Entre dois mundos

As últimas esperanças


Seu joelho ainda doía com o impacto dos seus pés no asfalto.Lhe recordando dos últimos momentos em que passou naquela mansão da qual estava prestes a voltar naquele momento.

Cascão não conseguiu ficar por muito tempo no hospital,embora quisesse fazer companhia para a amiga e tirar uma soneca,sua ansiedade era tanta que talvez nem conseguisse pregar os olhos(por mais aconchegante que aquele quarto fosse).

Seus pais provavelmente já tinham sido informados pela polícia do que aconteceu,e com certeza já estavam a caminho para encontrar seu filho na delegacia.

O garoto até pensou que seria uma boa ideia dar meia volta e explicar sobre o que aconteceu aos seus pais, mas sabia que tentar se justificar demoraria muito mais do que cortar o mal pela raiz.

Estando a poucos metros da mansão, não havia mais como voltar atrás.

Os portões de ferro batiam com o vento forte daquela manhã nublada.O silêncio decorava a entrada daquela enorme estrutura coberta por plantas trepadeiras e ervas daninhas misturadas a grama alta.O cheiro da terra molhada ainda estava presente no caminho enlameado que cobria boa parte do trajeto até os fundos da mansão.

O jardim do qual vivenciou um dos momentos mais tensos da sua vida,agora era calmo e tranquilo.O som dos pássaros cantando ao fundo,combinava com farfalhar das folhas que pareciam dançar nas copas das árvores.

Tudo estava muito diferente da última vez e Cascão não sabia se isso era bom ou ruim.O silêncio poderia ser um sinal de paz,mas também de alerta. Não se sabia ao certo o que esperar.

Ao ver a janela da cozinha quebrada,engoliu seco as lembranças e o medo que tentara lhe domar.Ele mal conseguia imaginar como Mônica havia escapado naquelas condições em que estava.Deveria ter sido horrível.

–Olá?-Cascão perguntou automaticamente assim que viu a porta do fundos da cozinha se abrir vagarosamente.Pra sua sorte, ninguém respondeu.

"Era só o vento…" O rapaz respirou aliviado e adentrou aos poucos no local, até ter certeza de que não teria companhia.

Assim que a sola dos seus sapatos esmagaram pequenos cacos de vidro na área de serviço um cheiro forte invadiu suas narinas,de novo tal forma que parecia que seus pulmões estavam queimando.

Um rastro de sangue manchava toda a extensão do piso da cozinha,passando pela piá até a janela.Uma marca que sua amiga deixou ao seu esfaqueada na perna.

Cascão segurou a ânsia de vômito que subiu em seu esôfago e continuou o caminho até o corredor que levava a sala de estar.

Seus passos ecoavam por todo o cômodo.Era como se o som dos seus pés ganhasse forma e saísse do chão até o teto abobado da gigantesca sala de estar.

—Tem alguém aí?- A voz do garoto se repetiu em um eco por toda a extensão daquela sala. Cascão queria confirmar que realmente estava sozinho, não era difícil imaginar a pior das possibilidades depois de ter passado pelo que passou naquele lugar.

Mas não obteve resposta,o que o incentivou a seguir até o laboratório e se deitar naquela maca pela última vez.

…..

—Sr.Cascão…-Uma voz ao longe lhe chamava.

—Eu consegui?-O garoto esfregava a mão nos cabelos,ainda tentando diferenciar o mundo real do paralelo.

–Perdão,senhor… não sei sobre o que está falando.- Um senhor de meia idade bem vestido estava parado ao lado da cama onde Cascão acordara.-O senhor chegou muito cansado e acabou dormindo no escritório,tivemos que retirá-lo de lá e colocá-lo no seu dormitório para que ficasse mais confortável.

–Ehr...Obrigado?

–Tudo pelo seu conforto,senhor.

Gostaria que eu trouxesse algo?Estamos preparando o seu café da tarde,mas se desejar,posso trazer uma bandeja para que coma aqui.

—E-eu agradeço...Mas estou sem fome.Eu só preciso ligar para o Cebola e…

—Não precisa se preocupar quanto a isso,senhor.O Sr.Cebola ligou a poucos minutos atrás para falar com você,se quiser podemos retornar a chamada.

