Quarto de Kate, Rancho Neverland - 20:12 hrs

Após jantarmos, levei a Kate para o quarto e a preparei para dormir. Ela vestiu o seu pijaminha de bichinhos e me pediu para ler uma história. Eu o fiz sem hesitar.

— Está pensando em alguma?

— Quero a da Chapeuzinho Vermelho!

Sorri e busquei o livro na estante. Era um marrom de capa dura e relevo com arabescos, eu gostava bastante daquele visual clássico, dava um pouco de magia à obra. Me sentei ao lado da cama dela e folheei as páginas.

Era uma vez, numa pequena cidade às margens da floresta, uma menina de olhos negros e loiros cabelos cacheados, tão graciosa quanto valiosa. Um dia, com um retalho de tecido vermelho, sua mãe costurou para ela uma curta capa com capuz. Ficou uma belezinha, combinando muito bem com os cabelos loiros e os olhos negros da menina. Daquele dia em diante, a menina não quis mais saber de vestir outra roupa, senão aquela e, com o tempo, os moradores da vila passaram a chamá-la de “Chapeuzinho Vermelho”.

Por um segundo fiquei imerso na história, já imaginando cada arbusto, cada árvore, cada detalhe, cada florzinha, mas aí novamente Kate interrompeu os meus pensamentos com mais uma de suas perguntas… difíceis.

— Papai… eu tenho mãe?

Estagnei.

Por um segundo, parei de ler. As palavras pareciam turvar a minha visão, elas se embaralharam como uma sopa de letrinhas. Discretamente mordi os lábios e desci o livro para olhar nos olhos dela.

— Kate, preste atenção na leitura…

— D-desculpa, é que… a Chapeuzinho tem mamãe, e os patinhos na lagoa hoje mais cedo também tinham. Eu tenho?

Suspirei e tentei segurar as lágrimas. Por que isso estava acontecendo comigo…?

— Não… mas você não precisa de uma, você tem a mim. Vou cuidar de você pra sempre.

— Por que eu não tenho mãe?

Abaixei o olhar e passei a fitar o livro, já não sabia mais o que dizer. As letras ainda estavam emaranhadas na minha visão, mesmo que eu quisesse voltar a ler, seria impossível agora, aquela conversa já havia iniciado.

Deus… por quê?

— Eu não posso sair daqui, eu não tenho mamãe, por que isso acontece comigo, papai? Nos meus livros, as crianças não vivem assim…

— Não dá, Kate, não dá…

— Mas por quê? Por quê? Por que me esconde as coisas, papai? Por que todo dia o senhor veste vermelho? Por que todo dia a gente alimenta os patinhos? Por que é tudo tão vazio…?

— Porque você não existe, Kate! Você não existe!

Exclamei. Não pude ver a sua reação, deixei o livro cair e levei as mãos ao rosto, as lágrimas desceram como cachoeira e eu não consegui mais segurá-las. Solucei um pouco, temi que tivesse assustado minha filha com a minha reação extravagante, mas eu estava com dor, eu estava sentindo dor, era o que eu sentia quando via que a mentira que havia criado para mim mesmo não funcionava mais.

Minha Kate… não existia.

Mas ela parecia compreender, pois ficou em silêncio, deixou que eu me expressasse. Os porquês, por um segundo, cessaram.

— Você não existe…

Murmurei com um pouco de dificuldade, ainda sem olhar em seus olhinhos escuros.

— Ela disse que não estava pronta… ela disse que o corpo é dela… ela disse que a vontade é dela… mas não é… não, não é…

Balancei a cabeça freneticamente, como se aquele movimento fosse me impedir de chorar. Minha voz embargava, estava cada vez mais difícil me expressar, mas eu me esforcei.

— Eu implorei! Não, Mary, isso é errado! Me deixe com ela, me deixe ficar com ela! Ela também é minha filha! Eu quero ter a minha filha!!

Arfei, senti de verdade que ia desmaiar ali, mas, quando senti aquelas mãos pequenininhas tocarem o meu joelho, meu corpo estremeceu. Kate havia reagido, estava olhando dentro dos meus olhos, sua expressão era triste, mas o seu olhar era brando, ela estava sendo mais forte do que eu naquele momento. Por um segundo, me senti a criança, enquanto ela era a adulta que me ouvia.

