Entre Ódios e Desejos

Capítulo 6 - Certezas provocam inquisições


É engraçado como todos os nossos julgamentos acabam caindo sobre nossas cabeças, uma hora ou outra. Há dias eu via Piper andar para lá e para cá meio desnorteada, por Leitchfield, e eu mesmo não entendia quais eram minhas reais intenções ao sequer dirigir-lhe a palavra. Seu segundo dia fora o pior. Aos poucos ela foi percebendo que não estava numa colônia de férias, como me dissera Morello e seus lábios intensamente vermelhos em meu primeiro dia de confinamento. E por isso, eu podia enxergar o sofrimento em cada ruga que se desenhava em seu rosto, cada expressão fajuta de um desespero inesperado.

Ela não sabia que havia sido eu quem havia colocado seu nome dentre os citados como cúmplices no tráfico internacional de heroína, há anos atrás. Também mal sabia o que se passou comigo durante todos os anos em que estive num luto idiota por tudo e numa raiva enclausurada, que viera a se externar quando fui presa. Eu não me importava, porém. Senti seu olhar gélido em minha direção durante dias seguidos e pude perceber que ela tinha uma raiva guardada dentro de si também. Apesar de eu não compreender muito bem o que lhe causava aquilo, afinal de contas, a abandonada havia sido eu.

Por dias notei suas tentativas fajutas de me ignorar, suas desculpas bobas para não estar ao meu lado, mas logo comecei a notar uma aproximação forçada que eu não sabia se estava interessada em tê-la. Por estar sempre perto de Nicky, Morello, e sendo elas o que havia de mais respeitoso e normal dentro daquele local, era um pouco óbvio demais que seria inútil esperar que Piper se bandeasse para outro grupinho a não ser o nosso. E, ah, também havia a famosa segregação de castas. Branquelas, negras, latinas, as velhinhas inofensivas e as adoradoras de Cristo.

Num dia qualquer - até porque eu não ficava contando dia e noite desesperadamente dentro daquela jaula federal - Piper veio até mim, finalmente num tipo de coragem que me era estranho ver dentro dela. Era um pleno período de trabalho, a lavanderia abarrotada de coisas para lavar, limpar, desinfetar e dobrar, mas ela apareceu ali como se nada demais estivesse ocorrendo e tentei ignorá-la. Com uma trouxa de roupas na mão, apareceu quase no fim do expediente e fez menção em me entregá-las, dando a volta para trás quando percebeu que eu já estava terminando meu trabalho.

Tão clara como cada palavra de um livro para crianças pouco capazes, era sua intenção nem um pouco sutil de vir até mim, ao contrário do que fazia parecer com aquelas peças de roupa qualquer que nem sujas deviam estar. Piper era tão perita em disfarçar intenções, mascarar vontades que nem ela mesma sabia quais eram, que conseguiu fazer uma ceninha típica para se aproximar de mim. Para o meu total desconforto, porém, ela havia aparecido para dizer que me perdoava.

Sério? Era isso que ela tinha para me dizer? Porra...

Inevitavelmente minha paciência se esgotou no momento em que cada frase começou a sair de sua boca. Não dava para entender em qual mundo Piper viveu, durante dez anos, e que fez com que sua crendice em sua eleição divina ficasse ainda mais latente. Melhor explicando, eu acreditava piamente que, desde que fomos àquele bar burlesco, no dia em que a vi sentada de longe procurando por um emprego de garçonete, eu sabia exatamente qual era seu tipinho. Cada dia passado eu me apaixonava mais perdidamente por ela, e ao mesmo tempo confirmava minha teoria.

Desde que nascemos, nossos pais têm a mania irritante de amar cada pedacinho de nós. Cada burrada, cada sorriso, cada passinho é sinônimo para que um amor descontrolado seja jogado pelos aires e impregnado sobre cada uma de nossas células. Cada um, no entanto, escolhe como agir diante disso. Eu, por exemplo, desde criança soube que minha mãe me amava demais para mostrar que não era nossa miséria que nos rebaixaria ou faria de nós, piores do que os outros. Já os pais de Piper não precisavam desse mimo exagerado, o que provocara uma reação adversa sobre esse amor e cuidado excessivo. Eu apostava, dentro de cada centímetro do meu íntimo, que a loirinha de classe média alta do Brooklin acreditava ser um tipo de eleita - daquelas do tipo que nasce falando "quero isso porque quero" e todos obedecem -. Acontece que o mundo real era muito mais cruel do que seu castelinho de areia. Cada vez que ela agia com a empáfia do quero porque quero e sei que tenho razão eu só sentia uma vontade imensa de gargalhar e lhe dizer o quão patético tudo aquilo era.

