CAPÍTULO XXX

No momento em que suas palavras escaparam de seus lábios, Alana sentiu-se estranha. Atordoada e ainda mais tomada pela sensação de fraqueza, suas pernas estavam moles e, ela sabia que cairia no chão a qualquer momento. Alana West encarava a mãe sem saber o que fazer ou o que deveria dizer, ouvira de Eligus e Baltazar que ela estaria no inferno, mas ter essa verdade praticamente jogada bem na sua cara e vê-la ali, bem diante de seus olhos era completamente diferente; e uma surpresa e tanto.

Sua aparência não mudara da foto que tinha guardada dela, o cabelo continuava com o mesmo tom castanho brilhoso e chamativo, assim como sua face, sem qualquer sinal de envelhecimento. Era como olhar a fotografia que tinha da mãe, porém ao vivo. Logo lembrou-se das tantas vezes em que seu pai lhe dizia que sempre puxara muito a aparência de sua mãe e realmente era verdade, Lena e Alana poderiam facilmente ser confundidas como irmãs.

Seus olhos se estreitaram, não havia uma reação correta que não fosse o silêncio. Ao seu lado, Lucius manteve-se em seu silêncio, apenas como um telespectador da cena que, se desenrolava aos poucos. Alana sentia o peso de seu olhar sobre si e, isso pareceu puxá-la de volta. A moça piscou rápido algumas vezes, internamente querendo ter a total certeza de que não estava apenas sonhando ou vendo ali uma alucinação de sua mãe. Não, não estava. Lena West estava realmente ali na sua frente, o olhar materno e ao mesmo tempo envergonhado lhe encarando fixamente.

Tirando da jovem qualquer palavra que pudesse ser dita.

— Ainda acha que não temos o que conversar? — O demônio murmurou após um longo tempo de silêncio, seu tom soou divertido e pretensioso; como se ele tivesse planejado que a presença de sua mãe a fizesse mudar de ideia. A voz firme e grossa ecoou por sua mente, cortando seus pensamentos.

E realmente funcionou. Mas apenas porque Alana estava tão desesperada por respostas que, aceitou momentaneamente sua estadia passageira naquele lugar tão terrível.

Incerta do que iria ou poderia acontecer nos próximos momentos, a jovem West direcionou o rosto para o demônio parado ao lado de sua mãe, percebeu que, naquele momento, cabia a ela decidir prosseguir com aquele incomum encontro ou forçá-lo outra vez a deixá-la ir embora daquele lugar. Durante segundos breves ela pensou em sua resposta, obviamente tinha conhecimento de que uma decisão como aquela não poderia ser tomada assim em segundos, mas estava tão óbvio o que precisava fazer que, nem mesmo hesitou em assentir. Cedendo ao que lhe pareceu assinar seu próprio destino incerto. Ou ele estava certo, mas ela preferia ignorá-lo por um tempo.

A confirmação vinda em um aceno leve com sua cabeça tirou de Lucius um sorriso vitorioso, o mesmo que ela viu noite atrás, quando ele o esboçou para Kambriel e tentou levá-la. Vê-lo novamente fazer isso causou um tremor em seu corpo, tirando qualquer menção de uma possível reação, Alana voltou-se brevemente para sua mãe, a mulher ainda muito calada e envergonhada.

Perguntas começaram a se formar, algumas que tinha retornaram aos seus pensamentos e lembranças vieram à tona, algumas memórias fracas de seus poucos momentos com ela e algumas fotografias que seu pai guardava; muitas delas perdidas durante o tempo que se passou. Mais de dez anos... Pensou aflita, ouvindo as próprias batidas de seu coração.

— Vamos para um lugar mais aconchegante, uma conversa como a que estamos prestes a ter não pode ser feita... Aqui. — O demônio tornou a falar, gesticulou em direção a porta de madeira ainda aberta. Sua mãe foi a primeira a sair, Lucius foi logo em seguida e, Alana saiu por último. Sabendo que, no momento em que passasse pela porta, corria o risco de não voltar mais.

