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*Capítulo 11*

Caindo

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"(…)Eu devo admitir: Odiei todas as palavras que você disse

Pois simplesmente não vejo como posso ser motivado

Estou cansado de gastar suor numa raça em extinção

É como se nossos destinos fossem algo que já abraçamos

(…)E por todo esse tempo você esteve ausente

Com isso, você realmente não devia se importar

Mas é tão difícil ver a realidade

Que o fim vai ser o fim de tudo

E nossos corações são só o que poderemos levar

Então vamos em frente, fazer com que eles valham algo"

Apathetic Way To BeRelient K

:.

"Você é o único a quem eu poderia confiar esta missão. Poderia fazer isso, agente Takamiya?"

Começou há cerca de um ano, na América do Norte. Na vigésima primeira noite do mês de abril, a polícia da Cidade do México recebeu uma série de denúncias um tanto incomuns.

Quatro pessoas, com vidas completamente distintas e sem nenhuma ligação que as relacionasse; desapareceram na mesma noite. O único detalhe que aparentemente possuíam em comum eram as estranhas circunstancias em que sumiram.

Sem testemunhas. Nenhum pedido de dinheiro por resgate. Sem suspeitos.

A última semelhança era a mais terrível de todas: Exatamente uma semana após desaparecerem, seus corpos foram encontrados na periferia, descartados e desovados como lixo a ser recolhido.

Quatro cadáveres completamente nus, secos e drenados de sangue. E inacreditavelmente, nenhum dos corpos apresentavam marcas de agressão ou feridas externas, como se o sangue apenas tivesse extraordinariamente desaparecido de suas veias.

Os informantes na sucursal americana alertaram o QG e Kaien imediatamente enviou alguém para investigar. Convocado, Kaito empenhou-se em encontrar qualquer relação entre os crimes com algum ataque de vampiros.

O problema é que não havia o que procurar. Nada. Não havia absolutamente nada.

Uma série de crimes hediondos e nenhum rastro, nenhum vestígio ou sombra de qualquer pista que levassem a sua resolução.

Sem obter resultados, a Associação ordenou que Kaito abandonasse a investigação e retornasse ao QG. Naquela época, os caçadores estavam sobrecarregados o suficiente com os problemas de seu próprio país; a guerra com as famílias nobres custou muitas baixas e o caos ainda assombrava as bases recém-edificadas do novo governo.

A prioridade era exterminar todos os Levels E, servos descontrolados e criminosos que contribuíram com os opositores do pacto de paz. Por isso, a Associação não podia se dar ao luxo de insistir numa busca que exigiria um tempo que não tinha para dar.

O caso foi arquivado e consequentemente, esquecido sob as centenas de missões e investigações prioritárias.

Mas Kaien Cross não desistiu de procurar. Mesmo após o caso ser oficialmente congelado, o presidente continuou mandando ordens e instruções para que Kaito prosseguisse em segredo nas investigações.

No início, Kaito não compreendia bem a razão de ter concordado com aquilo. Se era movido por alguma intuição ou senso de dever, não tinha certeza. No entanto, ele também não era capaz de simplesmente esquecer aquele incidente. Então continuou insistindo numa busca cujo objetivo a cada dia parecia mais inatingível e indecifrável.

Parecia.

Meses depois, como uma praga, o episódio se repetiu e crimes com circunstancias similares apareceram ao redor do mundo.

E ele veio a descobrir que na verdade, todos os assassinatos estavam ligados a um elemento específico. Ou melhor, a alguém.

Eu quero que você cumpra uma última missão em meu nome. Você fará…? Consegue fazer isto, Kaito?

No fundo de sua mente, as palavras se formaram e escorregaram-lhe pela garganta, deslizando através de sua língua. E ele se ouviu responder numa voz tão alarmantemente calma que chegou a duvidar de que fosse sua. E sorriu.

— Sim. Eu farei. Mas… Com uma condição.

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Havia o Branco.

Havia a neve.

Minúsculos flocos de neve rodopiavam no ar.

Brancos. Perfeitos.

Inúmeros cristais brancos e perfeitos dançavam a seu redor. Mas a neve não caia do céu. Ela voava através do chão. As portas escancaradas convidavam todos para entrar e o vento gélido era o anfitrião que as saudava.

