Eu e Meu Cachorro Azul

Uma menina, um conto de fadas e um cachorro azul.


(aula de biologia, nove e quarenta da manhã, colégio Nadeshiko)

- Como foram? – a voz de Marianna soou aflita e tremida.

-Ainda não vi – respondeu Isabella.

- nem eu – Gabriel falou.

- Não quero nem ver – afirmou Catharina.

Os quatro amigos se olharam, angustiados. Receberam os resultados da prova de biologia fazia já quinze minitos. Todos tiraram as avaliações das mãos da professora sem dizer uma única palavra, e com o cuidado de deixar a primeira página de cabeça pra baixo, temendo ver a nota e conferir que não haviam melhorado nada desde o bimestre passado.

- Certo – Marianna pousou a prova de cabeça pra baixo no centro da mesa – quando eu disser “já”, todos viram pra cima.

Eles assentiram.

- 1, 2, 3, e...JÁ!!

A tensão era tanta que o virar do teste foi um movimento brusco.

- Não... não acredito – berrou Gabriel – 1,7! Foi a pior nota da minha vida!

- 3,2... – murmurou Marianna de cabeça baixa.

- Não fui muito melhor – disseram em coro Catharina e Isabella, mostrando notas bem baixas.

Os amigos supiraram, um longo e profundo suspiro que cortou os corações de quem estavam em volta. Depois, erguram a cabeça em direção a uma menina na carteira ao lado. Ela estava muito ocupada pra revidar o olhar. Lendo, é claro. Um conto de fadas, é claro. Não seria ela quem é se lesse outra coisa.

- Luanaaaa!!! – Marianna chamou – quanto você tirou?

A menina ergueu os olhos muito verdes em direção a quem chamou.

- Oh – disse ela sorrindo – 7,9, mas acho que fui bem ruim. Vou me esforçar mais bimestre que vem! – e alargou o sorriso, erguendo a prova.

- “bem ruim”? – debochou Marianna para os outros – Quem me dera tirar essa nota!

- Ela é bem metida por falar assim, não acham? – cochichou Isabella.

- soube que é rica – afirmou Gabriel – muito rica.

- mentira, eu já vi o carro da mãe e de rico não tem nada.

Marianna fitou a menina. Tinha cabelos negros como a noite, os olhos verdes, bem verdes e pequenas sardas espalhadas pelo rosto magricelo. Alias, era completamente magra. Será que comia? O uniforme da escola estava por demasiado folgado, e ela usava o short de educação física, o que deixava a mostra seus tornozelos tão finos quanto o rosto. Ah, então era por isso que ela ficava lendo na aula de educação física. Parecia que o mísero esforço de chutar uma bola poderia quebrar-lhe uma perna.

- Como um palito de dentes – disse Marianna pra si.

- Desculpe, o que? – perguntou Luana. Ela arregalava um pouco os olhos pra falar. Era estranho.

- Ah, nada, só... só estava pensando comigo mesma – e acrescentou, pra disfarçar: - o que está lendo?

- Ah – ela sorriu – Andersen.

Marianna sorriu de volta.

- Puxa, eu sempre quis ler Andersen! – respondeu entusiasmada.

Luana voltou a ler, e Marianna anotou “perguntar a alguem quem é Andersen” na agenda.

- Você aí! – gritou a professora de repente – Quer parar de ler? Está prestando atenção na correção da prova.

Luana corou. Ficou vermelhinha. Guardou o livro e olhou para o quadro, encabulada. Mas não sem antes lançar um rápido olhar para o grupo de quatro amigos. Eles conversavam sem parar e a professora não os repreendera. Não era justo.

Ela olhou para o caderno, sem ter feito nenhuma anotação. Será que, se participasse de um grupo de amigos como aquele, conseguiria não ser repreendida? Será que, se falasse com alguem, a aula seria menos entediante? Desde que chegara a escola, dois anos atrás, não conseguira fazer nenhum amigo. Ela simplesmente não conseguia falar normalmente com ninguem! Era tão conplicado! Lançou um olhar para seu livro. Se a vida fosse um conto de fadas, seria tudo tão mais fácil! Como queria que a vida fosse um conto de fadas!