Os três seguiram por um corredor extenso e muito bem iluminado, a West mais nova olhou ao seu redor, estivera no inferno antes e tentou relembrar de como era o cenário, porém o que via era bem diferente do que conheceu quando falou com Eligus. Alana não sabia como descrever o lugar, tudo era muito diferente do que estava acostumada a ver, mas existia apenas uma única palavra que conseguiria deixar o que via ter algum tipo de sentido: Perturbador.

O cenário era extremamente perturbador e incômodo. Ela viu as almas, muitas delas em suas agonias particulares e eternas, ela ouvia todas elas. Clamando por um tipo de socorro que não viria para aquele lugar, também conseguia sentir a dor de cada um, através de seus rostos... Ranger de dentes, gritos... Todas condenadas e atormentadas para uma eternidade.

Desviou os olhos, os fixou na imagem ainda comum de Lucius e em sua forma de andar. Seu corpo movia-se com estranha graciosidade, algo que não parecia fazer muito sentido para alguém como ele. Seus passos eram ritmados e silenciosos, nem mesmo se ouvia sua respiração ou voz. Calmo e silencioso como a morte. Alana manteve os olhos nele até vê-lo parar, estavam diante de uma outra porta, esta, porém, sendo bem mais larga que a anterior e mais... Sofisticada também. Entraram no mesmo silêncio de antes, sendo recebidos por uma sala ampla e aberta no teto.

A sala que se projetou era de fato muito mais aconchegante e amistoso do que o outro cômodo aonde Alana estava e muito se assemelhava a um ambiente casual, a decoração era uma mistura harmônica de toques humanos e alguns poucos toques mais rústicos. As poltronas, mesas e quadros eram claramente escolhas humanas, algo simples e ao mesmo tempo sofisticado, porém as paredes eram escuras; tão escuras quanto a escuridão densa acima do teto. Alana olhou tudo ao redor e logo se viu arrependida de ter aceitado ter suas respostas, mesmo que sentisse mais bem-vinda naquele cômodo não conseguia afastar o sentimento estranho que lhe dominava. Como se alguma coisa de ruim fosse acontecer a qualquer momento.

— Sente-se, será uma conversa longa. Ficará cansada se ficar de pé. — O homem demônio gesticulou para a poltrona menor, Alana caminhou até ela com seus passos hesitantes. Observando sua mãe sentar-se na poltrona ao lado da maior, aonde Lucius sentou-se.

Com os três sentados, estavam todos de frente para o outro, Alana praticamente no centro dos dois, de frente para eles e completamente exposta a Lucius.

— Já que é minha convidada, permitirei que seja você a falar primeiro. — Lucius esticou os lábios em um sorriso fraco, os olhos vermelhos se fixando no rosto da moça que, mantinha-se hesitante sobre o que acabara de aceitar.

West pensou, tinha muitas perguntas para fazer, muitas delas que sabia que, teria a resposta, mas então lembrou-se do motivo de estar ali. Se envolveu com a missão de Kambriel na terra e, estava frente a frente com o responsável pelos ataques em Grória, de frente para o demônio que, deixava Kambriel tenso e ainda mais protetor do que já era. Estava ali com uma rara oportunidade de conseguir algum tipo de benefício com sua ida forçada ao inferno e bem, Alana sabia muito bem o que tinha de fazer.

— Por que está causando aqueles ataques em Grória? — Sua pergunta tirou tanto de sua mãe quanto de Lucius uma expressão surpresa, nenhum dos tipos estavam esperando por isso e ficou óbvio. Seu questionamento contrariou até mesmo suas próprias expectativas, queria muito saber o que sua mãe estava fazendo no inferno, mas ajudar Grória pareceu ser o mais sensato a ser feito.

— Essa não é bem a pergunta que tanto quer fazer...

— Por que está fazendo isso? — Alana o cortou antes que ele conseguisse finalizar sua fala, seu tom soando tão firme ao ponto de surpreendê-la também pela ousadia adquirida naquele momento.

Fez-se silêncio, Lucius olhou para a humana e então mudou a direção de seus olhos vermelhos para a mulher sentada ao seu lado. Lena também o olhou, moveu o rosto na direção do demônio com calma até encontrar seu olhar e então abaixou o rosto novamente.