Os pequenos cristais bailavam, giravam; flutuavam e balançavam-se. Quando ficavam exaustos e o baile cessava, deixavam-se cair para descansar em seus cabelos, na sua face, sobre suas roupas e no ar que ele dolorosamente sugava para seus pulmões.

Havia o vermelho.

O vermelho não rodopiava. Não gostava de bailar e tão pouco era perfeito.

O vermelho era egoísta. Era ambicioso. Jorrava, espalhava-se, desejava cobrir tudo e odiava a neve. E o vermelho o odiava também. Odiava-o tanto que não parava de jorrar de seu corpo, ávido por abandoná-lo.

Havia os gritos.

Altos, agudos, angustiados, entrecortados e estilhaçados. Despedaçados.

Os gritos batiam nas paredes, esmagavam-se contra o chão; ricocheteavam nas vidraças das janelas, explodiam no teto. Mas nunca conseguiram escapar dos limites da casa.

Os gritos eram prisioneiros. Condenados e amaldiçoados.

E por último, as risadas.

As gargalhadas que ecoaram e preencheram todo o ar. O riso que era singular e único. Gélido, histérico; vazio, aterrorizante. Odiosamente cruel.

O som da morte.

E ali, entre a neve flutuante e o vermelho egoísta, ele afundou no abismo da escuridão.

Com um sobressalto, seus olhos arregalaram-se e o fôlego escapou por seus lábios semiabertos. O suor frio cobria-lhe a testa e fazia os fios prateados de seu cabelo grudarem na nuca. Seu peito subia e descia rapidamente, a respiração arfante era exaustiva, quase dolorosa.

Eu estou bem Já acabou. Estou aqui

Repetiu de novo e de novo para si mesmo, tentando se convencer daquilo. Mas era inútil.

Zero sabia que bastava fechar os olhos por mais que alguns minutos e tudo viria à tona mais uma vez, num ciclo infindável do qual não conseguia escapar.

... Tudo acabou Eu estou bem Já acabou

Porém, isso não o impedia de tentar. E ele continuou repetindo aquelas palavras dentro da própria cabeça, assim como fez por inúmeras noites nos últimos anos, até que finalmente se acalmasse.

Pouco a pouco, ele voltava a si e tomava consciência de onde realmente estava. Sua respiração estabilizou e ele relaxou as costas encurvadas, deixando-se afundar no encosto estofado da cadeira. E ficou ali, esperando que tudo passasse.

Num gesto que para ele já se tornara automático, retirou o mesmo frasco de pílulas e entornou várias delas em sua mão, engolindo-as rapidamente. Devagar, sua mente desanuviou e ele sentiu um pouco da tensão em seu corpo aliviar.

Piscou várias vezes até que a visão clareasse e seus olhos ganhassem foco. O gabinete de leitura da biblioteca do Pátio Sul revelou-se diante dele.

Construída em estilo gótico revivalista, com enormes estantes que se erguiam do chão ao teto repletas de livros das mais diversas áreas de conhecimento. Nos últimos anos, aquela biblioteca havia se tornado um de seus lugares favoritos em todo o campus. Por alguma razão, o cheiro levemente amadeirado dos livros lhe trazia uma sensação de bem-estar. E já que ninguém mais visitava a biblioteca naquele horário, Zero sempre ficava com o lugar todo só para si mesmo.

Como um refúgio; uma última escapatória das noites insones e turbulentas, ele adentrava naquele salão e entregava-se à leitura até que a luz pálida do amanhecer atravessasse os vitrais das amplas janelas, quando a luz elétrica das lâmpadas se tornava redundante e refletia fracamente no chão de mármore polido.

Se Zero se concentrasse, conseguia sentir o cheiro da umidade no ar lá fora, ouvir o som tranquilizante da chuva caindo sobre a grama e lavando as copas das árvores. Podia afirmar com convicção que o clima continuaria nublado pelo resto do dia e que a nuvens se dissipariam ao anoitecer.

E havia a companhia agradável do silêncio, aquela calmaria serena que era possível ser encontrada somente nas primeiras horas da manhã, no momento em que os pensamentos se aquietavam e a mente e o corpo se permitiam sentir.

