Entrelinhas

Capítulo único


Emma adorava o modo como os lábios de Regina ficavam entreabertos, quando ela se concentrava nos projetos que fazia. A maneira como as mãos de pele macia se moviam por sobre o papel, que ela insistia em continuar usando, mesmo quando programas de computador podiam fazer o desenho inteiro por ela, em menos tempo.

Havia algo sobre como os cabelos escuros escorregavam e se transformavam em uma cortina ao redor de seu rosto, cada vez que ela se curvava sobre a prancheta, a fim de acrescentar ou apagar um traço qualquer. Emma se deixava encostar no batente da porta e a observava por horas a fio, se esquecendo completamente do copo de água que tinha nas mãos ou de qualquer outra coisa que estivesse prestes a fazer, apenas para deixar que seus olhos se mantivessem fixos naquela criatura tão fenomenal que encontrara.

—O que faz aí? – Regina perguntou, ao levantar a cabeça e ver sua concentração se esvair completamente, como sempre acontecia quando a loira estava por perto.

—Eu gosto de te ver trabalhar – A mais nova deu de ombros, como se aquilo não significasse nada.

—Pode ir para a cama, eu já vou – Os cabelos escuros foram colocados atrás da orelha, outra vez e então, teve início a meticulosa arrumação que vinha depois de horas de trabalho.

Aquele aposento era uma representação física de toda a complexa personalidade de Regina Mills. Os lápis, sempre ordenados de acordo com a dureza do grafite, voltavam ao seu lugar no estojo quase que imediatamente após ela decidir que havia trabalhado o suficiente. A flanela, já permanentemente manchada, assumia seu papel ao limpar os pulsos salpicados pelo escuro do grafite e os rabiscos que acabavam sendo feitos fora da folha.

O estúdio cheirava a Regina e isso também era um motivo para Emma gostar tanto de estar ali. O ambiente era carregado com seu perfume, como se estivesse impregnado em cada partícula da tinta branca que cobria as paredes.

—Você comeu? – Emma questionou, mesmo que já soubesse a resposta e a viu apenas negar, num gesto silencioso – Eu vou colocar um prato para esquentar, enquanto você termina.

E então Emma saiu para a cozinha. Ela não esperava por uma resposta, porque sabia que não a receberia.

Regina não gostava de gestos desnecessários, de palavras além da medida. Ela nunca se despedia em uma ligação e quando precisava enviar uma mensagem, pulava todas as normas sociais e não questionava sobre nenhum assunto além daquele que a fizera enviar a mensagem.

Com calma, Emma retirou o plástico filme do prato que deixara pronto mais cedo e o colocou no micro-ondas. Enquanto esperava, serviu duas taças de vinho tinto e bebericou de uma delas, sentindo o mesmo agrado de sempre, conforme a bebida adocicada tomava conta de sua boca.

E ela soube que Regina iria entrar na cozinha no momento seguinte. Porque o som de seus inseparáveis saltos a precedia e seu perfume logo rodopiava no ar ao redor, como uma marca registrada que jamais poderia ser de qualquer outra pessoa além dela mesma. Aquele cheiro que era como uma perdição para Emma, desde o primeiro momento.

Emma viu sua própria queda acontecer quando sentiu aquele cheiro pela primeira vez e logo colocou os olhos verdes sobre a íris castanha da outra mulher.

Foi por puro acaso, ter que substituir seu colega de trabalho, naquela manhã chuvosa. Neal caiu doente justamente quando devia apresentar a proposta mais importante de sua carreira e ligou para Emma, sabendo que era a única pessoa que adoraria ver recebendo uma promoção. Ela garantiu que faria um bom trabalho e menos de duas horas depois, estava parada no meio do escritório de Regina Mills, com seus próprios lábios entreabertos e seus pulmões tomados pelo cheiro daquela mulher que chegara com os saltos martelando sobre o piso de madeira e a olhara como se não fosse nada além de um de seus tantos compromissos tediosos daquele dia.

“Me diga porque eu deveria contratar sua construtora” – Foram as primeiras palavras que Regina dirigiu a ela e por mais que Emma soubesse de cor tudo o que deveria dizer, levou vários minutos até que as palavras voltassem aos seus lábios então secos.