–Sim!Por favor!Vai ajudar muito!

–Está bem,pelo que me parece é um assunto urgente...Vou providenciar agora mesmo.

–Muito obrigado.

….

–Careca!Que bom que você me ligou,eu tenho mais coisas pra contar e…

—Me desculpe,ainda não estou acostumado com esse apelido…—A voz abatida do rapaz do outro lado da linha ecoou nos tímpanos de Cascão,o deixando ainda mais preocupado.-...Que bom que retornou,eu também tenho boas novas pra te contar.

—Você tá legal?

Estou sim...Eu só...Bom,isso não convém agora.— Cebola tentou disfarçar um riso,embora estivesse em choque com todas as informações que obteve, não queria assustar o amigo.- Mas enfim,o que iria me contar?

—Vocês vão precisar encontrar uma fórmula... Não sei se consigo explicar isso direito.Sabe como é, você não ia entender.

Bom,eu posso deixar um lembrete se quiser.—Cebola ligou a secretária eletrônica e começou a gravar toda a explicação que Cascão começou a dar sobre o que seus amigos deveriam fazer para pôr um fim ao experimento.

Enquanto escutava o que Cascão falava,Cebola ficava tentando imaginar como se o mundo do outro lado também tinha limitações geográficas como o dele,se o caos também estava se instaurando da mesma forma por lá.

Por mais que entendesse as razões do doutor Licurgo em dar tais soluções,o rapaz não conseguia ver as outras versões de seus amigos de uma superficial e muito menos vazia.Ele sentia que não eram apenas projeções, mas procurava negar essa hipótese por conta do que ouviu do doutor.Cebola não queria ser responsável por uma catástrofe,mas também não queria acabar com a vida de alguém só porque não a julgava importante o suficiente para ser mantida.

A medida em que ia pensando em alguma solução que fosse melhor do que uma aniquilação,Cebola não tirava os olhos da adaga que recebera..Ele não conseguia se imaginar nem matando uma mosca com ela,como poderia fazer isso com uma, suposta, projeção?

A única solução que vinha em sua cabeça era um tanto absurda, mas talvez não tivesse escolha. Faltava menos de um dia para o show .Menos de um dia para o fim.

—Cebola? Você tá aí?- A voz de Cascão ecoava do outro lado da linha até que Cebola voltasse do seu transe reflexivo.

Sim,sim...Estou aqui.

–Achei que tinha desligado.

E-eu estava apenas pensando sobre o que me falou,só isso. Mas vou passar o recado pra eles.

–E o que você tinha pra me contar?

Bom...Eu acho que consegui a localização do cativeiro onde a Magali pode estar.Eu não sei se essas informações podem ajudar em alguma coisa,mas foi o que eu consegui.

—Tá brincando?!Isso é perfeito!Vai ajudar muito,eu tenho certeza!-A reação de Cascão ao ter ouvido o que o amigo ditou das descrições que fez eram mais do que o suficiente para iniciar uma busca com a polícia.-Podemos ver as câmeras de segurança do bairro e tentar seguir esse mesmo trajeto que ela disse que fez,se só demorou 1 hora,então não estão muito longe!!

-Pois é...Espero que essas informações ajudem as autoridades também.Mas eu peço desculpas de qualquer forma,eu gostaria de saber mais a respeito.

–Não precisa se desculpar,Careca!Graças a essas informações eles vão voltar pra casa...Nem posso acreditar.Tá todo mundo preocupado aqui,qualquer informação vai deixar a gente feliz,pode ter certeza disso.

Que bom,fico feliz…—De repente Cascão pôde escutar o amigo soluçar do outro lado da linha,como se estivesse choramingando.

–Você ta bem mesmo?

S-sim...eu estou…— Cebola não conseguiu secar as lágrimas,elas estavam descendo rápido demais do seu rosto,ele jamais se perdoaria se fizesse algo contra Magali.Era muito difícil passar aquelas informações,sendo que talvez a Magali que Cascão conhecia nunca voltasse pra casa.-...Posso te fazer uma pergunta?

–Claro.

O que tem depois do limoeiro?

–Ehr...Depende de qual lado você vai.Mas o que tem mais perto são algumas praias da região norte,eu não sei se você vai lembrar,mas deve ter aí também.

