Equinocial

Um Guerreiro solitário no campo de batalha - Parte II


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*Capítulo 17*

Um Guerreiro solitário no campo de batalha

Parte II

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Olhos bem abertos

Eu posso sentir isso
Como uma rachadura em minha espinha
Posso sentir como no fundo de minha mente

[…]

Sim, está no ar que respiramos
Está no sangue que nós sangramos
É onde a luta começa
Sim, é debaixo da pele

Toda batalha nasce da guerra interna

(The War Inside Switchfoot)

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Instituto Ironheart – Área Sul

3ª Zona de treinamento

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É simples e fácil. Só precisa fazer uma única coisa

Não era isso o que você queria?”

Ele sempre escolhia as piores condições possíveis. Desta vez, o solo era irregular, acidentado e cada vez mais escorregadio. O céu tenebroso e agourento desmoronava numa tempestade gélida, tornando quase impossível distinguir se ainda era dia ou noite.

A chuva era fria, tão fria contra sua pele que funcionava como um entorpecente, confundia seus sentidos e desfocava toda a paisagem a seu redor.

Onde ele estava?

Uma cidade? Um beco escuro? Uma floresta?

O lugar era irrelevante. A realidade se distorcia e o cenário mudava constantemente. Tudo o que importava era a espada ensanguentada em suas mãos e a batalha.

Seu corpo já estava ferido e exausto. Suas roupas, arruinadas. O sangue e os cadáveres de seus inimigos se misturavam com a água da chuva e formavam poças rubras na terra. O cheiro de violência e carnificina infectava todo o ar.

Ele ofegou, curvou o tronco para frente e tossiu, engasgado com a saliva e o próprio sangue. E apesar do desgaste e o cansaço, o guerreiro ainda persistia com ansiedade e expectativa.

As sirenes soaram mais uma vez. Outro nível foi superado e mais uma missão foi completada. O cronômetro girava incessantemente, preparando o próximo cenário.

A realidade se contorceu, as cores do mundo oscilaram e se dissolveram como detergente em água. A paisagem foi moldada e reconstruída novamente.

Agora ele estava em um campo aberto.

O som da chuva era como uma percussão em seus ouvidos. Ele podia sentir a vibração de cada gota d’água bater sobre a terra e contra a sua pele. Seus cabelos ensopados grudavam na testa, a água escorria e se acumulava sob seus cílios e enxaguava sua face. A adrenalina fervia em suas veias e o coração batia no ritmo desenfreado de uma cavalaria.

Dezenas de inimigos o cercavam, as bocas salivando; presas à mostra, rostos contorcidos em fúria, corpos encurvados em posições de ataque.

Mate. Mate todos. Todos eles! Corte, esmague, decepe! Não deixe escapar nenhum!

O guerreiro os encarou desafiadoramente, seus dedos apertando com mais força ao redor do cabo da espada até que as articulações de sua mão estalassem.

E atacou.

Como um borrão, sua espada atravessava os pingos da chuva e o ar, cortando peles, dilacerando carne e decepando membros. Braços, pernas; entranhas, cabeças. Os adversários mal tinham a chance de gritar ou esquivar dos ataques.

Mate todos eles! Corte, decepe, esmague!

A violência sanguinária se espalhava em qualquer direção e o guerreio sempre avançava, implacável. Sangue, carne e cinzas se acumulavam por onde ele passava. E a cada morte, cada rugido e gemido de agonia; a cada golpe letal que desferia, sua sede por destruição aumentava mais e mais.

Mate-os, mate-os, mate-os, mate-os…

Mate todos! Todos eles! Despedace, corte, quebre, esmague!

Acabe com todos. Não deixe nenhum escapar!

As sirenes ecoaram. O cronômetro recomeçou a contagem. A realidade se distorceu de novo. O cenário agora era um ginásio caindo aos pedaços.

Quinze inimigos. Homens. Mulheres. Crianças. Rostos irrelevantes.

Com um salto no ar, ele brandiu a espada rasgando os corpos das mulheres pela metade, e girando a lâmina num único ataque baixo, cortou a garganta das crianças e chutou seus corpos para longe. Os homens rugiram e o atacaram em grupo, as garras e presas expostas.

Foram lentos demais. Antes mesmo de conseguirem tocá-lo, a lâmina já decepava-lhes a cabeça.

O cronômetro girou de novo.

Outra distorção, outra realidade, outro cenário.