— O que fiz e estou fazendo com aquela cidadezinha medíocre é o que vocês humanos chamam de: Ato de amor. — Disse ele simplesmente, a desdém em sua voz e em seu gesto apenas deixou sua fala ainda mais mentirosa.

— Ato de amor? — Questionou de volta, arqueando uma sobrancelha. — Chama o assassinato de vários inocentes de ato de amor? Você é tão doente assim?!

A ofensa o surpreendeu e também a sua mãe que, olhou para a moça com espanto e receio ao mesmo tempo. Lucius passou a língua pelos lábios, um ato que os humanos faziam quando tinha seus lábios secos e então, ficou completamente sério.

— Você passou tempo demais com aquele pastorzinho mequetrefe Jacob West, ao ponto de falar exatamente como ele falava... — Aquilo não era um elogio. — Está julgando o que viu baseado apenas no que ouviu de outras pessoas ou acha que sabe, mas deixei-me explicar algo a você.

Lucius inclinou o corpo para frente, inclinou a cabeça levemente para o lado.

— Sim, Alana. O que fiz foi um ato de amor, sei que aos seus olhos não se parece, mas tenha a mente aberta para tentar compreender minhas palavras, fiz o que fiz por você. Apenas por você. — Contou com naturalidade, como se todas as pessoas que foram mortas nos ataques demoníacos não representassem nada além de algumas vidas sem importância.

Alana franziu o cenho, seus lábios se abriam, contudo, nenhuma palavra saiu deles. Estava surpresa, perplexa com o que escutou do demônio para falar qualquer coisa. Lucius moveu-se outra vez, retornou a sua postura anterior e olhou para a mulher ao seu lado.

— Por que não conta a ela, Lena? Afinal, isso também diz respeito a você. Até bem mais a você. — Ordenou ele, o tom ainda muito sério e firme, assustando a mulher de início ao dar a ordem.

West olhou para a mãe e esperou, a mulher fechou os olhos durante alguns instantes, respirou profundamente como se trouxesse algo que fugiu dela de volta para seu corpo e então olhou para a filha. Se antes o olhar envergonhado já tinha causado em Alana muitas dúvidas, o que viu estampar a face nada envelhecida de sua mãe a deixou tensa.

— Antes de falar qualquer coisa quero deixar claro que, tudo o que fiz foi apenas para te proteger e dar a você uma vida melhor do que teria. — Lena começou a falar, Lucius revirou os olhos com a fala inicial e então voltou a encarar a humana com muita atenção. — Eu fiz de tudo para mantê-la segura. Saiba sempre disso!

A West mais nova sabia que todas as alterações em suas feições e em sua respiração não estava escapando do olhar atento do demônio. A hesitação da mulher até mesmo transpareceu como algo que pudesse ser tocado, ao olhar mais atentamente para sua mãe, Alana não soube o que esperar. A ansiedade já estava a dominando por completo.

— Eu não vivia em Grória antes, vivia em Las Vegas junto com minhas tias, fui morar em Grória depois de uns meses após conhecer seu pai. — A fala de Lena foi interrompida brevemente pelo muxoxo desdenhoso quando ouviu a menção de Jacob. — Eu já estava grávida quando nos conhecemos, mas ele nem mesmo se importou com isso, Jacob estava prestes a se tornar pastor dirigente da igreja local na cidade então nos casamos depois de uns meses de namoro, para não levantar nenhum tipo de suspeita sobre minha gestação... Nem sobre nosso relacionamento — Ela fez uma nova pausa, seus olhos ao encarar Alana pareciam marejaria por lágrimas que ela segurou. — Jacob nunca se importou por não ser o pai biológico, ele repetiu que era seu pai para toda a cidade e até mesmo ele acreditava nisso.

Alana sentiu um grande nó se formar em sua garganta, seu coração disparou em uma velocidade absurda. Ela levou a mão até o peito, se certificando de que não teria um ataque ali mesmo, apesar de não ser lá uma garantia muito eficiente.

