Juliana chegou em casa exausta.Para um primeiro dia de aula a coisas haviam se mostrado um pouco mais exaustivas do que ela estava esperando.

Seus alunos pareciam bons garotos, mas no inicio tudo era assim mesmo. Ela não podia se deixar enganar com rostinhos bonitos.

Rostinhos bonitos...

Aquela escola andava cheia deles. Na primeira turma em que ela entrou já pode vislumbrar uma pequena demonstração de como os alunos de agora pareciam ter andado lado a lado com o progresso dos ultimos anos, se apresentando com uma aparencia que antes era vista pelos adolescentes como pertencente apenas a atores e cantores da televisão.

— Na época que eu estudava naquela escola, eu não tinha aquela variedade de rapazes bonito. - Juliana pensou em voz alta assim que entrou em casa.

—Falando sozinha filha? - Joana Bonfim, mãe de Juliana perguntou sorrindo.

—Pensando alto mãe, nada importante.- Ela respondeu enquanto se colocava para dentro da cozinha.

—Como foi o primeiro dia? - A mais velha perguntou olhando curiosamente para a filha, tentando ler na moça à sua frente as emoções que ela tão delicadamente escondia.

—Teria começado melhor caso alguém tivesse lembrado de me acordar no horário. - Ela respondeu lançando um olhar falsamente zangado a mãe, sabendo que em nada ela tinha culpa. Era mais do que adulta o suficiente para ser capaz de acordar sozinha.

—Vamos lá Juliana, não é como se você ainda fosse a garotinha do ensino médio que só levantava depois de eu ter que te acordar no mínimo umas três vezes.- Joana riu da expressão que se formou no rosto da filha, sabendo que não havia resposta plausível para seu argumento.

—Vou tratar de colocar o relógio pra despertar mais cedo. - Juliana disse ainda sorrindo . - Mas resumindo tudo, foi um dia bom, e com certeza esse vai ser um ano puxado lá na escola. - Ela disse indo esquentar seu almoço.

—O importante é que está finalmente gostando de fazer algo. - A mulher olhou com cuidado para a filha, sabendo da linha tênue que estava traçando. - Há tanto tempo eu não via tanta animação assim em você.

—Já falei para não se preocupar com isso._Juliana disse parecendo um tanto cansada de repetir o mesmo argumento. - Não existe nada com o que se preocupar, realmente.

O sorriso miúdo que enfeitava seus lábios não enganava nem a ela mesma, no entanto.

Terminando de comer, ela resolveu que iria fazer novos planejamentos para as aulas seguintes. Ela precisava desesperadamente arrumar uma forma de fazer com que seus alunos entendessem as coisas, e pelo o que ela havia visto pela manhã, isso daria um enorme trabalho.

Sentou- se na cama e passou a ler algumas coisas e procurar dicas na internet.

Adormeceu em poucos minutos, incapaz de manter sua atenção nas palavras que pareciam dançar na tela do computador à sua frente.

Os anos de faculdade e dando aulas à tarde, tiraram dela o costume de acordar cedo. Estava exausta.

Acordou sentindo algo gelado lhe tocar as mãos.

—Mais cinco minutos mamãe, e depois eu juro que levanto. - Ela resmungou sem abrir os olhos mas percebeu aos poucos que aquele toque não era o mesmo que o da sua mãe.

Abriu os olhos e sem surpresa, encarou o enorme cachorro parado ao seu lado. O animal era a maior paixão da garota que há dois anos atrás o havia ganhado de presente do pai.

—O que faz aqui rapaz? - Ela perguntou se levantando e fazendo o belíssimo labrador abanar ainda mais a calda. - Você não precisa nem me dizer, não é? É hora de passear!

Dizendo isso ela se levantou e se pôs a aprontar-se para a caminhada rotineira que fazia todas as tardes.

—Mãe, eu vou levar o Douggie para passear no calçadão e volto depois. - Ela gritou e ouviu a mulher pedindo que esperasse.

—Leva o dinheiro e compra pão naquela padaria que seu pai gosta? - Joana perguntou estendendo o dinheiro para a filha.

—Eu passo lá sim, mas deixa que dessa vez eu pago._Ela sorriu para a mulher e passou pela porta levando o animal.

Seguiu com calma junto ao animal para perto da praia. A cor preta dos pelos brilhantes e o tamanho exagerado de Douggie chamavam a atenção das pessoas. Algumas já eram habituadas a encontrar com a moça nesse horário e por isso não era uma surpresa.

Juliana sorria e cumprimentava algumas pessoas e assim que chegou ao calçadão da praia ligou o som do celular e colocou os fones no ouvido. Douggie parecia querer carregar a dona com mais pressa, mesmo que fosse pra lugar nenhum. Juliana estranhava o comportamento do animal, visto que mesmo sendo sempre brincalhão ele costumava ser bem comportado.