Ela entrou na cozinha, com os olhos cansados e um sorriso breve nos lábios. Retirou seu prato do micro-ondas e se sentou, murmurando um agradecimento quando a taça de vinho foi colocada diante dela.

Regina era silêncio.

E seus silêncios quase nunca eram desconfortáveis. Eram apenas uma parte dela, uma das tantas partes que compunham aquela alma intensa, extensa.

—No que está trabalhando? – Emma perguntou, assumindo seu lugar do outro lado da mesa e bebericando de sua taça.

—Finalizando o projeto da nova prefeitura de Storybrooke – Seus lábios se curvaram em um sorriso – O último do ano.

—Férias, então? – A morena assentiu – Para onde?

—Para onde você quiser – E aquela fala, pegou Emma desprevenida.

Regina era solidão.

Ela sempre tomava suas decisões sozinha, decidia seu destino e caminhava com passos firmes e diretos. Não esperava que qualquer um concordasse com o que fazia, não esperava que ninguém a seguisse, não desejava qualquer aprovação e, até aquele momento, o único indício de que Emma era diferente de outras pessoas, era quando perguntava se gostaria de acompanha-la para qualquer que fosse o lugar para onde ia.

Mas então, Emma estava incluída em suas decisões. Mais do que isso, tinha passe livre para decidir por ela e a loira soube que aquela era uma espécie de declaração de amor.

—Qualquer lugar é bom, contanto que você esteja lá – Essa frase lhe rendeu um de seus sorrisos preferidos. Aqueles que Regina abaixava a cabeça, corando com alguma leveza.

Ela sempre era pega de surpresa por palavras carinhosas.

As duas haviam saído pela primeira vez exatamente uma semana depois de Emma apresentar a proposta da empresa onde trabalhava e Regina, surpreendentemente, escolhê-los.

Ainda mais surpreendente foi quando Emma ligou para ela, na noite anterior ao encontro, quando estava bêbada demais para se impedir de qualquer coisa e a mais velha aceitou seu convite.

Se encontraram em um restaurante reservado, falaram pouco, comeram pouco e foram para a casa de Regina, onde transaram durante toda a noite.

Regina não facilitou depois disso. Não estava aberta a qualquer tipo de relacionamento e Emma demorou para entender que precisava apenas ter alguma paciência, até que seu celular tocasse e o número da morena brilhasse na tela, chamando-a para ir até sua casa.

A primeira surpresa veio quando, após algum tempo de transas casuais, Regina enviou uma mensagem e ela refez todo o trajeto que separava seu apartamento da casa da morena e a encontrou sem qualquer salto ou maquiagem, apenas com uma garrafa de vinho já pela metade e lágrimas não derramadas nos olhos castanhos.

Regina não contou o que acontecera e Emma não perguntou.

Elas apenas passaram várias horas entre taças de vinho e conversas amenas, debatendo sobre os projetos e construções, ainda sem terem encontrado outro assunto em comum.

A segunda surpresa veio quando Emma caiu doente e a mais velha pediu seu endereço, aparecendo em sua porta no meio da noite, com um remédio para a gripe e a oferta de sua companhia quase sempre silenciosa.

O apartamento parecia pequeno demais para sua presença. Seu cheiro pesava como chumbo nos pulmões de Emma e mesmo que ela estivesse acostumada ao espaço grande de sua casa, encontrou uma posição confortável no sofá da diminuta sala de estar e encarou a loira até que as palavras jorrassem de sua boca como uma barreira se partindo em mil pedaços.

Foi a primeira vez que Emma falou tão abertamente sobre si mesma. Quando disparou, entre soluços e lágrimas, sobre a rejeição dos pais diante de sua sexualidade.

Ela também tinha sua própria solidão.

Seu exílio forçado pela incapacidade dos pais de amarem uma filha que não se casaria com um homem e encheria a casa de netos, forçado pelo afastamento brusco do irmão mais novo, que a olhava com desprezo desde o momento em que a palavra ‘lésbica’ saiu de seus lábios, durante uma tarde tediosa de domingo.

E naquela noite, tão diferente de qualquer outra, quando jogou toda a sua história sobre a única pessoa que parecia não se importar com nada além de si mesma, ela foi acolhida por braços perfumados e teve o topo de sua cabeça beijado. Adormeceu sem querer, com a certeza de que na próxima manhã, tudo aquilo seria apenas mais uma de suas tantas memórias.