— O q-que? Jacob não é meu pai? — Perguntou gaguejando, olhando mais fixamente para a mulher, sua mãe. West então se confundiu, levou agora as duas mãos para sua cabeça em uma tentativa de reorganizar seus pensamentos.

— Não biologicamente, mas ele a assumiu como sua filha assim que soube da minha gravidez, colocou seu sobrenome para que você fosse registrada como Alana West, sua filha. — Respondeu Lena, a voz estava mais apressada, ansiosa até. Ela sabia qual seria a próxima pergunta que Alana faria e por isso mesmo parecia estar se preparando para o momento em que a jovem a fizesse. — E ele sempre cuidou de você como se fosse mesmo dele. Não ter o sangue dele correndo em suas veias nunca o impediu de tratá-la como filha dele e nem o fez amá-la menos.

— O que isso tem a ver com o que acontece em Grória? Não estou entendendo aonde você quer chegar com isso. — Novamente ela foi contra si mesma e fez a pergunta menos óbvia, sem entender sua própria motivação para isso. Percebera que saber mais sobre si mesma estaria deixando de lado o que realmente importava, estava diante do demônio que vinha causando o caos na cidade e não perderia a chance de fazê-lo dar as respostas que ela e Kambriel tanto queriam.

O demônio se mexeu na poltrona, atraindo a atenção de Alana. Ele continuou a mirá-la em silêncio, a mesma expressão séria em seu rosto. Alana engoliu em seco, sua garganta travando toda e qualquer palavra que poderia dizer, até mesmo seus pensamentos pareceram travar diante da expectativa em ter aquela resposta.

— Isso tem tudo a ver com a situação atual de Grória, Alana. Os ataques, essas mortes, a morte de seu querido pai. Tudo está ligado em apenas uma única coisa: — Lucius começou a falar e então fez uma pausa bem mais demorada, fazendo um tipo de suspense ensaiado e forçado como se quisesse despertar na moça sua curiosidade e nervosismo em saber sua resposta. — O que um pai não faria para ter sua filha em seus braços?

Alana West piscou, demorando para entender as palavras que foram ditas, ela processava cada uma delas com muito cuidado e uma calma que considerou ser excessiva de sua parte. Até finalmente compreender o que acabara de ouvir dele. De súbito, Alana se colocou de pé, empurrando a poltrona sem perceber ao levantar tão rapidamente. Ela desviou o olhar dos dois, comprimindo uma exclamação ofegante e surpresa. O cenário ao seu redor girou, seu coração disparou ainda mais que antes e West não soube o que pensar. O que dizer e nem mesmo o que fazer.

— Não... — Alana começou a andar, afastando-se deles para pensar melhor. As duas mãos estavam em sua cabeça e por um instante, ela desejou que tudo aquilo não passasse de um estranho sonho, aonde ela acordaria muito em breve de volta no quarto do hotel com Kambriel ao seu lado. — Não! Você não... Isso não é possível!

Esbravejou alto, quase descontrolada. Sentia um misto de sentimentos dominá-la, uma verdadeira confusão. Então ela parou, estava de costas para eles e lentamente virou-se para olhá-los, mais especificamente para olhá-lo. West firmou os dois olhos na figura do homem, sentiu raiva ao vê-lo tão indiferente diante do que acabara de revelar a ela e isso pode ter servido de gatilho para que ela deixasse ser dominada mais rapidamente pela raiva que passou a sentir por ele.

— Todas aquelas pessoas que morreram... Todos esses ataques que fez na cidade durante todo esse tempo — Ela fez uma pausa, não conseguindo sequer pensar em completar sua própria fala, por não saber o que dizê-la em voz alta poderia causar em si. Em sua mente, a simples menção de ouvi-las a fez estremecer, porque ao deixar que seus lábios a dissessem, tornaria aquilo uma verdade que ela não queria acreditar. — Está dizendo que todo aquele caos, era um ato de amor por minha...