—O que há com você amigão?_Ela perguntou fazendo o animal a encarar por breves segundos. - Parece inquieto. Vamos logo na padaria e depois vamos para casa, tá bom? Acho que você deve estar com fome, e claramente desistiu de passear. - Ela disse afagando carinhosamente os pelos da cabeça do cão que apenas abandonou a calda.

Ela seguiu com ele pelo caminho que daria na padaria, demorando poucos minutos para chegar por lá, e assim que chegou, como de costume deixou a corrente do animal presa a uma cerquinha que ficava em frente à porta da padaria.

—Fique quietinho Douggie, eu prometo não demorar. Seja um bom menino que eu compro um pão a mais pra dar a você. - Ela disse e deixou o cachorro sentado no lugar exato onde deveria ficar, se dirigindo rapidamente para a fila do pão.

Sozinho em casa não muito longe dali, Gabriel Sant' Anna assistia distraído aos tantos canais sem sentido que passavam na televisão, ao mesmo tempo em que sabia que estava esquecendo de algo, mas sua mente não conseguia se lembrar o que era. Forçou um pouco mais o pensamento e em um susto se lembrou que seus pais chegariam em meia hora e ele deveria ter ido comprar o pão conforme sua mãe havia antes de sair para trabalhar. Ela dava aulas de geografia na mesma escola que ele estudava, só que no período da tarde.

—Droga! - Ele exclamou rapidamente se pondo a procurar pelas chaves do carro. - Um dia eu juro que vou ser capaz de me lembrar dessas coisas estúpidas que fogem da minha mente.

Depois de cinco minutos de uma procura incessante ele finalmente encontrou as benditas chaves. Ele estava sem camisa, mas no momento isso era irrelevante. Calçou as sandálias e correu até o carro disparando em uma velocidade que o seu pai o mataria se visse. A padaria não ficava longe, mas ele não dispunha de tempo.

Douggie estava sentado, mas logo voltou a ficar inquieto. Juliana esperava na pequena fila e não notou a força desnecessária que o cachorro fazia para sair da corrente. A atendente da padaria entranhou o comportamento do cão que sempre costumava ser dócil e amigável. Falou algumas palavras com ele, mas de nada adiantou.

Finalmente chegou a vez de Juliana ser atendida e ela fez o pedido habitual, sem prestar atenção no cachorro que aos poucos criava uma cena do lado de fora. Direcionou-se em seguida ao caixa e nesse momento viu o acontecimento absurdo que a deixou sem reação.

Um carro preto havia acabado de estacionar em frente ao local e nesse mesmo instante Douggie em um movimento rápido se soltou da coleira. O animal correu rapidamente em direção ao carro onde no mesmo momento alguém abria a porta do motorista. Douggie pulou na porta do carro derrubando de volta para dentro a pessoa que tentava sair.

Assim que estacionou na porta da padaria, Gabriel abriu devagar a porta do carro, se virando para retirar as chaves e pegar o dinheiro, quando foi brutalmente surpreendido ao sentir a porta fechar com força o empurrando de volta para dentro do carro, não sem antes o acertar na testa forçando a parte de trás de sua cabeça contra o volante.

Juliana correu em direção ao carro e apavorada puxou Douggie para junto de si.

—Pelo amor de Deus Douggie, o que deu em você? - Ela gritou acalmando o animal que no instante seguinte se sentou como se nada tivesse acontecido.

A moça voltou sua atenção para dentro do carro de onde ouviu alguém reclamar.

—Sorte infeliz._Gabriel resmungava enquanto passava a mão na testa e na parte de trás da cabeça, ainda sem entender o que havia acabado de acontecer.

—Me desculpe senhor, por favor, eu não esperava que o meu cachorro... - A voz de Juliana morreu quando viu o jovem que finalmente saiu de dentro do carro. Ela analisou o corpo do jovem e arregalou os olhos quando finalmente chegou ao rosto dele.

—Gabriel? - Ela perguntou ainda mais apavorada e nesse momento o rapaz reconheceu a professora. - Meu Deus, garoto, tudo bem com você?

—Depende do seu ponto de vista. - Ele disse alisando mais uma vez a testa. - O que houve? - Ele perguntou, mas assim que analisou a cena à sua volta, ele assentiu para si mesmo, claramente entendendo o que havia acontecido. - O cachorro louco é seu?

—O Douggie não é louco, não sei o que foi que deu nele. - Ela respondeu exasperada ao mesmo tempo em que cautelosamente se aproximava do rapaz à sua frente. - Posso ver onde machucou?