No dia seguinte, seus olhos se abriram para encontrar Regina Mills andando descalça por sua sala de estar, lendo as lombadas dos tantos livros que estavam amontoados na estante pequena demais.

Regina vivia através dos livros que lia, Emma descobriu depois.

A loira soube que estava apaixonada naquela manhã. Por mais que os sinais estivessem todos lá desde a primeira noite, quando os gemidos de Regina se tornaram seu novo som favorito, ela só pôde perceber seus sentimentos ao vê-la na sala de seu apartamento, descalça, com a camisa social amarrotada e as olheiras típicas de quem passou a noite em claro, velando o descanso de outra pessoa. Só então Emma se deu conta de que aquela era, para ela, a mulher mais bela do mundo, mesmo quando seus olhos estavam banhados por aquelas lágrimas jamais derramadas ou quando estava apertando os lábios em uma linha fina, diante da bagunça da moradia alheia.

E ela falou sobre isso quando se viram de novo.

E entendeu quando Regina não respondeu nada. Entendeu que a morena não diria nenhuma palavra sobre seus próprios sentimentos, mas que a faria perceber que não era apenas mais uma foda ao convidá-la para passar o fim de semana em sua casa, após aquela admissão sentimental. Ao perguntar qual era seu prato preferido e então cozinha-lo da maneira que foi descrito, deixando que o molho caísse sobre o macarrão, em um formato semelhante ao de um coração. Mesmo que depois, jurasse que o gesto fora acidental.

Regina não usava palavras para esclarecer seus sentimentos, usava gestos.

Suas declarações aconteciam quando mantinha um estoque de cervejas em sua geladeira, mesmo que não gostasse delas, nos momentos em que deixava Emma entrar em seu mundo pessoal e lhe explicava cada um dos traços de seus projetos ou falava sobre momentos de sua vida que não dividia com mais ninguém.

Emma entendeu que era amada em um domingo ensolarado.

Haviam passado a noite juntas e ela acordara no quarto da mais velha, sozinha. Buscou-a pela casa toda, até encontrar a porta de um quarto que não vira aberta antes e se ver frente a frente com uma Regina de olhos inchados pelo choro, segurando um elefante de pelúcia já gasto pelo tempo.

Regina convidou-a para um passeio e a levou até o cemitério, onde pararam diante de um túmulo infantil. Só então a morena falou sobre o filho pequeno, que encontrara sem vida na piscina da casa, há exatos três anos.

Voltaram para casa em silêncio, tomaram café da manhã e logo depois, as lágrimas de Regina vieram outra vez e ela se deixou ser acolhida pelos braços de Emma, onde soluçou e permitiu que sua dor fosse, pela primeira vez, compartilhada.

Não houve um pedido formal de namoro, houve apenas uma manhã nublada na qual o carro de Regina se recusou a funcionar e Emma a levou até o trabalho. Elas trocaram um beijo demorado, antes que a empresária desembarcasse do carro e outro ainda mais longo no fim da tarde, ao se encontrarem outra vez.

O gesto se repetiu nos dias seguintes, enquanto o carro seguia na oficina e continuou a se repetir depois, mesmo que ambos os veículos estivessem disponíveis. E se Regina dedicou qualquer mínima parte de seu tempo aos cochichos quase histéricos trocados entre seus funcionários, ela jamais deixou que soubessem.

—No que está pensando? – Regina perguntou, conforme penteava seus cabelos antes de se deitar e percebeu a loira com uma expressão séria.

—Em nós – Emma respondeu, recebendo da outra um levantar de sobrancelhas – Eu parecia uma boneca de pano, quando precisei apresentar a proposta da construtora e não conseguia nem manter minhas pernas firmes, porque você tinha esses olhos vidrados em mim.

Os lábios de Regina se curvaram em um sorriso mediano e ela subiu na cama, se arrastando por sobre o colchão, até estar em cima de Emma. Ela sorriu um pouco mais quando as mãos da loira foram diretamente para suas coxas pálidas.

—Eu acho que nunca lhe falei, Emma Swan, mas.... Não ouvi muita coisa do que disse, na apresentação – A mais nova franziu o cenho, indagativa e seu estômago pareceu se torcer ao meio quando Regina colou os lábios em um ponto abaixo de sua orelha, antes de voltar a falar – Eu estava ocupada demais tendo fantasias sobre seus braços, minha mesa e uma foda intensa.