Ainda que essa tranquilidade fosse passageira, e ele soubesse que do lado de fora daquelas paredes recobertas de livros um mundo caótico o esperava, Zero não conseguia resistir ao impulso de desejar que aquela calmaria durasse para sempre. E por isso ele permaneceu ali quase imóvel, assentado à mesa de leitura, como se assim também pudesse evitar que o mundo girasse.

Mas já que era impossível, ele se contentou em baixar suas inúmeras barreiras e se permitiu ser inundado por aquela falsa paz. Bebeu ávidamente de todo aquele silêncio e o guardou dentro de si. Inspirou profunda e lentamente, relaxando os músculos de seu corpo dolorido, resultado de passar longas horas naquela cadeira e adormecer apoiado sobre a mesa.

Massageou as laterais da cabeça com as pontas dos dedos e seu olhar pousou sobre o livro aberto à sua frente. O volume era grosso, com capa de couro ressecado e aspecto muito antigo. Concluiu que provavelmente se tratava do último livro que lera antes de cair no sono. Perscrutou as páginas frágeis e amareladas, detendo-se na primeira passagem que encontrou:

CANTO IV

"Um homem livre, posto no meio de dois alimentos

eqüidistantes e igualmente apetitosos, morreria

primeiro de fome, antes que num cravasse os dentes.

Do mesmo modo um cordeiro ficaria irresoluto entre

dois feros lobos, sem resolver-se a fugir,

e um cão ficaria imóvel entre dois gamos:

pela qual lei natural não me censuro nem me louvo se,

igualmente estimulado das duas minhas dúvidas,

eu me calava, pois que o silêncio era uma necessidade¹."

Um sorriso irônico surgiu em seus lábios.

A Divina Comédia

Não tinha a menor ideia de quando havia aberto aquele livro e muito menos do motivo de o ter escolhido dentre tantos outros. Talvez tenha sido num gesto involuntário ou simplesmente uma piada de mau gosto feita por seu subconsciente. Se a explicação fosse esta, sua imaginação parecia perder a prática em atormentá-lo, visto que atualmente ele se sentia mais no Purgatório do que em qualquer outro plano de existência.

E além disso, o Paraíso descrito por Dante sempre lhe parecera demasiadamente complexo. Zero achava que uma tumba confortável e sossegada já era mais que o suficiente para um descanso eterno; talvez até mais do que qualquer sujeito metido a bem feitor na face da Terra realmente mereça.

Levantando-se da cadeira, ele fechou a capa do livro e começou a empilhá-lo jundo de todos os outros volumes espalhados sobre a mesa. Em seguida, pôs-se a devolvê-los a suas devidas estantes e categorias.

Ele costumava passar a maior parte do seu tempo livre ali dentro, por isso já conhecia o gabinete de leitura quase por completo, perdendo talvez apenas para o próprio bibliotecário – que nos últimos tempos raramente viera trabalhar – e para o senhor Dan, o inspetor ancião que zelava pela Área Sul do Instituto desde… Bem, desde sempre.

Zero não sabia muito a respeito do Sr. Dan. Aliás, ninguém mais parecia saber. Honestamente, não tinha ideia do porquê aquele senhor continuava a se preocupar tanto em vistoriar as instalações da Área Sul, quando poderia estar desfrutando da aposentadoria.

Desde criança, Zero já perdeu a conta de quantas vezes recebeu advertências e sermões do Sr. Dan. Atualmente, fazia o possível para evitá-las. Tinha o cuidado de organizar minuciosamente e devolver todo o material que usava antes de ir embora pois tinha certeza que o velho, já conhecedor de seus hábitos noturnos, viria checar a biblioteca assim que acordasse. Quando contrariado, aquela criatura de aparência enganosamente frágil era capaz de causar medo e impor autoridade até mesmo nos agentes da Associação.

Terminando de organizar tudo, Zero procurou pelo sobretudo azul-marinho, encontrando-o dobrado sobre a mesa de leitura e o vestiu, preparando-se para ir ao mundo exterior e enfrentar as agruras do seu purgatório pessoal.

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A chuva fraca refrescou sua face e frisou os fios prateados de seu cabelo. O céu nebuloso com manchas de cor violeta realçava o tom envelhecido da grama e das árvores, tornando a paisagem do Pátio Sul num notável contraste de cinza e verde.

Verde, cinza e violeta. Essas eram as cores quase absolutas daquela manhã. A chuva escorria como lágrimas pela face das estátuas que ornamentavam o Pátio, e escoava pelas ventas das gárgulas no alto das torres da construção.