—Não se preocupe, eu estou bem. - Ele disse sentindo a cabeça latejar por qualquer movimento.

Ignorando completamente a recusa do rapaz Juliana se aproximou e delicadamente passou uma das mãos sobre a testa dele. Não notou nada de entranho até que viu um pequeno filete vermelho escorrendo no pescoço dele.

—Vire-se de costas, por favor. - Ela pediu e ele obedeceu mesmo sem entender. - Deus, tem um corte bem aqui atrás. Você está sangrando!

—Não se preocupe, me deixe comprar o pão que eu vim buscar que eu vou para casa e cuido disso. - Ele respondeu se afastando dela.

—Como espera que eu vá embora sabendo que deixei meu aluno ir embora dirigindo enquanto sangrava por culpa do meu cachorro? - Nesse momento ela tocou na testa dele novamente e ouviu um gemido de dor baixinho escapar por entre seus lábios. Levantou a franja do rapaz e notou que um hematoma enorme começava a se formar ali.

—Fique aqui com o Douggie enquanto eu compro os pães que você quer ok? - Ela disse e ele assentiu sem prestar muita atenção. - Eu juro que já volto para te ajudar.

—Quer que eu fique com o cachorro que quase me matou? - Ele perguntou e resmungou logo em seguida por conta da pontada de dor que sentiu.

—Não seja dramático. - Ela disse e arrancou as chaves da ignição do carro para logo em seguida entrar de volta na padaria onde todos a encaravam,claramente tão espantados com a cena quanto ela mesma estava, e em questão de minutos voltar com uma sacola de pães.

—Aqui estão seu pães, agora me diga pra onde devo dirigir, ok? - Ela perguntou e abriu a porta do carona para ele entrar.

—Eu já disse que estou bem. - Ele insistiu firme, somente para logo em seguida se apoiar no capô do carro devido a uma forte dor seguida de uma tontura.

—Não quero saber o que você já disse, nós vamos para um hospital agora mesmo. - Ela disse nervosa e ele suspirou.

—Não precisa, sério, eu já estou bem. - Gabriel disse e Juliana percebeu que o filete de sangue no pescoço dele agora manchava um pouco mais.

—Nem de longe. - Ela respondeu e delicadamente o guiou de volta para dentro do carro. Logo em seguida colocou Douggie no banco de trás e seguiu rumo ao pronto atendimento que tinha perto dali.

O caminho foi tão silencioso quanto foi desconfortável, e Juliana não pode deixar de admirar sua própria sorte. Ou a total falta dela, neste caso.

—Qual o problema? - A atendente perguntou assim que os dois chegaram ao balcão de atendimento no hospital.

—Ele sofreu um pequeno acidente e levou uma pancada muito forte na cabeça, e agora tem um hematoma e está sangrando.- Juliana explicou preocupada enquanto descrevia os machucados para a mulher.

—Preencha seus dados, por favor, e o médico te atenderá em seguida. - A atendente entregou a ele um formulário simples, que ele prontamente se pos a preencher. - Pode seguir até o primeiro corredor a direita, após aquela porta. - Ela apontou assim que ele finalizou o formulário, e a passos lentos, Gabriel seguiu o caminho indicado.

Juliana se sentou e percebeu que só o que poderia fazer era esperar enquanto analisava as consequenciais possíveis do que havia acabado de acontecer.

—A senhorita poderia vir até aqui me ajudar com os dados do seu namorado?- A mesma mulher que os atendeu voltou a chamá-la e Juliana rapidamente se pôs de pé.

—Ele não é meu namorado. - Juliana disse rapidamente. - A única coisa que sei sobre ele é que tem 17 anos se chama Gabriel Sant’Anna e é meu aluno.

—Seu aluno? - A mulher perguntou espantada ao mesmo tempo em que encarava Juliana um tanto quanto descrente. - Pela sua preocupação imaginei que fossem um casal.

—De maneira nenhuma. - Juliana voltou a negar se sentindo constrangida. - Teria a mesma reação caso eu tivesse causado este tipo de inconveniência a qualquer outra pessoa.

—De qualquer forma, acho que ele já está bem. - Ela disse apontando para a porta da sala de onde Gabriel saía acompanhado por um médico.

—A senhorita por acaso é a responsável por ele? - O homem perguntou a Juliana.

—No momento, acredito que sim._Ela respondeu novamente constrangida.

—Ele está bem. Certifique-se de que ele não vai dormir nas próximas duas horas e apliquem gelo no hematoma na testa. O corte na parte traseira da cabeça não foi profundo, mas é preciso que os remédios que estão com ele sejam aplicados e os curativos trocados para não correr o risco de uma infecção. Caso ele vomite ou algo parecido o traga imediatamente de volta ao hospital. - O doutor disse tudo em um tom quase robótico e logo se distanciou, deixando Juliana sozinha com Gabriel.