Regina era totalmente entregue para Emma.

Mesmo quando não queria ser, mesmo quando precisava colocar diante de si aquele velho escudo protetor. Era sempre tão receptiva aos dedos que se encurvavam dentro dela, quando os beijos se tornavam intensos e quentes demais para serem apenas beijos.

Começara simples, como todo o resto. Uma manhã de trabalho, um jantar, uma foda.

E aquilo se enroscou em seu interior com uma leveza que não a deixou perceber que começava a ansiar em demasia pelos olhos verdes que a despiam e pelos cabelos loiros que faziam cócegas em suas costas, quando Emma lhe beijava toda a extensão da pele.

O sentimento, talvez tão silencioso quanto ela mesma, arrastou-se por sua mente, pelo coração já tão danificado e enrolou-se na ponta de seus dedos e sua língua e ela passou a enviar mensagens e fazer ligações com uma frequência cada vez mais absurda, porque de repente, não ter a presença de Emma Swan, tornava o silêncio dolorido demais.

A diferença de idade a incomodou, no princípio. Estar com alguém quase dez anos mais jovem, não era algo que Regina considerasse ideal. Mas não era um empecilho tão grande, afinal, não pretendia ter mais do que alguns encontros e logo esquecer aquela bela distração loira.

E apesar da idade, apesar de sua recusa em entregar qualquer sentimento para alguém outra vez, os encontros se transformaram em finais de semana e os finais de semana eram uma rotina agradável, que logo foi estendida para os outros cinco dias.

Emma, com aquele seu sorriso sacana, com suas palavras doces sobre tudo o que dizia respeito a ela, encontrara o caminho por entre todas as camadas que a empresária usava para revestir seu próprio coração.

Não trocaram qualquer palavra sobre morarem juntas.

Mas quando o contrato de aluguel de Emma estava prestes a vencer e boa parte de suas coisas já estavam na casa de Regina, organizadas como se ela mesma vivesse ali, a morena apenas sugeriu que trouxesse o resto delas.

E Emma o fez, em uma tarde de sábado, há pouco mais de quatro anos.

Entre o tempo que viviam juntas e o primeiro encontro, somavam-se cinco anos e um mês. Nenhuma delas marcava datas exatas e ambas pensavam que estiveram como uma só, desde a primeira noite.

—Você já se apaixonou antes? – Emma questionou de repente, ainda sentindo o coração descompassado e esperando que sua respiração voltasse ao normal. Tinha Regina ancorada em seu peito, acariciando suavemente a pele de seu ombro com as pontas dos dedos.

—Sim.... – A mais velha respondeu, seu tom de voz demonstrando aquele cansaço agradável que vinha depois de Emma tê-la tomado por inteiro – Já me apaixonei e pensei que amava a tal ponto, que não sobreviveria se a pessoa fosse embora, mas sobrevivi. Já me casei pensando que era a melhor decisão da minha vida, mas não foi.

—E nada garante que nós não somos só isso.... Uma decisão ruim – Emma ponderou e sua fala foi carregada de tanta intensidade, que Regina levantou a cabeça, para olhá-la – E que depois de cinco anos, podemos simplesmente.... Acabar. Não vamos acabar, vamos?

—Quase nada na vida é garantido, Emma – Regina sorriu, com alguma leveza e por qualquer razão, a loira soube que o que viria depois, era intenso – Mas uma coisa eu posso afirmar com toda a certeza.... – Ela se deitou outra vez, enrolando-se sobre o peito de Emma – Coisas que eu sinto quando estou com você e que jamais senti estando com qualquer outra pessoa.

Emma precisou do silêncio que veio depois. Precisou quase beliscar a si mesma, para entender que Regina Mills havia dito aquelas palavras tão exatas, que combatiam rapidamente a velha insegurança que lhe vinha, em alguns momentos. Ela encarou o teto, querendo gravar bem aquele instante em sua memória.

—E que coisas são essas? – Perguntou, duvidando que receberia uma resposta. Mas todos os pelos de seu corpo se arrepiaram quando o hálito quente sobre seu peito, denunciou que Regina sorria e se preparava para falar.

—Casa, Emma – Disse, simplesmente – Quando estou com você, eu me sinto em casa.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.