Esperanto:solfege
Prólogo: O Mês sem Deus
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Petit Ange
Prólogo: O Mês sem Deus.
Ano de 710. Período Nara.
Capital de Heijou-Kyo – Japão.
“Takaamaharan ni Kami tsumari masu...” [1]
De olhos fechados e cabeça baixa, aquela figura pálida e esguia facilmente poderia ser confundida com um fantasma, com alguma coisa que inspirasse medo ou respeito. O que tirava imediatamente esta impressão eram as roupas; um gi, uma hakama e em seguida, as camadas sobrepostas de roupas brancas e imaculadas. O laço da hakama era vermelho como o sangue. [2] A cor inconfundível de uma sacerdotisa.
“...Kamurogi kamuromi no Mikoto wo mochite...”
O templo de Fuujin-Yama [3] era o mais famoso. O mais procurado. O mais falado.
Qualquer morador da capital já tentara ao menos uma vez. As preces e o poder dos deuses eram infalíveis. Quase como se eles realmente houvessem descido lá e tirado toda aquela dor. O próspero templo era uma luz de esperança para qualquer ser humano que desejasse parar de sofrer.
“...Sumemioya kamu Izanagi no Mikoto...”
Uma moça de longíssimos cabelos negros, sedosos e brilhantes, passava acompanhada de guardas de porte esplêndido. Cabisbaixa, ninguém conseguia ver seus olhos. Ela era a dona dos gi e kimonos sobrepostos, com os pulsos laçados firmemente por cordas e segurada nos dois ombros pelos homens sérios.
Ela era a tão falada moça da fita vermelha.
A conhecida Kutai-no-Mikoto. [4]
“...Tsukushi no himuka no tachihana no odo no...”
Fuujin-Yama era um templo imenso e xintoísta. Como de praxe, o local de orações, o local de velar corpos... Todos estavam espalhados na imensa área bruxuleante, situada no topo de uma vasta montanha. Os fiéis amontoavam-se de todo o lugar do continente, entretanto, apenas para um acontecimento especial: o Mikoto no Matsuri. O Festival da Miko.
Próximo do templo Fuujin-Yama, existia um pequeno orfanato. E as gentis jovens que mantinham-no tinham uma difícil missão: de quinze em quinze anos, as meninas a partir de sete anos deviam fazer uma pequena brincadeira. Deviam brincar de Kagome-Kagome. [5] E a pequenina que durasse mais tempo contra os ‘demônios’ seria a nova Kutai-no-Mikoto.
Uma Kutai-no-Mikoto tinha uma difícil responsabilidade.
Ela devia chorar pela dor e pelos pecados de todos.
“...Ahagi hara ni misogi harai tamau toki ni...”
Privada de qualquer espécie de contato humano, uma Kutai-no-Mikoto dedicava-se exclusivamente à sua missão como sacerdotisa de sofrer pelos fiéis.
E era o que ela estava fazendo agora, aquela menina de ombros frágeis.
Quando os guardas puseram-na no centro de um grande aglomerado de homens e mulheres, sentada num apoio de madeira, ela imediatamente endireitou a postura e pôs as mãos amarradas cruzadas no colo, como uma virgem sem mácula.
Logo, um sacerdote de máscara festiva [6] aproximou-se dela e estendeu sua mão. Uma suave música xintoísta soou pelos ares, enchendo o templo de um silêncio melodioso.
A delicada sacerdotisa de fita vermelha estendeu os pulsos e teve suas amarras retiradas. Mas logo, outras cordas amarraram seus pulsos e forçaram-na a erguer-se.
“...Narimaseru haraidono ookami tachi...”
O povo começou a gritar, emocionado, quando a miúda japonesa foi amarrada nos pulsos e tornozelos, e logo em seguida no pescoço. Um raio de desconforto passou pelo rosto delicado, mas tão logo sumiu.
Um sacerdote entoou palavras religiosas e o povo, mais uma vez, foi ao delírio.
E a pequena estava somente amarrada, esperando.
Eles ficaram muito tempo mostrando à todos que ela estava devidamente amarrada, devidamente pronta de corpo e alma para a missão que lhe foi imposta.
E por entre o amontoado de kimonos e gritos, duas outras sacerdotisa, também de longos e negros cabelos bem cuidados, apareceram uma com um estranho objeto metálico e a outra com uma espécie de balde, que carregava cuidadosamente longe do corpo.
“Que comece o Mikoto no Matsuri!”
“...Moromoro no magagoto tsumi kegare wo...”