Alana não conseguiu completar a fala sem que sentisse o nó em sua garganta formar-se outra vez, travando todas as palavras que seriam ditas. Ainda olhando para o demônio, ela quase caiu para trás quando ele acenou de forma positiva, esboçando um sorriso vitorioso em seus lábios finos.

— Por sua causa? Sim, tudo aquilo que tem e acontece naquela cidadezinha medíocre e sem graça é especialmente e unicamente por causa de você. Tudo se resume ao amor de um pai para com sua filha. Ao meu amor por você, Alana. — Respondeu, sua postura mudou brevemente, tornou-se ereta e firme sobre a poltrona, mas o demônio logo se colocou de pé também. Lucius fez uma menção muito rápida de se aproximar da moça, mas no segundo em que Alana simplesmente recuou dois passos, ele mudou de ideia. — Entenda, há muito mais nessa história, detalhes importantes que sua amada mãe não está contando.

— Lucius, por favor! — Pediu Lena, interrompendo sua fala. Tocando o braço do demônio num ato natural e gentil, Alana assistiu a cena sentindo sua mente formar mais inúmeras perguntas sobre o que vira. Ela se lembrou do que houve quando tocou sem querer Eligus e de tudo o que viu, mas sua mãe não pareceu ter a mesma sensação e tão pouco se incomodou com o que aconteceu ao tocá-lo.

— Ela precisa saber de toda a verdade — Foi tudo o que ele respondeu para ela, antes de retornar a andar pela grande sala. Alana o acompanhava, mas sem se aproximar dele, apenas andava para segui-lo e não perdê-lo de vista. — Entenda Alana que, alguns anos antes de sua mãe conhecer seu pai... Conhecer Jacob West, o homem que deu seu sobrenome para você, Lena — Ele se virou em direção a mãe de Alana, a mulher mantinha um olhar raivoso e envergonhado na direção do demônio. — Cruzou o meu caminho e digamos que... Como vocês humanos sempre falam: Nos apaixonamos. Por algum tipo de milagre o nosso incomum relacionamento durou bastante, bem mais do que se era esperado, mas as coisas mudaram bastante quando contei a ela que sou um demônio. Ela já não me olhava como antes, tão pouco conseguia ficar perto de mim sem que se mostrasse enojada...

Ao fazer uma nova pausa, Lucius se aproximou outra vez de Lena, ficando ao seu lado e tocou seu ombro, fechando a mão sobre aquela região.

— Até que Lena terminou tudo, foi algo de repente, eu não estava esperando por isso, mas aconteceu. Eu levei algumas semanas para entender e só quando a vi deixar Las Vegas junto com outro homem compreendi o que realmente tinha acontecido entre a gente. — O demônio soltou uma risada seca e sem qualquer tipo de vestígio de alegria, aquilo mais pareceu algo que forçou a si mesmo para fazer. — A traição maior não foi ela ter me trocado por um humano... Ainda mais esse humano sendo um quase pastor, mas sim ter escondido de mim que, dentro de seu ventre ela carregava um filho meu.

Alana sentiu que suas pernas falhariam e sentou-se na poltrona o mais rápido que conseguiu, não conseguia nem mesmo pensar direito, apenas continuou calada, olhando para as próprias mãos e sequer se deu conta de que Lucius estava novamente se aproximando dela. Aquela sensação que sentiu antes voltou, quando ele mencionara o amor de um pai com o filho, ele já entendera sobre o que ele estava falando, mas ouvir a confirmação foi no mínimo angustiante.

— Procurar por sua mãe foi difícil, mas procurar por você, Alana... Nossa! Invadir o Céu e declarar uma guerra é muito mais simples e rápido do que isso. Mas, não tiro seu crédito, ela soube como escondê-la muito bem! — Contou, West notou que existia um certo tom de zombaria em sua voz, mas ela achou melhor ignorar. Ergueu o rosto e assustou-se quando o viu tão perto, pela primeira vez desde que acordou no inferno. O rosto do demônio estava a centímetros do dela, cada traço de suas feições fechado em uma expressão séria demais, demonstrando o quanto não aprovara em nada o que sua mãe fizera e que, contar aquela história, parecia causar nele um tipo de raiva suprimida. — Demorei uns dez anos ou mais para encontrar sua mãe, foi fácil, precisei apenas arrastá-la para o inferno e bater um papo bem amigável com ela, obviamente Lena não me falou aonde estava e nem mesmo quem era você e isso durou anos até eu finalmente encontrar uma brecha em toda essa teimosia dela.

