Capítulo Único

Observei você sagrar incontáveis vezes. E incontáveis vezes foram intensamente dolorosas.

Observei a coroa que ele havia repousado em sua cabeça e de seus lábios frios e incolores apenas o nome da Morte sendo pronunciado.

Observei você conquistar uma partícula inalcançável de seu afeto, alisando seus cabelos com tremendo pesar, fruto de um passado massacrado.

E por conscientes momentos eu acreditei veemente que poderia tornar o nosso vínculo real, camuflando a personalidade destrutiva daquele ser. Sempre por trás do véu.

Você pintou um céu particular para nós. De cores vívidas e encantadoras para os olhos deleitar e o coração abrandar. Muito aquém da concepção pitoresca do céu que ele desenhou para nos presentear. Você foi um dos muitos cortejos que ele galantemente ofereceu para mim. Um caminho de luz para uma realidade construída nos moldes da minha insanidade.

“Ainda quer ir com ele?”

Incontáveis vezes visualizei uma neblina se desanuviando, mostrando-me a imagem que criei para nós. O rio batendo gelado nos tornozelos, respingando com o agito amedrontado dos peixes.

“Sim.”

Aquela casa navegando em alto mar imersa em profunda escuridão junto a um barquinho a deriva, trazendo-me você como... visita.

“Ele me devolveu você e depois a tirou de mim.”

“E se ninguém morresse? E se todos estivéssemos juntos como deveríamos estar?”

E eu queria tanto... tanto... que você ficasse.

“Ele disse que fez um lugar para nós.”

Parece-me ignorância pedir perdão pela demora e ainda mais pelo descuido, mas meu Superego enferrujado ainda atinge seus picos de moralidade. E nos escombros mais pueris da minha consciência, a clemência chegou ao ápice da necessidade. Sinto que passarei até os últimos instantes da minha rele vida pensando em como poderia ter sido diferente.

Eu sinto tanto, Abigail.

Meu perdão foi uma dádiva para ele e a construção imaginária da minha quiralidade perante o mundo.

“Um lugar foi feito para você, Abigail... neste mundo. Era o único lugar que eu poderia fazer para você.”

Mais uma torrente rubra se esvai do seu corpo frágil. Acompanho seus olhos tornarem-se opacos. Sua boca, desbotar gradativamente.

Você morreu tantas vezes, Abigail.

Aquela estranha sensação tênue de haver tomado parte em alguma tragédia, percorrendo-me, ligeira e cadavérica, recoberta por mais uma alucinação. Sucumbindo.

Cada

Vez

Mais

Perto

Do

Fim.