescente, eu vou te levar a sério. – disse, casual.

Valerius suspira, indo para o próprio quarto. Cartier sempre teve modos rudes, mas não significava que não considerava todos os seus irmãos como dignos de seu nome.

Se realmente não achasse, iria dobra-los e quebra-los e remonta-los até que fossem...

As crianças perdidas entram pela porta, parando ajoelhadas diante de seu senhor e único mestre, mesmo que acatassem as ordens dos outros irmãos. E ainda assim não faziam isso por outra razão, que não ordens do próprio Cartier.

- Então?

- Nada, senhor... Nada... Apenas rumores, muitos deles... Muitos rumores... – falavam em ritmo atropelado e ansioso.

- Houve alguma perda?

- Não senhor... Rodamos toda a cidade... Nada cheirava fresco... Tudo antigo... Tudo...

- Hm... – disse pensativo. - Alguma trilha para fora da cidade?

- Duas, senhor... Duas. – repetiu.

- Avisaram aquelas coisas que trabalham para a harpia das neves?

- Fala daqueles bichos meio pássaro meio gente? Daqueles?

Os híbridos tinham o formato de um anjo convencional, de acordo com a crença humana, eram humanos assexuados, com asas brancas nas costas.

Os humanos apenas fantasiaram um pouco com o resto.

- Isso.

- Avisamos, avisamos sim... Eles disseram... Disseram que não podiam... Não podiam sair da cidade... Não podiam sair da cidade...

- Ah! Valsher e suas malditas burocracias! – ele disse, pondo-se de pé, fazendo tremer as pilastras.

A criatura meio canina que falava com ele se encolheu, abaixando as orelhas, assustada.

Cartier respirou fundo.

- Não estou zangado com você criança... Apenas me irrito com a harpia das neves, só isso.

- Precisa de mais alguma coisa, mestre? Precisa? - perguntou, solícito e ansioso.

- Leve um recado para Alexis... Diga que a harpia das neves não quer ser realmente útil... Repita o que me disse, diga tudo isso a ele.

- Certo, mestre... Certo...

E saiu a galope pela porta da frente.

- O resto está dispensado, vão!

- Sim mestre, sim...

E eles se espalharam pelas sombras.

- Ah... Harpia das neves... Até quando vai durar essa sua maldita má vontade...?

***

- Mestre Valsher... Um dos animais de Cartier acaba de passar correndo.

- Provavelmente indo falar que eu não tenho comprometimento para o Filho da Noite. – disse, largando a caneta. – Ele acha que eu devo mandar os híbridos atrás da trilha que aquelas coisas dele encontraram... Mas eu preciso de mais do que a trilha encontrada por um lobisomem para mandar os híbridos para fora da cidade.

- Eu entendo, mestre... Perfeitamente.

- É claro que você entende, você para pra pensar, não age por impulso como o cão infernal e aquelas bestas animalescas dele. – disse, rolando os olhos.

- O que vai fazer quanto a isso, senhor?

- Nada. Deixe que ele me difame o quanto tiver vontade, não mudará minha postura.

- Sim, claro. Valsher, manteremos os híbridos acordados.

- Certo, mas mantenha-os presos.

- Certo.

***

A criatura entrou a galope pela porta da frente, farejando o ar, os irmãos Devareaux olharam todos para o animal que entreva pela porta da frente, arfando e parecendo procurar alguma coisa.

- Um lobisomem...? – Dylan inclinou a cabeça de leve para o lado.

- O que essa coisa faz aqui? – Lud pergunta, sentando direito na poltrona na qual estava, sério.

- Use a cabeça, Lud. Cartier deve tê-lo mandado. – Ivan disse, voltando a mexer nas pastas e papéis que mexia antes.

- Isso é óbvio, estou perguntando por que.

- Se ele não foi falar com você ainda, isso quer dizer que o motivo não é da sua conta. – disse simplesmente.

- Se não vai dizer nada útil, Ivan, por que não se cala?

- Por que isso É útil. Pelo menos para mim.

- Vocês dois! Calem-se. – Alexis descia a escada, suspirando. – Havia esquecido como manter vocês dois morando na mesma casa pode ser danoso a longo prazo... O que você quer lobisomem?

- O mestre... Pediu... Pediu pra eu vir... Vir aqui... Falar pra você sobre o relatório... Contar pra você... O que eu vi... Contar... – disse, no ritmo atropelado e ansioso.

- Então diga. – disse, sentando-se.

A criatura se aproximou para junto de seus joelhos como um cão faria.

- Os bichos voadores... Eles tem ordens... Não podem deixar a cidade... Ordens... Os... Os... Os anjos não querem... Não querem...