— Por que mamãe não me quis…?

Que pergunta difícil… Se mesmo eu não sabia os motivos, como poderia explicar para ela? Mas aqueles olhinhos escuros estavam brilhando para entender tudo aquilo, e eu sentia que não podia negar uma resposta a ela.

— Você era… pequenininha. Menor que uma palma, muito miudinha. Não sabíamos se era uma menina, não sabíamos nada, apenas que você estava ali, se tornando você.

Suspirei, aquilo já estava sendo uma conversa difícil, mas eu sabia que iria piorar.

— E então, vieram as discussões.

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Allen Host Hotel, Houston (lembranças) - 23:22 hrs

— Me deixa sair, Michael, eu não quero falar com você!

Era uma noite após o show. Eu estava cansado, todo o meu corpo doía, quase não tinha voz para trocar palavras com ela naquele momento, mas eu não podia perder a oportunidade quando a vi perambulando pela área VIP naquela noite.

Mary não era uma pessoa ruim, mas ultimamente havia mudado da água para o vinho. Nos conhecemos em Nova York, durante a minha primeira turnê solo, e eu não fazia ideia que ela estaria também em Houston. De qualquer forma, ela sabia que eu não ficaria por muito tempo. Eu precisava me preparar para o próximo show, pois iria para Atlanta dentro de algumas horas. Se eu não desse um jeito de falar com essa mulher agora, poderia nunca mais vê-la novamente.

Tranquei a porta do quarto. Iria ter uma conversa franca com ela agora.

— É verdade que você está esperando um filho meu?

Quando ouviu minha pergunta, notei sua expressão mudar bruscamente. Mary ficou em silêncio, largou o cigarro da boca e passou a segurá-lo. Pensei que ia dizer alguma coisa, mas ela apenas expeliu a fumaça no meu rosto, o que me fez tossir repetidas vezes. Ela estava levando tudo aquilo como uma grande brincadeira.

— Quem te contou?

— Não interessa. Desde quando você fuma?

— Também não é da sua conta. Me deixa sair agora, ou eu vou chamar a polícia!

Revirei os olhos.

— Se você está grávida de um filho meu, pelo menos pare de fumar um pouco! Isso pode causar alguma má formação nele…

— Eu não vou ter ele, Michael.

Aquelas palavras congelaram o meu raciocínio. Arqueei a sobrancelha e aguardei mais explicações, porém a minha boca foi mais rápida que os meus pensamentos.

— Como assim?!

— Tá vendo? É por isso que eu não ia te contar nada. Michael, esquece esse menino, ele nem existe ainda, tá muito recente…

— Claro que existe, Mary! Se começou a formar, existe!

— Isso é a sua opinião.

Ela tragou mais uma vez aquele lixo antes de apagá-lo na mesa de cabeceira ao lado e deixar a bituca ao relento. Eu suspirei e passei a mão nos cabelos, aprendi com minha mãe que gritar nunca iria me fazer ter razão, eu precisava jogar de outra forma.

— O bebê também é meu, não é? Eu não tenho o direito de escolher?

Ela desviou o olhar do meu, não parecia envergonhada, mas relutante.

— Não, não tem. O corpo é meu.

— O que está dentro de você não é você, Mary.

— Se sair de mim, não irá morrer? É como um órgão que para de funcionar quando sai do corpo da pessoa.

— Ele não é você, ele depende de você, é diferente! Um coração não vira uma pessoa, um pâncreas, um fígado ou um pulmão não vira uma pessoa!

— Michael, para! Não é você que vai passar nove meses comendo o pão que o diabo amassou! Olha, não tem pulsação cardíaca, não tem nervos, não tem sensibilidade, é só uma coisa crescendo! Eu vou tirar, é minha escolha, eu não estou fazendo nada de errado, não enquanto isso continuar sendo somente uma coisa crescendo.

Toda aquela conversa estava deslizando para a pior conclusão. Quando ouvi meu filho ser chamado de "coisa crescendo", percebi que nós jamais entraríamos em um acordo.