Mal acreditei naquela situação e simplesmente fui ríspida com sua tentativa fajuta de vitimização que não passava de uma prova de que seu ego estava ainda mais inflado. Se ela ao menos percebesse que era eu quem tinha me ferrado de veradade, uma conversa ao menos agradável poderíamos ter tido.

Foi então que decidi me afastar de vez e não deixar que ela sequer dirigisse a palavra a mim. Nicky sempre estava ao meu redor, fazendo com que eu me sentisse menos sozinha naquele inferno, e quando não estava, com certeza eu acabava flagrando uma de suas fugas com Morello para praticarem a boa e velha tática que Nicky chamava de conquista interminável do esquecimento de que estamos presas.

Com certeza sua listinha hilária de quem ainda vou foder tinha vários nomes e talvez o meu. Mas ela ainda me tratava com respeito, pois nos entendíamos muito bem para deixarmos que algum tipo de sexo oportuno estragasse aquele clima.

Numa de minhas quartas indo à Capela a mando do Sr. Healy, sentei-me sozinha na segunda fileira em frente ao altar e ainda era cedo para que algum orador viesse. Em meio ao silêncio em que eu me encontrava e à minha tentativa de me manter o mais longe possível de Piper, ouvi um barulho suspeito - algum tipo de madeira rangendo - e não pude deixar de ficar curiosa.

Sorri comigo mesma imaginando já a mais bizarra das situações e fui indo em direção ao confessionário devagar, sem alardes. Cada vez mais perto, comecei a ouvir duas vozes que de repente se calavam e davam lugar a um só resmungo solitário e ao som da madeira, incansável e velha. Fui chegando mais e mais e quando pude botar os olhos dentre as frestras da porta do pequeno cubículo onde as freiras ficavam para nos ouvir e abençoar, avistei Morello, somente seu rosto.

Ela gemia baixo, controlada e segurava nas laterais da cabine.

_Isso, isso, isso, Nicky...

Óbvio. Quem mais poderia estar ali junto?

_Você é melhor calada queridinha, só geme vai, só isso...

A voz rouca de Nicky me fez rir alto e não pude deixar de ser notada.

Nicky abriu a cabine devagar e viu que eu estava ali, ainda rindo.

_Quer participar, princesa?

_Não, não. Aproveitem, vai... tranquilo.

Ainda sorrindo ajeitei meus olhos e fiz um sinal com os dois polegares como quem dizia É isso aí, meninas! e fui me sentar de novo. Nada como dez minutos se passaram e as duas saíram de lá, indo para um banho de Sol e sorrindo para mim. Nenhuma das duas tinha o mínimo de pudor, o que era extremamente cômico e, não sei, real. Nada parecia mais real do que todo aquele lugar e todas aquelas pessoas.

Num desses dias quaisquer, Pennsatucky dedurou as duas a um dos guardas e percebi de longe. O rapaz - o novato - apenas sorriu se virando para o nojento do bigode horroroso e metido a charlatão, que retribuiu o sorriso pedindo que da próxima vez ela delatasse as colegas no momento do ato, para que eles fossem lá assistir ao showzinho. Não pude deixar de achar ótima aquela atitude e zombar do ímpeto moral cristão idiota da garota. Que ela fizesse uma limpeza moral na puta que pariu o pregador da igreja que ela frequentava.

Cada um dos segundos estavam sendo mais torturantes, ao ver Piper no mesmo lugar do que eu. Como dissera, uma hora ou outra nossos julgamentos caíam sobre nós. Muitas vezes me vangloriei, sobre a personalidade de Piper, de estar um patamar acima a ela no quesito saber o que fazer. Mas dessa vez eu só sabia realmente o que fazer por fora. Por dentro eu estava uma verdadeira bagunça. Eu queria, ao mesmo tempo, que ela não me odiasse, mas não conseguia aguentar seu narcisismo. Por outro lado, queria ela longe, mas procurava seu olhar, suas pernas, todo e qualquer vestígio dela, quando ela não estava olhando.