Agora ele se via em meio ao gueto de uma metrópole. Ruas mal iluminadas, asfalto esburacado, lixeiras abarrotadas. Casas apodrecidas, prédios pobres e encardidos.

O guerreio se posiciona, preparado para qualquer emboscada. Sob a chuva, ele força seus sentidos aguçados e analisa os arredores. A tempestade é barulhenta e estrondosa demais.

Mas ele não precisou esperar muito.

De repente, as sombras sob os prédios ganharam vida e dezenas de figuras retorcidas rastejaram para fora das construções. E ele foi ao ataque brandindo a espada com maestria, massacrando e fatiando a todos que se punham em seu caminho. O som da batalha era o de gritos animalescos e metal dilacerando carne. A espada veloz e mortal era movida com investidas poderosas, a lâmina impura tinia no ar como um raio de luz prateada.

E mais e mais deles apareciam como uma praga, saindo dos bueiros, rastejando pelas sarjetas e lotando as ruas como vermes e ratos, como abutres perseguindo carne pútrida. Um exército gigantesco de monstros.

Acabe com todos! Todos eles! Mate-os!

Eram muitos. Ele estava cercado. Encurralado.

Sua respiração era entrecortada e o ar fétido penetrava em suas vias aéreas como golpes de faca. Seus músculos gritavam em protesto, as pernas fraquejavam e mal lhe obedeciam.

Cansado. Esgotado. Seu corpo ferido começava a desmoronar. Sua mente era um branco perfeito. Ele se mantinha lutando apenas pelo seu puro instinto assassino. A espada em sua mão era pesada, tão pesada…

Numa onda de vertigem, ele pisou em falso e cambaleou. Esse foi seu erro fatal. Uma criatura pulou em suas costas, cravou as garras em sua pele e o peso do ataque inesperado o fez rolar sobre o chão. A espada escorregou de sua mão, girou no ar e aterrissou fora de seu alcance.

Depois disso, ele teve consciência de poucas coisas.

Ele sabia que era o seu rosto que estava pressionado contra o asfalto molhado e que a chuva enlameada invadia suas narinas e garganta, impedindo-o de respirar. Sabia das incontáveis criaturas acima de suas costas e sabia que era dele o sangue e a carne que bebiam e dilaceravam como hienas.

Ele sabia, mas não era capaz de sentir.

Não conseguia nem ao menos gritar ou se mover. Era como se ele observasse tudo do alto, como se fosse um mero expectador diante de sua própria morte.

Morte… Seria possível ele morrer ali? Se assim fosse, poderia ele alcançar a tão esperada satisfação com este fim?

Não, não conseguiria. Não daquela maneira.

Pois havia apenas uma única coisa que ele desejava. Uma única razão que o obrigava a seguir em frente.

Você sabe exatamente o que deve fazer… Apenas acabe com tudo. Apenas mate todos.

Não era isso o que você queria?

Ele não podia terminar assim. Ele não seria derrotado. Não por eles, não ali, não daquela maneira patética e vergonhosa. Não sem arrastar e levar todos consigo para o inferno.

Reuniu todas as suas energias restantes, trincou os dentes e usou os braços para erguer o rosto do chão. O gosto de lama, cinzas e sangue amargava em sua língua. E com um rugido de fúria e uma força que não imaginava que ainda tinha, ele arremessou as criaturas para o alto e se ergueu de pé.

Inclinou o rosto arruinado e desafiou aqueles monstros raivosos e sedentos. Seu corpo reagia perante a presença deles, treinado e forjado a vida inteira para matar. Cerrou os punhos, estalou as articulações; alinhou os ombros e tensionou os músculos em seu abdome.

Sua espada se fora, mas isso já não importava. Ele era um guerreiro. Um caçador. Um assassino. Alguém que vivia apenas para lutar. Ele mataria a todos com as próprias mãos.

Um relâmpago estilhaçou o céu e iluminou toda a cidade. A chuva torrencial fustigava em seu peito nu e desprotegido. A pele dele era tão pálida e fria como mármore e sua postura estática o tornavam como uma estátua de pedra. Ele era um perfeito monumento de guerra.

Corte, esmague, despedace! Não deixe nenhum escapar!

Mate, mate, mate…! Acabe com todos!

A horda de inimigos avançou. Crianças, mulheres e homens; adultos, jovens e velhos. Não importava quem fossem ou de onde vieram. Eles queriam seu sangue. Queriam matá-lo. E o desejo era mútuo.

Acima de todos, os céus explodiram em trovões como os aplausos de uma plateia extasiada. A chuva nunca cessava, e ele também não.