No momento em que abandonou a proteção das paredes da biblioteca, imediatamente sua cabeça começou a latejar e um doloroso zumbido perfurou suas têmporas. Levou o tempo de três respirações lentas e profundas para que Zero erguesse novamente todas as barreiras em sua mente, bloqueando e reprimindo seus sentidos extremamente sensíveis.

O aviso de Kaito na noite anterior não foi nem um pouco exagerado. O ar estava infestado com mágica Ahlcker.

A cada determinado período, a barreira e as proteções que cercam o Instituto são restaurados pelo poder dos Alquimistas. Geralmente, Zero se certificava de ficar longe do QG durante a semana que sucedia a restauração exatamente por esse motivo. Os feitiços sempre eram mais fortes nos primeiros dias.

Ele podia sentir a vibração das proteções tinirem em seus ouvidos, a energia pressionando sua pele, ávida para repeli-lo. O selo tatuado em seu pescoço reagia a toda aquela influência e sua pele pinicava como se fosse afligida por milhares de alfinetes.

Estranhamente, naquela ocasião parecia haver muita mágica, mais até do que estava acostumado a lidar. Ou talvez fosse ele que estivesse cada vez mais sensível ao efeito dela.

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Zero quase se esqueceu de como era caminhar livremente pelo interior do Instituto. Quase, pois os olhares nada receptivos dos funcionários lhe fizeram lembrar bem rápido.

Com uma certa diversão, ele percebeu a decepção estampada na face da maioria das pessoas que o viam transitar pelos corredores, a prova de que suas esperanças na morte prematura dele foram frustradas mais uma vez. Havia também aqueles que apenas o olhavam com resignação, já conformados com sua presença incômoda. Estes eram os mais civilizados.

Disfarçadamente procurou por Kaito entre os vários rostos e figuras que transitavam e passavam por ele. Na noite anterior, ambos passaram horas naquele corredor à espera de Yagari.

O Mestre nunca apareceu, o que os fez suspeitar de que talvez aquela fosse a sua punição; deixá-los de castigo num canto como duas crianças malcriadas morrendo de tédio. Ou mais provável ainda, o Mestre simplesmente devia estar muito ansioso para descansar e fumar o quanto quisesse no conforto de sua suíte, agora que Kaien chegara e assumira novamente a presidência.

Bem, se o Mestre quis adiar o castigo, eles é que não reclamariam. No fim das contas, Kaito acabou indo embora e Zero, sem sono e nada mais para fazer, foi se enfurnar na biblioteca. Todavia, ele preferia enfrentar a fúria de Yagari mil vezes antes de ser obrigado a ir até a sala da presidência.

Não fosse pela péssima situação em que estava, Zero arranjaria inúmeras desculpas e jamais apareceria naquele encontro. Por quase dois anos ele teve sucesso em evitar o homem a quem todos chamavam de Presidente Cross e se pudesse escolher, continuaria evitando-o a qualquer custo pelos anos seguintes. Talvez, para sempre.

Mas ele não podia ter um luxo como este. Infelizmente, não.

Zero costumava dividir as pessoas que ele conhecia em grupos:

Haviam as pessoas que ele odiava, aquelas que o odiavam; as pessoas que ele suportava, e as pessoas pelas quais ele nutria algum respeito.

E além dessas categorias havia Kaien Cross, que não se encaixava em nenhuma, mas que ao mesmo tempo possuía características de todas elas. Para Zero, definir o caráter de sua relação com Kaien como ‘complexa’ era um tremendo eufemismo.

O tempo todo, seus sentimentos por aquele indivíduo oscilavam entre a hierarquia e a consideração, entre o respeito e o ódio. Kaien era o adulto que lhe acolheu e protegeu quando ninguém mais faria, quem ofereceu um lugar para viver e o ajudou a se recompor quando lhe tiraram tudo.

A pessoa que acreditou nele e o ajudou a ser forte durante o momento mais frágil de sua vida. O homem que o apresentou à adorável irmã adotiva a qual ele desejou tanto proteger e consequentemente, aprendeu a amar.