Sua voz soou, saindo da garganta, feroz e hostil. Era como se ele estivesse tentando assustá-la e mesmo que Alana não fosse confessar isso em voz ela, admitia que estava começando a se preocupar com o que poderia acontecer em seguida. Seu queixo tremelicou, os dentes bateram em seu lábio inferior e ela prendeu a respiração ao máximo que pôde para não sentir o forte cheiro de enxofre que vinha dele, West ainda não sabia o que dizer, apenas manteve-se calada, esperando pelo fim daquela história. Até porque, ela não sabia o que dizer. Ainda.

— Eu demorei para notar que sua mãe tinha um cheiro... Diferente de antes. Quando nos conhecemos o que estava impregnado nela era apenas o cheiro comum dos humanos, nada atrativo ou que fizesse muita diferença, mas então, quando a trouxe para o inferno eu percebi uma mudança curiosa — Lucius curvou-se em sua direção, de modo a deixá-la sem chance de se afastar ou se livrar de sua presença intimidadora. — O cheiro do pastozinho Jacob West estava tão impregnado nela que tinha deixado meus demônios e parte do inferno eufórico, talvez eu tenha ficado tão entusiasmado por tê-la comigo novamente que sequer percebi essa mudança de odor logo de cara, mas quando a notei... Eu soube exatamente o que precisava fazer.

Ele segurou com os dedos o queixo da humana com um tipo diferente de gentileza, o contraste perfeito na diferença de sua atitude com sua expressão pareceu a ela um tipo de aviso do quão perigoso aquele demônio poderia ser. Lucius tinha os olhos vermelhos fixos nos olhos castanhos de Alana, a intensidade assustadora de seu olhar com o toque quase paterno causou em seu corpo um novo tremor.

— Dei uma escolha para sua mãe, ou ela facilitava tudo e me poupava desse trabalho todo de ficar caçando você como um animal fujão, ou ela continuava com essa teimosia enquanto pessoas eram mortas — Contou, enunciando aquelas palavras devagar. — E fiquei muito surpreso, olha só o tanto de mortes que tivemos e tudo isso porque Lena Moore West achou que seria muito melhor esconder você e aquele maridinho de mim! — Havia raiva em sua voz e em cada palavra que saía de seus lábios. — O pastorzinho facilitou ainda mais quando veio até aqui procurar por respostas aos ataques, não precisei de muito para ligar os pontos e então finalmente te achar, Alana Halphas, minha querida filha.

Ouvir aquele nome, ou o que pareceu ser o seu nome biológico, a fez sentir calafrios de horror por todo o corpo. Como acontecera momentos atrás, ela demorou para associar o segundo nome que escutou, lembrava-se muito vagamente de um dia ter encontrado a certidão de casamento de seu pai e sua mãe e de ler o nome Lena Moore West, ele contou que era o nome de solteira de sua mãe e que ela não poderia simplesmente tirá-lo, por ser um tipo de herança de sua família. Mas aquele Halphas... O sobrenome não lhe pertencia, ela sequer o tinha em seu registro. E vê-lo falar sobre ele com tanta convicção, revirou seu estômago.

— Você é minha, Alana. — Ele disse, tocando agora seu rosto com a ponta de seus dedos demoníacos, em um ato automático ela buscou afastar-se, mas era quase impossível conseguir isso. Ele estava próximo demais dela. Ouvi-lo dizer aquela frase a recordou da primeira tentativa de ser levada para o inferno e ela outra vez sentiu o corpo estremecer. — Tem parte de mim correndo por suas veias e por seu sangue, não tem apenas meu nome Halphascomo sobrenome também,mas tem muito de mim em toda a sua essência e no que é, bem mais do que imagina.