E o combate prosseguiu.

Os punhos e chutes do assassino quebravam ossos, moíam músculos, rompiam tendões, esmagavam órgãos. Cada golpe certeiro tinha a única finalidade de matar.

Suas mãos torciam pescoços, os punhos deslocavam mandíbulas e acertavam gargantas; seus chutes quebravam costelas, colunas e crânios. Ele já não pensava, não sentia mais dor ou cansaço. Ele não era nada além de uma máquina programada para destruir.

O som de ossos e carne triturados era a sua harmonia, seu hino melodioso da vitória. Os corpos se empilhavam por toda parte, deformados e inertes.

Ele lutou por uma eternidade, até que as forças lhe faltaram, até que o cadáver da última das criaturas se desfez em cinzas.

As sirenes ecoaram e o cronômetro parou. A realidade oscilou e girou como um caleidoscópio de cores. O cenário se distorceu pela última vez.

E gradualmente, lentamente e suavemente, o mundo voltou a sua forma verdadeira e original.

Com o último resquício de energia esgotado, suas pernas fraquejaram e ele tombou como uma rocha. Sem forças para se proteger da queda, sua cabeça bateu sobre o piso de concreto frio e a pancada arrastou sua consciência para o vazio da escuridão.

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— Você me fez esperar por um longo tempo. Por que demorou tanto?

Antes mesmo de conseguir afastar o rosto do chão e erguer os olhos para o alto, ele já sabia a quem pertencia aquela voz arrogante e presunçosa. Na verdade, ele o conhecia. Mais até do que gostaria de admitir. Cada traço e cada feição naquela face lhe era odiosamente familiar.

Lá, olhando para ele em meio as sombras, estava uma figura masculina jovem, alta e esbelta. A pele acetinada e extremamente pálida. Os cabelos cinzentos e brilhantes como fios de prata e os mesmos olhos desprezíveis de sempre.

Ah, aqueles olhos…

Brilhantes e duros como duas ametistas, desprovidos de qualquer empatia ou emoção, mas sempre dissimulados e cheios de malícia.

Um espectro. A personificação de um reflexo distorcido num espelho quebrado.

O outro. O Intruso.

Tsc, tsc, tsc Não seja tão hostil e pare de me encarar assim, está sendo rude. E pensar que eu vim todo o caminho até aqui apenas por sua causa…

O intruso estalou a língua numa expressão descontente. Mais do que isso, o tom de sua voz era semelhante ao de uma criança mimada que se entediou com seu brinquedo favorito.

— Bem, eu preciso reconhecer que você possui tenacidade. Não importa quantas vezes repetimos esse jogo, você sempre aposta tudo neste seu desespero patético. No entanto, ainda me sinto desapontado. Essa brincadeira está começando a ficar chata.

“Você… nunca muda. Achei que veria algum progresso depois de todos esses anos, mas pelo visto continua sendo o mesmo perdedor de antes. Seria tão, tão mais fácil você simplesmente aceitar o fato de que eu sempre vou ganhar…”

O intruso deixou escapar um suspiro entediado. Avançou dois passos, se aproximou de seu corpo jogado no chão e sorriu com desdém, expondo os dentes brancos e afiados.

— … E você sabe o porquê? Consegue adivinhar o que te faz ser sempre o perdedor? – agachou-se a seu lado e disse as palavras em voz baixa e confidente, como se contasse um segredo que somente ele pudesse ouvir. ― É porque você é fraco. Poderia vencer se quisesse, mas sempre abraça a derrota. Sempre dá um passo atrás, mesmo quando não lhe resta mais nada para proteger.

Debruçado e imóvel sobre o piso de concreto, o guerreiro não tinha forças para sequer mover os lábios e dizer qualquer palavra em resposta. E mesmo que as tivesse, não faria diferença. Não havia realmente algo para ser dito, afinal.

O intruso se levantou silenciosamente e ficou de pé outra vez, sem nunca desviar o olhar. Agora, na mão direita dele havia uma arma prateada.

― Mas, não se preocupe. Ainda dá tempo de consertar tudo. É simples e fácil. Só precisa fazer uma única coisa. – disse, mantendo o olhar inexpressivo.

Em seguida, apontou-lhe a arma no meio da testa.

— Não era isso o que você queria? Então, este é o fim. E você é o último. – A voz dele soou complacente e confortante como se aquela fosse apenas uma despedida de amigos. — Depois disso, tudo vai ficar bem.

E atirou.

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