Não viu o resto da aula. Ficou dispersa. O sinal do recreio soou para avisar-lhe que já poderia tirar seu livro da mochila. Os minutos do intervalo, tão curtos pra todo mundo, serviram como horas sagradas, em que os únicos que dividiram da companhia da menina foram ogros, dragões, bruxas, cavalheiros, principes, princesas e aldeões. Saboreava o livro como uma criança saboreia um doce.

(Fim de aula, meio-dia, colégio Nadeshiko)

- Vai de carro? – quis saber Marianna.

Luana ergueu os olhos, sorrindo como sempre.

- Vou não – respondeu. Sua voz tinha um tom sarcástico, impróprio para alguem que vivia tanto no mundo da fantasia – Minha empregada me busca sempre, ela já deve estar chegando.

Estavam as duas dentre as poucas crianças na porta da escola, esperando os responsáveis. Eram aquelas que não iam sozinhas ainda. A minoria. No caso de Luana, era porque a mãe a achava por demais distraída. “E você pode ser assaltada!”, era o que dizia. No de Marianna, era porque o colégio era longe. Só de carro mesmo.

- Hum, que pena. Andar nesse calor.

- Eu não gosto muito de ar-condicionado.... – Luana respondeu – acho o calor agradável – e sorriu.

- Sério? Porque eu....

- Lu!! Luana!! – gritou uma voz.

Um homem alto surgiu no portão. Tinha o cabelo um pouco grisalho, e olheiras um pouco profundas.

- Papai! – Luana se espantou – Você não estava em Nova York?

O pai era jornalista de um jornal americano. Sua mãe era solteira a séculos. O pai se casara de novo.

- Tirei férias e vim te ver, o que acha?

Luana estava sem palavras.

- Ótimo! Que bom, papai! – e o abraçou.

- Bem, diga tchau a sua amiga, tenho uma surpresa pra você!

Marianna olhou para Luana e deu um sorrisinho. Não eram “amigas”.

- Bem, tchau – disse.

- Tchau – Luana respondeu, e foi.

Entrou no carro do pai. Estava feliz. Feliz por ter conversado com alguem, mesmo que só um pouquinho.

- Adivinha o que eu comprei pra você? – o pai perguntou, entusiasmado.

- Não sei, o que é? – Luana quis saber, sorrindo.

- TCHARÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁM!!!! – disse um pai com um sorriso brilhante, mostrando um celular novinho – uma novíssima geração de AiFone, com AiNãoPode embutido!!! E por apenas nove parcelas de sessenta e nove e noventa e nove!!

- Sem juros?

O pai se encolheu num cantinho.

- 30% de juros – disse, tristonho.

- E-eu adorei, papai! Muito mesmo, e não é só pra te consolar. Nunca imaginei ganhar algo assim.

O pai a encarou.

- nunca mesmo?

- nunquinha!

- ENTÃO YEEEEEES!!! – isso queria dizer “então, tudo bem”, na linguagem do pai.

Luana sorriu. O pai era a única pessoa em todo seu mundo que conseguia tornar as coisas mais parecidas com um conto de fadas.

- Ah, eu comprei OUTRA coisa pra você! – disse ele – sei que você já tem treze anos, e já está uma adulta...

- Pai!

- Mas Sei... que minha adulta ainda gosta de bichinhos de pelúcia – e mostrou um lindo cachorrinho azul de pelúcia, com uma coleira vermelha – ele não é lindo?

- Ah, é.... – Luana olhou pra cara do cãozinho. Assustava, e ela não sabia por quê – é....lindo...

- O dono da loja disse que se chamava ioryogi.

- Obrigada, papai – ela enfiou o bicho na mochila.

- E então... quem quer ir na livraria e ficar três horas por lá?

Luana sorriu, Seu pai a conhecia muito bem mesmo.