- E pra que iriam querer deixar a cidade?

- Dois rastros... Dois... Pra fora... Longe daqui... Não querem ir até lá... Não podem... Tem ordens... Ordens dos, dos mestres...

- Aham... Sabe por que Valsher não quer permitir?

- Não sei, não... Não.. O mestre disse... Disse buro... Burocra...

- Burocracia.

- Isso... Disse pra eu vir... Contar... Dos dois... Dos rastros que encontramos... Dois... – disse, sentando no chão e cruzando as pernas.

- Do mesmo lugar?

- Dois lados... Opostos... Norte e sul... Dois caminhos... Lados opostos da cidade...

- Certo... – a forma atropelada com que falava o incomodava um pouco... Muito frenético e nervoso. – Diga a Cartier que chame Valsher, e que eles venham aqui.

- Certo... Eu digo... Digo pra ele... Digo pro mestre... Digo sim.

Luka descia as escadas.

- Ah, uma criança perdida, como vai docinho?

- Senhor Luka! Oi... Tudo bem com você? Tudo? – perguntou, colocando-se de pé, em sua forma humana, e caminhando até Luka, sua forma humana era bem mais agradável, apesar dos olhos amarelos de íris afiladas, e os dentes afiados, feitos para dilacerar carne.

Luka, como sendo a secretária oficial de Alexis, frequentava muito mais a casa de Cartier do que o irmão, e acabou sendo apresentado as crianças perdidas... Cartier os havia instruído de que Luka era muito um aliado muito impotante, e que não deviam destrata-lo.

- Você conhece esse lobisomem, Luka? – Dylan perguntou.

- Como seu irmão me escraviza para trabalhar pra ele, eu conheço todos eles.

- Eu não escravizo você, Luka, eu peço favores, que você acata por que quer. – Alexis, diz, apoiando a cabeça nas mãos, indiferente.

Luka ri. – Desculpe, ó senhor meu irmão e mestre.

- Você está particularmente chato hoje, Luka.

- Estou de bom humor. – disse. – Tenho a sensação de que as coisas vão finalmente melhorar. – suspirou.

- Você é tão otimista. – ele diz.

- Só sou mais otimista que você irmãozinho. – disse, afagando o cabelo do garoto meio cão, que lhe parecia muito dócil. – Vou deixar para falar com Cain amanhã, hoje ele está deprimido.

- ... Tanto faz, e por favor não me dê detalhes do que você fez. – suspirou, irritado.

***

Alexis se sentou em seu quarto, olhando para o teto e pensando como os tempos haviam mudado desde a última guerra, sentia-se insone e dolorido...

Estava cansado... Havia se esquecido como era morar com seus irmãos... Sentia-se mais tranquilo morando com eles, lembrava-o do passado, e lembrava-o também como ele e Luka brigavam com absurda frequência quando estavam morando na mesma casa.

Sendo sarcástico como era, gostava de deixar o irmão irritado, mas agora a sua tranquilidade familiar estava tremida com a eminencia de mais uma guerra... Guerras lhe traziam de volta os demônios e pesadelos do fundo esquecido de sua alma.

E também arrastavam para fora o predador que na verdade era... Sentia-se cansado desse predador há muito tempo... O tempo havia tirado dele o espirito assassino, e agora queria tirar dele também o instinto predatório.

Pensou por um momento na humana que havia deixado para trás... Agora, seria melhor para ela existir longe dele... Pelo menos até o fim da guerra, já havia quase morrido uma vez, e não sabia como ela reagiria se soubesse.

Ultimamente, com o corredor que levava a guerra se estrangulando, tinha muito pouco tempo para pensar nas próprias vontades... Quando tudo acabasse, daria mais atenção a elas... E agora faltava muito, muito pouco para acabar...

Vincent não tinha como fugir de assassinos treinados de três casas de Lordes em seu encalço, tivesse ele um exército de mestiços ou não.

Mas temia perder mais algum ente... Era uma dor insuportável e torturante...

Temia que os originais nos corpos de seus irmãos despertassem... Ele não, não poderia.

Se o original que possuía acordasse, despertaria com ele todos os outros, dos outros Lordes... E então viria o fim do mundo...

Um fim do mundo que não levaria apenas a humanidade, mas também todos os quatro poderes...

Por isso, sempre o mantinha semiadormecido, mesmo quando “despertava”... Isso apenas por que era o senhor de sua casa, se não fosse um Lorde, não teria de se resguardar tanto.

Nesse ponto, tinha certa inveja de seu irmão.

Que podia limpar sua vingança como um guerreiro de verdade...

Da forma como ele gostaria de poder...