Eu não me… lembro de praia alguma.

–Foi mal,nesse mundo as coisas são diferentes,né?Mas você deve lembrar de quando a gente foi acampar,não lembra?Faz alguns anos já,mas foi muito daora...Ficava fora da nossa cidade também.Foram as melhores férias que a gente já teve na verdade.

Foram?

–Cara,não vai me dizer que você não lembra daquela instrutora gata que tinha lá?Aquela que tinha um cabelo rosa gigante!Você ficou caidinho por ela…

Ah sim...como eu poderia esquecer?

–Que susto,achei que você não ia lembrar...a gente passou por cada coisa juntos,nem vou falar daquela viagem pro interior pra festa da jumenta voadora,foi horrível hahaha

Claro,foi mesmo…—Cebola encerrou a chamada no meio da ligação.Se sentia tão deprimido por ter sentido que não tinha feito parte de nenhum daqueles momentos,era como se eles nunca tivessem existido.A única coisa que sabia sobre sua vida era que ele era um empresário de sucesso casado com uma modelo muito famosa e muito influente.Apenas isso.

Não havia passado para se ter nostalgia e nem um futuro para planejar.

Até então sua vida sempre foi a mesma coisa,um ciclo de festas badaladas,eventos,reuniões de negócios e alguns problemas judiciais.

Ao ouvir as histórias que Cascão lhe contou,percebeu que realmente.Aquele universo em que estava não fazia sentido algum?Onde estavam as fotos de família na sua casa?Álbuns,lembranças,memórias?Onde elas foram parar?Será que sua vida só se resumiria a aquilo?

Era difícil descrever o que estava se sentindo naquele momento,era como se não houvesse uma essência ou profundidade no que vivia.Como se nada mais fizesse sentido e muito menos o plano do doutor Licurgo.

Enquanto isso...No mundo real================

Enquanto o laboratório corria,Cebola estava estático dentro do seu dormitório.

Desde que pisara naquele lugar pela primeira vez,sabia que teria de fazer alguma estratégia ou plano para sair de lá caso um resgate não viesse.Por muitos dias ele realmente acreditou que o resgate viria,mas estava tão preocupado em cuidar da sua amiga que não conseguia imaginar o que poderia estar acontecendo do lado de fora.

Aquele cativeiro era o seu mundo e Magali era a seu único porto seguro.

Ele realmente acreditou que se cedesse até um certo ponto,conseguiria as tais “regalias” que o contrato que assinou com Anne oferecia.Mas a resposta foi clara e cruel.De nada adiantaria assinar um contrato com aqueles que obviamente não cumpririam a sua palavra.

Seu medo de ser incapaz era tão grande que se deixou levar por uma folha e meia dúzia de palavras bonitas.

E agora poderia ter colocado tudo a perder por acreditar que não a machucariam.

Vê-la cair de joelhos na sua frente foi assustador,mas como um choque de realidade que mostrou que todos os benefícios tem seu preço.E o preço a se pagar pode ser muito caro,e porque não,irreversível.

Sentado na ponta da cama,o rapaz só conseguia pensar no que poderia ter acontecido a Magali.Só conseguia imaginá-la entrando naquela porta e naquele momento,contrato algum poderia dar tamanha regalia quanto aquela.Vê-la respirando já seria o suficiente.

E como esperado,alguém entrou no quarto,mas este alguém estava longe de ser a sua amiga.

– Isso não estava no nosso protocolo,mas a cobaia vai ficar bem.-A voz de Anne cortou o silêncio do cômodo.

Cebola estava louco para questioná-la ou rebater aquela afirmação,mas depois do que viu a sua concepção mudou totalmente.Afinal de contas,era isso que eles queriam para testá-lo psicologicamente, o colocariam em situações, no mínimo, traumatizantes e assim poderiam usá-lo da forma como quisessem.

Era algo que já era perceptível no início, mas tudo parecia ter sido esclarecido quando Cebola entendeu que aquilo não passava de um grande show de horrores, do qual os cientistas eram a plateia e as cobaias,os palhaços.

Ele daria algo,mas não o que estavam esperando.Quando se cria o caos,se espera o caos como resposta,mas neste caso,não haveria resposta alguma.