_Filha, dá pra perceber de longe que você não deixa aquela garota em paz, dentro de você. E que ela não te deixa em paz - disse-me Red certa vez -.

Eu concordava com ela, mas não podia expor aquela fraqueza de tal modo. Se é que algum dia Piper fizesse um estudo astrológico sobre seu signo e suas tendências, com certeza ela iria descobrir uma forte ascendência em Libra: o equilíbrio e a indecisão. E eu mesma devia estar numa daquelas fases em que dois, dez, ou quantos astros fossem, também apontavam para aquela maldita confusão. Eu não tinha certezas: por isso não podia dar a mim ou a ela sentenças, inquisições.

Foi então que num outro desses dias atípicos, após ignorá-la severamente e despejar sobre ela que ela havia partido meu coração e não o contrário, ela veio até a lavanderia, desta vez não para procurar um pretexto para que nos falássemos. Era, de fato, uma obrigação de seu trabalho ir ali e arrumar uma das instalações elétricas de uma máquina que havia estragado. Para minha diversão e desprazer, ela não sabia sequer o que estava fazendo e me dispus a ajudá-la.

Recebi um sorriso meio sem graça e assustado pela minha aproximação, e ao mesmo tempo sua linguagem corporal me indicava um certo ar de estou aceitando sua ajuda apenas porque preciso. Entrei dentro da máquina para consertá-la, obviamente numa ideia muito idiota, e quando Piper se afastou para pegar uma ferramenta para mim, Pennsatucky apareceu e me fechou dentro daquele pedaço de lixo de tamanho industrial.

Só estou começando, vadia.

Disse-me ela e saiu, enquanto desesperadamente eu gritava por Piper e pedisse que ela voltasse. Só de estar ali naquele momento todas as minhas emoções estavam à flor da pele. Que situação...ridícula!

Piper insistia em buscar ajuda e eu somente pedia que ela ficasse. Talvez minha súplica tenha sido um tanto sentimental demais, mas nem eu mesma pude controlar como dizia pra que ela ficasse ali comigo. Mais uma vez, a maldita da confusão dentro de mim.

Ela começou a tentar abrir a porta da máquina de lavar, enquanto isso eu somente observava o quão linda ela ainda estava - na verdade mais - depois de tanto tempo.

_Está quase na hora da contagem - quebrei o gelo e aquele silêncio horrível -.

_Eu sei, eu sei.

_Tenho quase certeza que estou sufocando - ela se irritou e provocou um barulho cortante com o alicate que segurava, ainda ampliado pelo pequeno espaço onde eu estava - Aw! Alto.

_Me desculpa - disse-me olhando em meus olhos e parando por um instante. Ela tinha a mania irritante de conversar descendo o olhar para os meus lábios...sempre -.

_E então, Nicky não voltou?

As duas trabalhavam juntas no conserto de qualquer tralha quebrada que os chefes da prisão inventavam para que ocupassem seu tempo.

_Quem? Sua namorada? Não - perguntou-me com certa altivez -.

Sorri abismada com seu tom que parecia mais um indicativo de ciúme do que de falta de empatia.

_Minha namorada?

_É - ela nem sequer olhava para mim -.

_O que isso significa?

_Nada... deixa pra lá.

Mais uma vez, Piper e suas clássicas faltas de explicação para sua indecisão mental.

_Não... o que você quis dizer com isso? - insiti ainda sem parar de sorrir -.

_Eu disse nada... eu disse deixa pra lá! - respondeu-me em claro nervosismo. Não deixava de ser muito fofo -.

_O que, então? Você achava que eu ficaria esperando você vir até mim?

_Ir até você?

_Sim.

_Ir até você...como? Reatar com você? - ela ainda se mostrava nervosa mas tentava disfarçar. Era óbvio que eu conhecia melhor do que ninguém, mesmo depois de tanto tempo - Você tá de brincadeira comigo, né? Eu estou noiva.