A jovem manteve-se calada. Nem estava mais se importando com a presença de Lucius ou do que sentiu ao receber o toque de suas mãos sobre seu rosto, ignorou por completo todas as imagens assustadoras e perturbadoras que vinham em sua mente. Na verdade, ela ignorou tudo. As palavras ditas por ele se misturavam as tantas imagens que se formava em seus pensamentos e ela lutou para apenas deixá-las em evidência, suas palavras eram repetidas várias e várias vezes. Como um tipo inadequado de lembrete, algo que não desejava e tão pouco lhe agradava.

Percebeu que toda a sua vida parecia ser uma grande mentira, não apenas em relação sobre quem era seu pai, mas também sobre quem ela realmente era. Filha de um demônio, sussurrou a frase em seus próprios pensamentos notando como dizê-la apenas lhe trouxe um sentimento estranho de que, estava traindo Kambriel de alguma forma. As mortes, o caos que se estendeu por Grória durante todo aquele tempo, tudo realmente tinha um motivo para estar acontecendo e era ela esse motivo. Lucius estava apenas atacando a cidade porque queria encontrá-la.

— Então, você só estava atacando a cidade porque estava me procurando todo esse tempo? — Ela perguntou, quase sentindo as palavras serem vomitadas ao dizê-las em voz alta, internamente ela parecia estar prestes a chorar, não por tristeza, mas sim por puro desgosto.

O demônio — aquele que dizia ser seu pai biológico com tanta convicção — afastou-se dela e imediatamente Alana sentiu-se mais leve e até mesmo melhor do que se sentia antes. Ela piscou, encarando-o enquanto aguardava pela resposta que bem sabia que poderia lhe atormentar pelo resto de sua vida.

— De uma forma mais clara, sim. — Concordou em um aceno leve com sua cabeça, a frieza em sua fala ao mencionar subliminarmente os ataques cruéis em Grória revirou seu estômago. — Como eu disse, não gosto de injustiças. O que fiz é apenas um acerto de contas, mostrei a minha justiça para aqueles que não fizeram questão de mostrá-la a mim. — Ele olhou na direção de Lena rapidamente.

West — se é que poderia manter esse sobrenome consigo — pensou a respeito, olhou rapidamente em direção a sua mãe e voltou seus olhos para o demônio na sua frente, suas mãos se tencionaram e fecharam-se ao redor de seus joelhos. Apertando aquela região com mais força do que esperava.

— E agora que me encontrou... O que vai fazer? — Questionou, percebendo que sua voz pareceu levemente trêmula e incerta. Na realidade, Alana estava temendo o que receberia como resposta. — Vai parar os ataques em Grória?

Lucius pareceu pensar e manteve os olhos vermelhos fixos na moça ainda sentada, houve por um breve segundo um brilho carregado de expectativa em seus olhos e ela logo temeu o que teria em resposta. Novamente apertou os joelhos, agora com mais força.

— Todos esses... Vinte e quatro anos eu tinha um único objetivo que era encontrar o filho, na verdade, a filha que Lena tanto se esforçou para esconder de mim e finalmente encontrei, você! — O demônio ajoelhou-se na sua frente, pousando as duas mãos sobre as suas. Outra vez, Alana precisou ignorar tudo o que veio em sua mente ao receber o toque de Lucius e tentou ao máximo esconder o claro desconforto que sentia com sua aproximação inesperada. — Se quiser, eu posso concordar em parar com os ataques na cidade, até porque cumpri meu objetivo que era apenas encontrá-la e tê-la comigo. Mas virá com uma condição, eu posso encerrar os ataques na cidadezinha, a cidade voltará a sua normalidade de antes, mas apenas se você permanecer aqui comigo. Para a eternidade.

Alana o encarou apavorada. Ela não podia dizer que a proposta era ruim, Lucius fora sábio em oferecer aquele tipo de oferta porque sabia de sua preocupação com a cidade, mas a ousadia em seu pedido, em dizer que tudo voltaria ao normal se ela ficasse no inferno com ele era... A moça sequer conseguiu finalizar o pensamento seu coração acelerou.