Segurei as lágrimas, ela não me veria chorar, eu não deixaria isso acontecer.

— Essa "coisa" é o meu filho…

— Não, não é. Não tem vida nas primeiras semanas…

— A vida começa na formação, Mary!

— Isso é a sua opinião!

— E onde você leu que não há vida nas primeiras semanas?! Me diz uma coisa, o que garante isso?? Deus disse…

— Lá vem você de novo…

— Escute! Escrituras Hebraicas, Salmos 139, versículos 15 e 16: "Meus ossos não estavam escondidos de Ti quando em secreto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os Teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no Teu livro antes de qualquer deles existir." Para Deus, essa criança já tem vida. Você não vai estar tirando um câncer, você vai estar matando uma criança!

— Para! Você não percebe como está sendo ridículo?! Vem usar a palavra de Deus pra mim, quando você é um TJ desassociado que fica dormindo com as garotas depois dos shows, você é hipócrita!

Suspirei, estava me alterando de novo, mas então ela resolve jogar sujo. Sim, eu havia deixado o meu leito religioso por não conseguir conciliar trabalho e espiritualidade, e eu pensava todo dia nessa minha decisão. Ela conhecia os meus pontos fracos.

Meu peito arfou mais uma vez, eu disse que não deixaria uma lágrima resvalar pela minha bochecha e eu iria cumprir minha palavra.

— Eu sou um pecador como você, mas a palavra de Deus não muda. Se é dita por mim ou pelo ancião do salão, não há diferença, Mary, porque a palavra de Deus é a mesma. Se você assinar esses papéis e seguir em frente com isso, vai estar assinando contra a palavra de Deus.

Ela me olhou com sangue nos olhos, havia frieza em cada expressão do seu rosto. Não sei se realmente nenhuma das minhas palavras a havia afetado ou se ela estava escondendo seus sentimentos, contudo, eu não estava mais reconhecendo aquela mulher.

— Não adianta tentar me convencer com crenças. Eu trabalho com fatos.

Discretamente mordi os lábios. Eu acredito na ciência, acredito que foi o conhecimento que Deus deixou para nós, para que pudéssemos sobreviver às adversidades nessa terra, mas, assim como Ele nos presenteou, Ele também não nos deixou saber todas as coisas. O que Mary não entendia era que a ciência muda, nunca está eternamente certa, nunca saberá plenamente de todas as coisas.

Talvez fosse a minha criação religiosa… mas eu não conseguia compreender como as pessoas desmereciam a palavra de Deus para seguir cegamente as palavras de homens que podem errar, quando na realidade nenhum conhecimento anula o outro, apenas se complementam. O que não está no alcance da ciência, está escrito na lei de Deus.

— Está falando da ciência, não é…? Me traga um artigo que comprove a sua tese, e que grande maioria dos cientistas tenham concordado. Aposto com você que não vai achar. A ciência não sabe quando se inicia a vida, a comunidade científica não sabe no que acreditar, eles não entram em um acordo, não há unanimidade.

Suspirei.

— Você acredita na teoria ecológica, na teoria neurológica, na teoria embriológica… em qualquer teoria que massageie sua ideia absurda. Eu acredito na teoria genética, e… sabe de uma coisa? Todas essas teorias foram pensadas por cientistas. Eles nunca saberão o que é vida e nem quando ela começa, porque eles… não são… Deus.

Aquelas foram as minhas últimas palavras para ela. Não havia mais o que falar, não haviam mais argumentos para debater, e, pelo silêncio de Mary, ela também havia percebido isso.

Sem dizer mais nada, desviando o olhar para a porta, ela tentou sair mais uma vez daquele quarto e não foi impedida. Se Deus não tocou o seu coração, não sou eu que conseguiria, e encarcerá-la no meu quarto só me faria perder a razão.

Eu precisei deixá-la partir, mesmo que o meu peito estivesse sangrando por dentro. Tudo o que me restava agora era pedir para que Deus guardasse o meu anjinho em suas asas.

E então, quando ela enfim deixou o lugar… eu chorei.