Entre Ódios e Desejos

Capítulo 1 - Onde começam, terminam os jogos


De volta a Amsterdã pela quarta vez nos últimos trinta dias, todo aquele cerco policial já me dava náuseas. Kubra dizia a todos nós, gerentes e subalternos em sua distribuição supranacional de drogas, que deveríamos ficar calmos, pois nada nos aconteceria. Contrário a esse discurso apassivador, sabíamos através de um dos nossos informantes na central policial do Brooklin, que, na verdade, essa “calma” não era muito justificada. Obviamente, as portas estavam se fechando e isso me asfixiava aos poucos. Sem liberdade eu não era nada. Sem poder, muito menos.

Passamos algumas horas na Praça Dam, localizada no centro da cidade, eu e Jeff, esperando a ligação de Kubra, diretamente, ou de um dos menores. Até mesmo a entrada em um dos hotéis da região poderia nos trazer problemas, uma vez sendo a ideia de fugir ainda não descartada. Vários artistas de rua pintavam ao ar livre, rodeados por crianças, pombos, água e uma natureza primaveril típica de um tempo bastante gracioso na Holanda. Aquela imagem toda em sua composição mais sutil, no entanto, me apertava o peito.

Por instantes fechei meus olhos, perdida entre pensamentos, e imaginei tudo que perderia se fosse presa. A simples possibilidade de observar crianças irritantes correndo no parque criava uma nostalgia nefasta, atípica e que me fazia franzir o cenho.

_ Tudo certo, Alex?

_Sim, sim. Tudo ótimo, Jeff.

Sem abrir meus olhos, cultivei o silêncio que voltara a ser respeitado pelo meu acompanhante e uma figura indesejada pairou em minha mente por alguns instantes. Ela. Piper Chapman. Só de pensar, meu peito doía. A noção racional era de que toda aquela sensação incômoda era apenas causada por um conjunto de reações químicas em meu corpo e pela conseguinte constrição do meu nervo vago, que atravessava meu tórax e causava aquele “vazio” subjetivo, porém explicável. Por outro lado, a noção não racional era de que o buraco era naquele local, causado por aquela mulher, que só de relembrada machucava.

Meu inconsciente – mais conhecido como id, o precursor dos id-iotas movidos pelo desejo incontrolável – caminhara para dez anos anteriores, em uma de minhas vindas a essa mesma praça, com Piper, apenas para caminharmos à luz do dia. Era um 4 de maio, data comemorativa da morte de vários conterrâneos durante a Segunda Guerra Mundial, e sem saber disso, fomos visitar o local, procurando por paz. Ao contrário disso, nos deparamos com um amontoado de gente passeando por ali, revivendo toda aquela ritualística de memória e até mesmo orando, de uma maneira holandesa que eu desconhecia, pelas almas de seus antepassados. O palácio no centro da praça era monumental, belo e nostálgico, um dos poucos lugares restritos naquele dia, naquele ano em específico, para evitar a ação de vândalos e eventuais depredações do patrimônio público histórico.

Piper agarrou meu braço ao nos aproximarmos da multidão em frente ao palácio.

_Alex, o que acha de entrarmos?

_Qual é, criança, não vê que a gente não pode fazer isso? - sorri num nervosismo repentino –

_Vamos lá, amor, um pouco de diversão. Por favor.

Ela pousou seu queixo em meu ombro esquerdo, beijou de leve minha orelha e sussurrou que valeria a pena, se eu topasse. Ah, e como eu rejeitaria? Impossível. Aquela fora uma das tardes mais gostosas de todo o verão. O estresse do trabalho parecia bobagem, às vezes, quando eu estava ao redor dela. Piper era como um sonho de vida, a mulher que me tirava do chão, e me punha de novo ao dar um de seus chiliques de princesa mimada e sedenta por aventuras. Nada mais “aventureiro” do que traficar drogas internacionalmente, eu diria paradoxalmente, mas as loucuras que eu fazia com ela tinham um gostinho a mais, pois para ela eram uma novidade imensa e eu acompanhava aquele tesão que Piper tinha em viver.

O telefone tocou em meu bolso e acordei do quase sonho que estava tendo dentro de minha cabeça.

_Alfa¹?

_Sim, Alex. Pegue Jeff e me encontrem em frente a Ozab Wal 52² no Red Light District³.

Nada mais dito, seguimos nosso caminho, de táxi, e assim que entramos no carro, uma viatura policial interrompeu nossa ida, pedindo ao motorista que encostasse.

_Alex Vause, meu nome é Amy Daniels, sou da Polícia internacional americana e você está presa. Você tem o direito a uma ligação, quando chegarmos a detenção, e tudo que disser pode ser usado contra você em seu julgamento.

Era isso. Toda minha concepção de liberdade, poder e autonomia estava sendo tirada naquele instante. Eu não tinha o direito de dizer nada, de reclamar nada, nem sequer de chorar, pois não seria do meu feitio. A dor se acumulou em meu peito, juntando o antes, as lembranças dolorosas de dez anos atrás, e o agora, em que a perspectiva dos próximos anos seria, talvez, apodrecer numa cadeia federal, ou ficar livre sem novos rumos.

Ao menos se Piper não cruzasse meu caminho dali em diante, ficaria satisfeita.

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¹Alfa - Maneira pela qual os traficantes subalternos chamam o chefe, para que ele não seja identificado.

²Ozab Wal 52 - loja localizada no bairro Red Light District

³Red Light District - Bairro turístico da Holanda