—Vou te levar pra casa, vamos. -

Ela disse e ele assentiu ainda segurando a bolsa de gelo na testa.

No caminho para casa ambos permaneciam em silencio. Gabriel parecia a ponto de adormecer a qualquer instante.

—Ei garoto, não faz isso comigo vai. Fica acordado, por favor. - Ela pediu ele a encarou quase que surpreso por ouvir sua voz.

—Estou acordado. - Ele disse baixo, incapaz de convencer até a si mesmo.

Nesse momento o som de uma musica eletrônica foi ouvida e Gabriel retirou do bolso um celular.

—Fala mãe. - Ele disse baixo e a mulher do outro lado da linha imediatamente notou a pontada de dor presente na voz do filho.

— O que houve Gabriel? Está tudo bem? - Ela perguntou e Gabriel nem por um instante se assustou com o fato de sua mãe ser capaz de adivinhar qualquer mínimo problema que fosse relacionado a ele ou seu irmão.

— Eu fui na padaria comprar pão e o cachorro da minha professora bateu com a porta do carro na minha cabeça. - Ele disse simples, como se fosse um acontecimento corriqueiro. Juliana não sabia se chorava de vergonha, ou dava risada. - Mas ela já me levou no médico e eu tô bem.

— Filho, como assim? - Marieta Sant'Anna questionou assustada e Gabriel suspirou.

—Mãe, minha cabeça tá doendo, será que eu posso desligar agora e te contar o resto em casa?

— Gabriel, posso falar com ela? - A voz feminina que soou junto a de seu filho fez Marieta cerrar os olhos em curiosidade. No instante seguinte, a mesma voz falava diretamente com ela no telefone.

— Senhora Sant'Anna, eu sou Juliana, e gostaria de me desculpar. Meu labrador causou um acidente e seu filho infelizmente se machucou por isso.

A moça soava tão culpada que Marieta quase sorriu.

— Juliana Bonfim? Ouvi falar de você nos corredores da escola. É a nova professora de inglês, certo?

—Sim senhora.

— Veja, por que pediu para falar comigo? Entendo que foi um acidente, o que quer que tenha acontecido não precisa se explicar ou se preocupar. Conheço meu filho. Coisas assim acontecem com ele regularmente, acredite. - Juliana foi obrigada a sorrir com as palavras da outra mulher, e Marieta a acompanhou.

—Acontece senhora, que o Gabriel machucou a cabeça, o médico disse que ele não devia dormir, mas ele mal consegue manter os olhos abertos. - A preocupação na voz dela fez Marieta esquecer qualquer humor que carregava.

— Isso e péssimo. Eu liguei para avisar a ele que eu e o pai dele estamos fora da cidade, viemos direto do trabalho. Minha mãe passou mal e estamos com ela no hospital. Mesmo que voltássemos imediatamente, iríamos demorar para chegar, e ele não pode ficar sozinho.

Sem ver outra saída, Juliana se viu pronunciando as palavras que sabia que se arrependeria logo em seguida.

— Eu posso ficar com ele até vocês chegarem, se a senhora quiser. - Ela ofereceu e Gabriel resmungou ao seu lado.

— Ei! Eu não tenho dois anos de idade, não vou morrer até minha mãe chegar do trabalho, pelo amor de Deus.

— Gabriel, sua mãe está fora da cidade, e você está dormindo sentado! - Juliana exclamou e Marieta voltou a se pronunciar.

— Sei que não te conheço, mas ouvi o bastante de você para saber que não é uma assassina, então vou te pedir para fazer valer suas palavras e ficar de olho nele até eu voltar. Juro que vamos chegar o mais cedo possível. Miguel está fora também, e devido às circunstanciais, não vejo outra saída.

— Tudo bem. E mais uma vez, peço mil desculpas. Não foi minha intenção.

— Eu agradeço pela sinceridade. Conversaremos melhor assim que nos encontramos logo mais, tudo bem? Qualquer coisa, não deixe de nos ligar.

— Certo. Até logo senhora.

Desligando o telefone, Juliana finalmente notou que Gabriel há muito não dizia nada. De olhos fechados, ele parecia adormecido.

— Vamos garoto, abra os olhos. -Ela pediu enquanto tirava uma das mãos do volante para tocar delicadamente no rosto dele.

Quando ele abriu devagarzinho um par de olhos azuis cansados, Juliana suspirou.

— Hold on, I'll take care of you.

Ele a encarou sem entender e ela deu graças aos céus. Suas palavras soaram verdadeiras demais até para o seus próprios ouvidos.