— NÃO! — Lena finalmente voltou a falar e, ao interromper seus pensamentos ela pôde notar o medo em sua voz ao negar o pedido feito. — Não aceite!

Nesse momento, as duas se encararam tão rapidamente que a ação pareceu ser algo combinado entre elas, o silêncio entre as duas era algo muito estranho e inédito para a jovem. Mesmo que existisse muito para ser dito, Alana não sabia por onde começar e nem mesmo o que poderia falar para a própria mãe e o mesmo parecia acontecer com Lena. A mulher a encarava com os olhos grandes e castanhos com pesar, a recusa era clara não apenas em sua fala, mas em sua expressão também, Lena não queria que ela aceitasse viver no inferno.

— Ela já é maior de idade, Lena. — O demônio virou-se para a mulher, Lena ficou tensa ao receber o olhar de Lucius e apesar de Alana não conseguir ter qualquer tipo de vislumbre do que sua mãe viu, ela teve certeza de que não foi a aparência humana que via naquele momento. — Não é você quem toma decisões na vida dela mais, na verdade, deixou de ser você faz muito tempo.

Lucius voltou a olhá-la, como ela já tinha percebido antes, o brilho de expectativa ainda estava visível em seus olhos e Alana pensou no que faria. Tinha dois caminhos esperando para serem escolhidos bem diante dela, um deles — o mais fácil — era negar, provavelmente ele a levaria de volta para a terra e quem cuidaria do restante seria Kambriel. Então tinha o segundo caminho — o mais difícil —, aceitar a proposta e ficar no inferno, porém, Grória estaria livre dos ataques.

— Se eu concordar em ficar, ela — Alana gesticulou em direção a sua mãe. — Ela vai poder voltar para a terra? Afinal, a minha mãe não tem mais parte nessa história, certo?

A pergunta parecia até absurda para ela, tinha ciência disso e apesar de desconfiar que acabaria recebendo uma resposta negativa, não podia deixar de tentar lutar pela vida da mãe, já que seu pai, Jacob, não conseguira quando em vida. E havia nela uma centelha pequena de esperança de conseguir tirar a mulher daquele lugar que passou a odiar fortemente.

— Conte para ela — Ordenou Lucius, sem olhar para a mulher.

— Eu não posso sair do inferno, Alana. — Contou a mulher, abaixando o rosto e encarando as próprias mãos, sua voz soando mais baixa que o normal. — Quando Lucius me arrastou, ele me condenou a permanecer aqui para a eternidade... Sou como as almas condenadas aqui, não estou morta, mas sair daqui é um luxo do qual não possuo mais.

O olhar de Alana voltou-se lentamente para o demônio, internamente ela queria atacá-lo, feri-lo de alguma maneira ou simplesmente gritar. Suas mãos se fecharam em punhos firmes quando ela assistiu de perto os lábios do demônio se esticarem em um sorriso orgulhoso, foi necessário que ela se controlasse para não o socar naquele mesmo momento. Ela pensou em sua mãe, na vida que lhe foi tirada, nos anos que Lucius roubou dela, na vida que ela poderia ter na terra... Aquilo era uma impossibilidade, uma ilusão cruel de algo que nunca aconteceria e que a mulher sequer poderia conhecer, um futuro que não lhe pertencia mais.

— Mas pense no lado positivo sobre isso, se aceitar ficar aqui, estará ao lado de sua mãe... E de seu pai. — O demônio comentou, havia um forte tom irônico em sua voz e isso apenas a irritou mais, a maneira como ele simplesmente zombava da situação de Lena era cruel.

— Eu preciso pensar. — Foi tudo o que ela conseguiu falar.

Não que realmente estivesse pensando em aceitar aquele acordo, mas diante do que soubera em tão pouco tempo, ter conseguido formular aquela frase — ainda que a mesma fosse simples — foi um desafio e tanto para ela. Alana voltou os olhos para a mãe, a mulher parecia querer chorar, mas se esforçava muito para não mostrar aquela fraqueza e, limitava-se em apenas deixar claro que a filha não deveria concordar com o acordo de Lucius.