- Eu! – ela gritou, e os dois foram.

Quanto tempo ficaram passeando, eu não sei. Muito. Mas, quando voltou pra casa, exausta de tanto conversar com o pai, encontrou uma surpresa olhando pra ela. Uma surpresa azul sentada na sua cama.

- I...Ioryogi? Mas... Você estava na minha mochila....

Tirou a mochila das costas, não tinha nenhum cachorro lá.

- Estranho....

Deu de ombros e foi pro banho. Tinha que dormir cedo pra ir a aula amanhã.

Ioryogi continuava na sua cama, se destacando dentre os outros bichinhos de pelúcia.

(sete e meia, aula de matemática, colégio Nadeshiko)

- Hum.... Oi – disse Marianna.

Luana sorriu.

- O-oi – disse.

- Aquele de ontem... Era seu pai?

- Era sim.

- E ele... tipo, mora mesmo em nova York?

- Mora, sim. Mas é melhor prestar atenção nas aulas. Suas notas estão baixas, não estão?

Marianna lhe lançou um olhar maligno e a ignorou pelo resto da aula.

- Será que.... eu disse alguma coisa? – pensou Luana, que não tinha a menor noção do que dizia.

- Agora, disse a professora, peguem o caderno de álgebra.

Luana se abaixou em direção a mochila, mas quando a abriu...

- Ioryogi?? – perguntou, um pouco alto demais.

- O que, Luana? – a professora quis saber – algo que queira dividir com a classe?

- N-não – ela gaguejou. Empurrou Ioryogi para um lado e pegou o caderno.

Seu pai vinha buscá-la mais tarde. A última coisa que queria era uma reclamação da professora dizendo que a aluna estava vendo ioryogis por toda parte.

(dez e meia, recreio, colégio Nadeshiko)

- Ela ainda brinca de boneca?

- Não é uma boneca, seu retardado, é um cachorro.

- Mas é bem fofinho....

- Fofinho? É coisa de lesado, só podia ser alguem como a Luana.

Luana parou no porta da sala. Tinha ido até a cantina comprar um salgado, e quando voltara a sala...

- Nãããooo..... éééé.... poooosssssíííveeeeellll.........

Ioryogi estava apoiado no quadro negro, onde se via escrito:”ALEM DE SER LINDO, PERTENÇO A LUANA”.

Luana foi, meio petrificada de nervoso, em direção ao animalzinho, e o pegou. A turma a seguia com os olhos. Vermelha como um tomate, enfiou-o na mochila e sentou, metendo a cara num livro. Algumas pessoas continuaram olhando, rindo e zombando. Mas a maioria foi embora logo que viu que Luana continuava a mesma leitora dedicada de antes.

- Ioryogi..... – ela suspirou, esperando que a aula acabasse.

(oito e meia da noite, casa da Luana)

- Tchau, pai, obrigada por me levar ao cinema! – ela disse – tem certeza que não foi sacrifício nenhum ver um filme infantil?

- Que nada! – o pai respondeu – eu vim aqui pra ver você, filha. Alem disse – ele abriu um sorriso radiante – eu amo filmes infantis.

Deu um beijo na testa da filha e foi embora do apartamento da ex-esposa(que ainda não chegara do trabalho), cantarolando como sempre. Era meio maluco.

Esse é meu pai, pensou Luana, jogando a mochila no meio da sala e se dirigindo ao quarto.

Alguma coisa dizia a ela que iria ver isso. De novo. Por isso, não se supreendeu quando...

- Ah, é você, Ioryogi – ela disse para o cachorro na sua cama – Nossa, parece até que é vivo e está me seguindo. Só falta falar...

- Ah, mas eu falo.

Luana olhou em volta. Quem disseram aquilo? Seus olhos recaíram sobre o bichinho de pelúcia. A expressão dele era severa e raivosa, completamente diferente dos olhinhos medonhos de antes.

- I-i-ioryogi?

- O que? – o cão respondeu.

Luana esfregou os olhos. Seria possível?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.