Mas, Kaien Cross também era o homem que mais o decepcionou, omitindo coisas que ele veio a descobrir da maneira mais cruel. A mesma pessoa que o ofereceu a ilusão de uma família feliz, para logo depois obrigá-lo a vê-la ser destruída como um castelo de vidro que se estilhaça ao cair no chão. Ele também era o homem capaz de sorrir e agir como um pai amoroso, enquanto escondia uma teia de mentiras e conspirações que quase resultou na ruína de todos.

Mentira. Desde o início aquela história não passou de uma mentira minuciosamente arquitetada e edificada. E o que Zero mais odiava era o fato de ele ter desejado tão desesperadamente acreditar naquela ilusão.

E ele acreditou. Continuou acreditando naquele sonho até ver os estilhados de vidro com seus próprios olhos, até ele finalmente aceitar a realidade. Até ele escolher destruir o que restou do castelo de vidro com suas próprias mãos.

E apesar disso, mesmo após todos aqueles anos; entre os bons e os maus momentos, ele ainda nutria consideração por Kaien.

Mas a mágoa conseguia superar quase tudo.

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A maçaneta de bronze lhe era tão familiar que seu punho se moldava nela perfeitamente, girando-a suave e silenciosamente. Ele entrou sem bater. Não era necessário, visto que o dono da sala já aguardava a sua visita.

A porta se fechou atrás dele com uma batida suave, abafada pela madeira à prova de som. Deteve-se por um instante na entrada, absorvendo os detalhes da inacreditável transformação que aquela sala sofreu em tão poucas horas. Ele se controlou para manter a expressão neutra diante daquela visão.

A sala ainda estava lá, com os móveis de madeira nobre e entalhada, o teto alto e ornamentado; os quadros e obras de arte emolduradas nas paredes e os castiçais e luminárias de prata.

Porém, ao mesmo tempo tudo estava… diferente.

As cortinas das amplas janelas foram abertas, permitindo que a luz matinal invadisse e clareasse o aposento. No lugar do antigo tapete verde-escuro que cobria quase todo o chão de marchetaria havia agora um elegante conjunto de tapeçaria bordada em lã vermelha; as velas desgastadas e enrugadas foram retiradas e devidamente substituídas por novas nos castiçais. E havia também um delicado vaso de cerâmica cheio de flores frescas que descansava sobre o balcão da estante.

Discretamente, ele farejou o ar e percebeu com surpresa que até mesmo o cheiro dos cigarros de Yagari havia desaparecido, dando lugar a uma essência fresca e cítrica; suave o suficiente para ser agradável até para alguém com o olfato tão sensível como o dele. E Zero tinha certeza de que aquilo só podia ser o efeito do aromatizante caseiro que ele vira tantas vezes Kaien borrifar em sua antiga casa “Para afastar os maus ares e atrair os bons ventos”.

Zero conseguia imaginá-lo perfeitamente munido de avental e luvas; correndo de um lado para o outro, desdobrando-se para limpar e arrumar tudo a seu gosto.

Era difícil de acreditar. Literalmente, Kaien conseguia fazer uma masmorra se transformar em uma sala de estar aconchegante.

A mesa, antes tão abarrotada de papeis durante o período da administração de Yagari; estava limpa e o cinzeiro havia sumido. As inúmeras pilhas de documentos e arquivos entulhados agora estavam todos milagrosamente organizados, assinados e devidamente endereçados. E o indivíduo responsável por toda aquela façanha estava lá; assentado elegantemente, desfrutando de uma xícara de chá ao mesmo tempo em que aproveitava para ler o jornal.

E por mais que Zero odiasse admitir, era impossível negar a razão de Kaien ter conseguido defender o posto de Presidente apesar de ter vários opositores na Associação. Ele era o único que conseguia guiar friamente aquela Instituição e salvá-la de afundar no próprio caos. A verdade era que ninguém mais conseguia fazer o que ele faz. Pelo menos, não naquela geração.

Recobrando a compostura e escondendo o breve choque que tivera; Zero aproximou-se da mesa, limpou a garganta e chamou-lhe a atenção.

Kaien ergueu o olhar do jornal e descansou a xícara no pírex.

— É bom vê-lo após tanto tempo, Zero, e fico feliz que tenha conseguido vir desta vez. Venha e sente-se, por favor.

O rapaz captou o mais suave tom de censura naquelas palavras.