O som de um farfalhar de tecido foi ouvido, e o corpo pálido e pouco púbere da sacerdotisa silenciosa foi descoberto. De seios pequenos e quadris estreitos, ela continuava firme, mesmo que alguma parte de si própria teimasse em temer o que viria a seguir.
E o estranho objeto metálico estalou no corpo dela.
A garota sentiu o corpo formigar numa dor ferrenha, e as entranhas debateram-se quando a fumaça e o cheiro de queimado invadiu suas narinas. Achou que seus joelhos iriam cair sem seu consentimento, mas os guardas que seguravam as amarras de seus pulsos e pescoço puxaram-nas, sufocando as veias e a traquéia.
Uma segunda vez ela sentiu aquele metal em brasa fervilhando na pele. E uma segunda vez ela gritou. As lágrimas vieram uma, duas, várias de uma vez só.
O cheiro de queimado continuava, e só então a pequena permitiu-se olhar para o próprio corpo e vê-lo tatuado de marcas.
Mas a garota permaneceu firme, mesmo com os emocionados gritos de todos que estavam tendo seu sofrimento lavado pela dor daquele corpo.
“...Kashikomi kashikomi mo maosu...”
Afinal, esse era o dever de uma Kutai-no-Mikoto.
-----# I #-----
“Sayo-no-Mikoto-sama...” [7]
Ela suspirou tão logo ouviu o título.
“É Sayo-dono.”
“Mil perdões, Sayo-dono...”
“Taisho-san...” – a morena puxou-o mais perto de si e encostou a cabeça dele em seu ombro. Entretanto, no mesmo segundo, ele a afastou.
A garota fitou-o com os grandes olhos outrora encobertos com seus cabelos. Ao encarar o rapaz pela tênue luz das velas da cela, eles revelaram-se duas esferas negras como a mais preciosa das pedras de ônix. Surpresa, os lábios ficaram entreabertos, numa palavra muda, numa pergunta que jamais se fez.
“Não, Sayo-dono... A senhorita está ferida...”
“Então... Não vai me abraçar...?”
“Não agora, Sayo-dono...”
Envergonhada por ter tido seu carinho negado, a garota virou-se na direção oposta dele, escondendo o rosto nas mãos pálidas.
Ao redor deles, até parecia que aquelas bonecas dispostas todas de forma tão perfeita pareciam estar observando-os morbidamente, silentes, esperando qualquer outro alguém e contar tudo o que sabiam. No início, o rapaz se assustava com aquele lugar, mas a sacerdotisa vivia ali desde pequena, naquela sala especialmente projetada para ela. Já parecia acostumada com aqueles olhos inquietadores.
“Continue passando remédio no meu corpo, Taisho-san...” – pediu, vencida. – “Por favor, antes que alguém nos encontre...”
A miko fechou os olhos, suspirando pesadamente ao sentir as mãos do rapaz passearem pelas suas costas, o contato cálido que aquelas mãos gentis causavam na pele aveludada.
“...Até quando isso irá continuar, Sayo-dono?” – o rapaz de cabelos acastanhados perguntou. – “Não conheço muito bem os costumes do Mikoto no Matsuri, mas... Quando a senhorita irá parar de sofrer...?”
Mas Sayo lembrava-se bem de quando iria terminar.
Ainda tinha na memória o dia em que foi tirada do orfanato quando foi a última eliminada do Kagome-Kagome, e todas as situações e revelações que lhe foram feitas a partir daí. Tudo marcado a ferro e fogo na memória, como a dor alheia a ferro e fogo em seu próprio corpo.
“Apenas quando eu morrer, Taisho-san.”
Taisho soltou uma exclamação breve, quem sabe o princípio de uma.
“As Kutai-no-Mikotos têm o sofrimento alheio marcado em todo seu corpo. E quando ele finalmente ocupa-as em todos os lugares, a Miko não pode mais se purificar. Ela deve ser morta para que outra Miko purifique os pecados do mundo.”
“E-então eles vão...”
“Os sacerdotes vão realizar o Ritual do Estrangulamento [8] em mim.”
De costas e cabeça baixa, tudo que a garota de cabelos negros viu foi seu próprio kimono cerimonial no chão, enquanto o rapaz que vinha vê-la escondido sempre passava o remédio em suas costas desnudas. Mas então, ela surpreendeu-se ao ver um par de braços e sentir o calor de um corpo logo ao seu lado.
Quando percebeu, Sayo viu Taisho abraçando-a ternamente, escondendo o rosto no ombro dela, incapaz de qualquer outra coisa senão respirar descompassado.