_Ok - debochei de sua resposta inconclusiva. Foda-se o comprometimento... -

_Olha só, não confunda as coisas, ok? Talvez, só talvez, nós seremos amigas de novo. Talvez...

Piper olhava, dessa vez, no fundo dos meus olhos e batia com uma chave de fenda no vidro que nos separava, ritmicamente. Até parecia cena de cinema. Um pequeno pedaço de areia industrializada e com menos de cinco milímetros de espessura era capaz de fazer com que nos sentíssemos tão protegidas, por trás dele, que chegávamos a explorar nossos sentimentos, depois de dez anos sem nenhum contato e de algumas semanas de conversas estúpidas e que não chegavam a lugar nenhum.

_Nós nunca fomos amigas, Piper - um certo pesar acompanhado de deboche compareceu em minha voz -

_Não?

_Nem por um segundo! Eu amei você, eu amava fazer sexo com você...

Ela se calou. Sem deixar que minha expressão ficasse séria, mantive meus olhos nos dela e ela se virou devagar, fazendo aquilo de me olhar dos olhos à boca, mais uma vez. Sinceramente, eu senti falta daquele olhar... que só ela sabia fazer.

_E mais importante - quebrei o clima para não cair em minhas próprias emoções como uma idiota - Eu não estou sugerindo que nós voltemos a ficar juntas, sua narcisista de Park Slope. Eu quis dizer que queria que você viesse até mim como se eu fosse um ser humano de verdade e não que usasse uma de suas desculpas vazias, muito menos que fizesse essa carinha fofa e triste que pode até funcionar com a porra do seu namorado.

Ela simplesmente não disse nada. Continuou tentando abrir a porta e ignorou o que eu dissera.

_Eu esperei que você aparecesse e me tratasse como um ser humano de verdade e que percebesse o quão idiota você tem sido.

No momento em que minhas últimas palavras foram proferidas, Piper não se conteve e seus olhos se enxeram de raiva.

_Eu tenho sido uma idiota?

_Pra caralho!

_Foda-se você, foda-se esse secador também. Essa porra desse secador de merda - e começou a chutar a máquina como se eu nem estivesse ali, tomada por um ódio repentino -.

Que barulho de merda! Eu tinha certeza que ia morrer ali, não era possível. E então, com todo aquele ataque de raiva que pareceu durar uma eternidade, fomos pegas pelo instrutor de Piper e encaminhadas para Sr. Healy como se estivéssemos, não sei, transando dentro da máquina de secar roupas. Aquilo era absurdo. Eu não aguentava mais toda aquela pressão, mas, por outro lado, parecia ter tirado um caminhão de minhas costas ao dizer tudo que queria a Piper e perceber que ela também ainda sentia algo, pelos seus olhares e seu desprezo por Nicky que mais pareceu, hum... Ciúmes!

Sorri comigo mesma de volta ao meu quarto e até considerei tentar ficar perto dela de novo. Por mais que eu estivesse me identificando um pouco com Nicky, que ela fosse divertida, sarcástica, inteligente e bastante acolhedora, eu simplesmente não conseguia mais imaginar nós duas, se é que isso houvera um dia estado em minha mente.

Como diria minha mãe, ainda quando viva, não há graça nenhuma em amar ou ser amado com motivos. Quero dizer, eu começava a ter olhos para outras mulheres porque elas tinham alguma característica de interessante, porque elas eram X ou Y e porque me davam alguma coisa em troca. Mas e aquele sentimento de eleição que eu tanto criticava em Piper? Eu também tinha um pouco dele. Todos temos. Eu simplesmente procurava sentir que amava alguém sem razões. E procurava alguém, também, que amasse sem elas. Que me dissesse, em qualquer hora, que mesmo eu sendo uma puta de uma mal humorada, que meu humor fosse ácido demais e que eu achasse que mandava no mundo, eu ainda assim era simplesmente o amor da vida dela. E que eu mesma dissesse, que mesmo ela sendo a maior narcisista do Brooklin e da América, quiçá, que não soubesse nem uma vírgula sobre o que é o mundo, sobre o que é passar dificuldades e não ter tudo nas mãos: que eu a amava.

E faltava só uma simples faísca para que eu esquecesse ao menos por alguns segundos os dez anos que passara em martírio.