Ele só estava naquela sala fazia menos de dois minutos e já queria ir embora. As engrenagens de seu cérebro giraram, trabalhando numa maneira de contornar a conversa e fazê-la fluir a seu favor. O problema é que quando se tratava de Kaien Cross, o esforço geralmente era inútil.

Aproximou-se da mesa e tomou uma cadeira para si, tentando parecer o mais casual possível.

— O senhor mandou me chamar e aqui estou. – Zero declarou, encolhendo os ombros e demostrando uma naturalidade que não possuía. — Há algum problema, Presidente?

— Que interessante. Esta é exatamente a pergunta que eu estava prestes a lhe fazer. – Kaien inclinou-se na poltrona de couro, mantendo a postura perfeita e entrelaçou as mãos sobre a mesa.

Há algum problema, Zero?

Um alarme disparou em sua cabeça. Zero conhecia muito bem aquela linguagem corporal. Kaien estava lhe testando.

Precisava responder logo e o mais naturalmente possível, mas hesitou. Se começassem uma discussão, ele não teria muitos argumentos para se defender. Estava pisando em campo minado desde o momento em que chegou ali e qualquer passo mal calculado lhe custaria caro. Muito caro.

Quando não conseguiu encontrar nada seguro o suficiente para declarar em voz alta, Zero se viu sem alternativas. Então, permitiu-se entrar no jogo de Kaien para ver até onde aquilo chegaria.

— E como não haveria de ter, nos tempos de hoje? – Ele rebateu.

Os olhos de Kaien, de um incomum tom de ocre claríssimo, focaram-se nele e quase brilharam por trás das lentes dos óculos apoiados na ponte de seu nariz reto e simétrico. O rosto dele era enganosamente jovem, esculpido em traços harmoniosamente precisos que beiravam ao absurdo. Os cabelos cor de areia perfeitamente lisos acentuavam o tom da pele levemente dourada, livre de manchas ou rugas, tornando quase impossível delatar sua verdadeira idade.

Aquilo o irritou. Zero sabia que em comparação a ele, sua imagem deveria parecer um reflexo adoentado e pálido; cinzento e faminto. Era humilhante.

Zero começou a procurar ansiosamente por qualquer sinal de marcas ou imperfeições naquele rosto. Encontrou as manchas escuras sob os olhos dele, e vasculhando ainda mais constatou que o presidente também perdera peso, uma vez que os ossos de sua mandíbula pareciam mais salientes que o normal. E Zero sentiu uma estranha satisfação em saber que ele ainda sofria pelo episódio de dois anos atrás; em saber que havia rachaduras naquela máscara apesar de Kaien escondê-las tão bem.

Mas Zero conseguia enxergar além da superfície. Kaien não era mais o mesmo. Tudo havia mudado e para os dois não foi diferente.

— Realmente. E pelo que vejo, isso descreve perfeitamente a sua conduta nos relatórios que recebi. – Kaien prosseguiu, apanhando uma das várias pilhas de pastas a seu lado, abrindo e distribuindo-as de modo que Zero pudesse ler seu conteúdo.

"Tudo isto são as suas missões nos últimos seis meses, seus registros médicos e as listas de alvos que você exterminou até hoje. Eu também tomei a liberdade de conversar com Touga e a Diretora Persson.

E o fato, Zero, é que os dados do seu histórico são… alarmantes. O incidente desastroso na sua última missão só serviu para confirmar isso. E infelizmente, devido aos últimos acontecimentos, eu sou obrigado a tomar uma decisão."

Se antes Zero sentiu um alarme de perigo soando em sua cabeça, agora ele era bombardeado com todos os maus pressentimentos que teve desde a noite a passada. Pois ele sabia que se Kaien teve o trabalho de puxar todo o seu histórico, isso só poderia significar uma coisa. Uma coisa que que ele definitivamente não queria ouvir, mas que foi dita de qualquer maneira.

— Você não me deixa escolha. Como presidente desta Instituição, retirarei sua licença de associado e ordeno que abandone imediatamente seu posto como Hunter. Zero Kiryuu, a partir de hoje você estará desligado da Associação de Caçadores de Vampiros.

E naquele momento, por alguma razão que Zero não poderia explicar; a passagem que leu mais cedo na biblioteca surgiu em sua mente e ele percebeu que havia se enganado. Ele não estava mais no Purgatório.

Não, não mesmo.

Ele estava caindo no Inferno.

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