Na verdade, sinceramente, a garota já não se importava tanto. Houve um tempo em que ela desejou até fugir com ele para bem longe, para bem longe de Fuujin-Yama ou das obrigações como miko... Mas agora, ela sabia que nunca poderia fugir do seu destino: era um Kutai-no-Mikoto destinada a morrer afogada nos pecados dos outros, tatuado dolorosamente em seu corpo.
“Taisho-san...?”
“Pois não, Sayo-dono?!” – ele teve um sobressalto.
“Olhe pra mim...?”
De imediato, o rapaz viu-a virar-se para ele, e por outros breves momentos, ele pegou-se admirando o corpo pequenino e pouco púbere. Contendo as reações de seu próprio corpo diante daquilo, Taisho forçou-se a olhar seus olhos. E o que viu neles foi uma coisa só: um pedido silencioso.
“...Eu não vou durar mais do que seis rituais. Com muita sorte, sete.” – e as lágrimas ameaçaram invadir seus olhos.
“Sayo-dono...” – murmurou.
“Eles vão realizar o Kagome-Kagome de novo... Amanhã mesmo...” – ela continuou, e esfregou os olhos para tentar secar as lágrimas. Em vão, pois novas caíram-lhe pelas bochechas. – “E escolherão a nova miko... E tudo de novo vai acontecer...”
“Não, Sayo-dono!... Eu só vou ficar com você! Nenhuma outra Kutai-no-Mikoto irá me interessar...!” – sem pensar, ele abraçou-a, esquecendo-se dos ferimentos dela.
“Eu vou morrer em breve, Taishou-san...”
Quietos, apenas ouvindo o crepitar das velas e o som de suas próprias respirações, ali ficaram a miko intocável e um dos guardas da área exclusiva dela. Por muito tempo, ele ficou ali, encostando seu rosto na curva de seu pescoço, passando a mão delicadamente pelas costas pálidas, enquanto sentia o corpo desnudo dela colar-se ao seu.
Se fosse possível, o rapaz achou que aquele corpo iria se quebrar, como se ele fosse a personificação de um vidro realmente frágil e quebradiço. E quando ele enfim lembrou-se de que não devia estar fazendo isso, que devia afastá-la, gentilmente tentou, mas ela não soltou seu pescoço.
“Taishou-san...”
“Pois não, Sayo-dono...?”
“Poderia me mostrar outra vez... As suas asas...?”
Os olhos castanhos dele arregalaram-se, surpresos, para logo voltarem ao normal. Entretanto, uma sobrancelha permaneceu arqueada.
“A-as asas...?”
“Por favor...”
Taisho engoliu em seco, incapaz de resistir àquele apelo inocente.
Inclinando-se, envolveu o corpo da miko, e ela ouviu um som parecido com o de um passarinho levantando vôo (ela adorava quando podia sair lá fora e via os pequeninos voarem o tempo todo procurando comida no pátio). E logo, abrindo os olhos, uma chuva de penas negras encheu o ambiente. Eram lindas penas, viçosas e quase que com vida própria.
E nas costas do rapaz, um par de gloriosas asas repousava. As mesmas baixaram um pouco, como se fossem uma espécie de capa protegendo os dois amantes.
Sayo sorriu, e lágrimas brotaram-lhe nos olhos outra vez.
“Eu amo suas asas, Taisho-san... Gostaria de morrer lembrando delas...”
“Assim espero... Sayo-dono...” – ele sussurrou.
[1] A oração xintoísta apresentada, conhecidíssima no Japão e dividida em duas partes, chama-se “Norito”, e está no livro compilado Hyakku Konjiki Monogatari.
[2] De fato, até hoje o vermelho está associado com as atividades de virgem miko.
[3] É um templo fictício, baseado no Izumo-Taisha, o mais antigo e tradicional templo de todo Japão.
[4] Literalmente, “Miko da Dor Corporal”.
[5] Kagome-Kagome é uma cantiga de roda infantil bastante antiga (e existente até hoje), onde uma criança, chamada de ‘oni’ (demônio) senta-se no meio e tapa os olhos, e outras crianças fazem uma roda em volta dela e cantam, rodando, e ao término da música, o ‘oni’ deve adivinhar o nome da pessoa que está atrás dele. Se acertar, essa pessoa será o novo ‘oni’, senão, deve continuar brincando de novo até acertar.
[6] As máscaras de festival e templos são aquelas em forma de raposa e outros animais japoneses folclóricos.
[7] “-no-Mikoto” é a terminação formal dirigida para uma miko.
[8] Ritual fictício, largamente baseado no game Fatal Frame I.
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